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"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa

um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus,

de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e

de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto

de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."

(J. L. Borges)

I 

O MUSEU-DE-TUDO

MELGACIANO

(Uma Exegese da Primeira Fase

da Obra de Otacílio Melgaço)

 

Texto de Pablo Suarez Paz

 

O homem pode vir a se apropriar daquilo que parece ser feito tão exatamente para ele que, embora sabendo não ser assim, considera como feito por ele... Ele tende irresistivelmente a apoderar-se do que convém estreitamente à sua pessoa; e a própria linguagem confunde sob o nome de bem a noção do que está adaptado a alguém, satisfazendo-o inteiramente, com a da propriedade desse alguém. Paul Valéry trata da relação Baudelaire/Edgar Poe.

Otacílio Melgaço reiteradamente afirma que toda a sua Criação está fragmentada em fases muito bem planejadas...(talvez por um chiste inconsciente?). Apesar de não ter exata certeza de qual será a próxima e sua conseqüente e assim ad lib, lida com a atual a partir de uma cartografia, no mínimo, entremeticulosa. Tem a ambição de fundar um novo Museu-de-Tudo! E é o que tem erigido indubitavelmente a partir (como já se falara sobre Arthur Bispo do Rosário) do desejo (desiderium) de buscar uma compreensão da ordem cósmica e de reordenar a vida. Qualquer semelhança com inventário e salvacionismo de Noé perante a ameaça do Dilúvio não é mera coincidência.* Nota-se pelos seus registros discográficos, uma semiose ilimitada: uma constante citação a, articulação, mutação de engendros universais e intemporais como se o artista mineiro, através de sua própria linguagem, buscasse a exposição e expansão de já consagrado ultra-alfabetário universal. Um ato paradoxal mas nada mais típico de Melgaço - como pronunciara Foucault: capta-se por sob as diferenças nomeadas, os parentescos subterrâneos entre as coisas, suas similitudes dispersas. É óbvio que ao homem de grandeza é permitido, algumas vezes, presumo, citar-se a si mesmo para evitar parafrasear-se, assim sendo, a voz de Melgaço é o elemento que costura mas também dá autêntico, novo e unívoco rumo a todas suas famílias espirituais notoriamente declaradas por meio de títulos de álbuns, músicas, assim como demais temáticas em películas, fotogramas, objetos, personagens etc. Se atingirmos o vulto espectral de todo caleidoscópio melgaciano, é sua particular compleição que avistaremos.

Sinto que podemos considerar os grandes homens que nos dominam como seres que estão apenas bem mais familiarizados que nós com o que temos de mais profundo. Talvez nada possamos fazer de mais razoável, para imaginar conhecê-los, que descer a nós mesmos e observar o que nos causa mais desejo na ordem dos desejos mais relevantes. Trata-se de supor que o homem mais importante apenas preenche algumas lacunas cuja forma, no entanto, existe em nós. Existe em cada um (é uma hipótese minha)

o lugar que espera algum gênio.

Há muitos lugares que abrigam gênios em Melgaço e todos são explicitados em sua estonteante Casa-de-Espelhos, sua Obra. Uma obra de arte deveria ensinar-nos sempre que não havíamos visto o que vemos. A educação profunda consiste em

desfazer a educação primitiva.

 E a profundidade educativa é o suporte usado por O.M. quando nos faz saltar aos sentidos as releituras das 'Peças' que vão compondo seu ubiquo Museu.

O instinto é um impulso cuja causa e objetivo estão no infinito. Me parece instintivo seu monumental procedimento à medida que reúne uma imensidade de pontos luminosos que vão de outros musicistas a cineastas, de literatos a escultores, de pintores a filósofos e assim a espiral rejeita a finitude.

Escreve Otacílio uma ‘partitura’ – mas só pode escutá-la quando executada pela alma e pelo espírito de outra pessoa. Do visitante (e logo: parte)

de seu Relicário Universal.

 Enfrenta ele os percalços impostos pela contemporaneidade e por isso sua iconoclastia não permanece impune porque as condições de desenvolvimento dos espíritos em profundidade, em sutileza, em perfeição, em poder requintado, estão dissipadas. Creio que Melgaço é uma das raras exceções ainda encabeçando intrépido front: o do artista que deixa seu coração posto a nu, o que renega paraísos artificiais para manter aurático seu ofício, sacerdócio. Tudo, hoje em dia, se declara contra as possibilidades de vida espiritual independente. Sempre que digo 'espírito', estou me remetendo (que não haja dúvidas aos mais desavisados) ao sentido que 'esprit' tem na língua francesa. As lamúrias dos artistas de sessenta anos atrás nos parecem pura retórica perto dos lamentos que a época atual extrairia dos seres líricos, se eles não sentissem a inutilidade de gemer no meio do alarido musical, do barulho tumultuado das máquinas e das armas, dos gritos da multidão e das arengas ingênuas e formidáveis de seus domadores e condutores. Uma reflexão que se detenha um pouco sobre o artista e que se aplique a encontrar-lhe um lugar legítimo no mundo logo atrapalha-se com essa espécie indefinível. Imaginem uma sociedade bem organizada – ou seja, uma sociedade em que cada membro receba dela o equivalente àquilo que ele lhe traz. Essa justiça perfeita elimina todos os seres cuja contribuição não é calculável. A contribuição do artista não o é. Falo do Artista com 'A' maiúsculo, é claro. Ela é nula para uns e enorme para outros. Nenhuma equivalência possível. Esses seres só podem, portanto, subsistir em um sistema social muito malfeito para que as mais belas coisas que o homem fez e que, em compensação, fazem dele realmente um homem, possam ser produzidas. Uma sociedade assim admite a inexatidão das trocas, os expedientes, a esmola e tudo aquilo através do que Verlaine pôde viver sem recorrer, como Villon, aos dividendos distribuídos pelas associações de malfeitores, após terem sido levantados durante a noite, por meio das escaladas e arrombamentos, nos cofres dos ricos e nas sacristias.

Contudo, quando a arte é tomada como um sacerdócio, se há um vaticanato ou franciscanismo a ser exercido, isso pouco importa.

Se Duchamp testamentara que 'o grande artista de amanhã  ficará na obscuridade', não acredito que Melgaço tenha a preocupação de contradizê-lo.

E nem de sacramentá-lo.

Mas como interpretarmos 'Obscuridade'?

Penso nas interpenetrações que partem de Melgaço e abarcam inúmeras incorporações que tomaríamos como consagradas, até mesmo mitológicas. Seus acasalamentos para com o messer Guimarães Rosa, sem se perder em epigonismos; ou Valéry - do qual lhes trago excertos em meu presente texto - e mais Greenaway**, João Cabral de Melo Neto, Klee, Smetak, Bergson, Suassuna, Nietzsche, Mondrian, Gismonti, Miles Davis, Matmos, Lou Salomé, Hermeto, Kandinsky, Elomar, Capote, Cocteau Twins, Schönberg, Barthes, Beckett, Picasso, Villa-Lobos, Nadar, Homero, Isadora Duncan, Klimt, Sebastião Salgado, Webern, João Gilberto, Coltrane, Coleman, Satie, Gaudí, Caymmi, Bergman, Bausch, Beuys, Deleuze, Sófocles, Rodin, Maimônides, Messiaen, Redon, Tarkóvski, Nijinsky, Joyce, John McLaughlin, Kazuo Ohno, Spinoza, Dalí, Rilke e nosso índice seria interminável se aqui

todo utopicamente listado...

Comparo Otacílio Melgaço a Marcel Duchamp em questões de filigranas. Para aqueles que ainda possam se assombrar com a artimanha do multimidiático mineiro de citar literalmente, em sua primeva fase, nomes de obras alteriores ou de incidentalmente abordá-las musicalmente como que em reformados retalhos-de-som, muitas das obras do normando Duchamp tiveram seus temas e mesmo títulos inspirados em, ou, 'legitimamente' copiados de um Jules Laforgue e de uma Gertrude Stein! E, se Marcel abominava o famoso ditado que era costumeiro em seu início de carreira: 'bête  comme un peintre', Otacílio rearticula seu Inventário Universal para além de uma mera figuratividade retiniana, decalcada. Talvez seja somente uma questão de conseguir deixar de ver a coisa como um 'quadro' – de fazer um ‘atraso’ dela no modo mais geral possível, recorrendo não tanto aos diferentes sentidos em que se pode entender a palavra ‘atraso’, mas à totalidade deles com sua carga de indecisão. Indecisos logo irrestritos: tenho a impressão de que ser um Respirateur se tornara realmente o mais vital emblema para ambos...

Em muitas das entrevistas de O.M. podemos notar como ele joga com maestria um jogo - que se ele mesmo não criou, tornou-se um expert digno de todos os louros. Melgaço transforma-se em uma legião ao pronunciar-se, sua boca rompe-se em mil outras, confundindo-se com a gama de menções em torno da qual, incógnito ou não, orbita (repito: no organograma maquiavélico de sua primeira fase) e também, a partir da qual, dita uma nova órbita: a melgaciana. Nada mais positivamente globalizante, nada mais internético, nada mais internáutico, nada mais representativo de uma cultura híbrida que nega fronteiras de quaisquer tipologias ou topografias. Aqui há uma Babel, uma Babel e suas traduções hipertextuais, todas elas! Ei-lo!: o Museu melgaciano pode ao mesmo tempo trazer ecos de um primitivismo protoartístico (ouçam percussiva pré-historicizada 'bacanal' que culmina seu disco Desiderium) e nos catapultar a high tech rede rizogramática (da qual tratava logo acima; quero dizer, de como o artista engloba multirreverberações simultâneas, complementares, onipresentificadas e com elas constrói outro e outro andar de sua

- e assim nossa - Torre).

O homem pode vir a se apropriar daquilo que parece ser feito tão exatamente para ele que, embora sabendo não ser assim, considera como feito, ou, recontextualizado, neo-significado, tresinventado por ele... Aqui posso cotejar determinada bricolagem melgaciana ao ready-made duchampiano. Otacílio transplanta objetos sonoros do mundo cotidiano, onde desempenham uma função concreta, para um espaço estético, e assim, desprovidos de toda a funcionalidade, se tornam perceptíveis em si mesmos... Há um outro paralelo relevante a se fazer entre Duchamp, Melgaço e... - acrescentemos uma outra personagem - ...Warhol. Os três subvertem a Arte quando minam o conceito e direito à autonomia, ou seja, nesse sentido, imolam e colocam uma pedra por sobre o túmulo do que chamaríamos de 'arte burguesa'. Diga-se de passagem, teço inesperadas analogias entre Otacílio Melgaço e Andy Warhol. Se o papa da Pop-Art submeteu os ready-made da produção industrial em massa a um processo de transformação estética e artística (cito Klaus Honnef) e se a mais ligeira intervenção é suficiente para alterar a qualidade de um objeto: Melgaço eleva tais intervenção e transformação a níveis inimagináveis. Assim, posso cotejar a maneira alusiva com que Melgaço, às vezes, destrói e reformula ecos de músicas em suas músicas com a apropriação criativa de um Warhol quanto a imagens de Da Vinci, Mao, Monroe ou Presley. Mas, nesse caso, O.M. é incomparavelmente mais radical pois parte de Presley para chegar a Mao ou de Monroe para Da Vinci e dos quatro ícones desemboca num quinto: Otacílio Melgaço. Percebo traços biográficos comuns entre ambos! Se são antíteses como um 'business-artist' (Andy) e um 'homo ludens' (Otacílio), os dois: tímidos, amáveis, parecendo estar sempre ausentes. A contradição como leitmotiv das suas vidas. Dúvidas sobre datas e locais de nascimento, dissimulações desde de dados da vida pessoal a metodologias de trabalho... Reservados, muito reservados, particularmente lacônicos com a imprensa... Enfim. Retomando o fio-de-ariadne: O.M. pode tender irresistivelmente a apoderar-se do que convém estreitamente à sua pessoa; e a própria linguagem confunde sob o nome de bem a noção do que está adaptado a si mesmo, satisfazendo-o inteiramente, com a da propriedade desse si mesmo. Se tamanha ousadia é perpetrada por um energúmeno e justamente por sê-lo, parece-me algo (de ousadia a poluta aventurice) a ser despojadamente ignorável. Porém se por um Homem de Esprit, chegamos a outro vértice, o mais estupendamente oposto: esse paciente, irônico, olímpico labirinto de linhas, imagens, palavras, sons, nomes múltiplos traça a imagem de seu próprio rosto. Assim estamos tête-à-tête com Melgaço. E aqui estamos diante de um marco heróico nos dias de hoje, genial porque compõe a estatura necessária do vis-à-vis para com aqueles que, nos antecedendo, nos construíram aptos ao Perenal. (Isso, aos que se considerarem real e justificadamente incluídos em tal

privilegiado panteão, nicho ou ghetto).

'Nem o artista criador nem o militante se deixam desviar da sua via pelo estudo ou pela cultura. Tão logo a força criadora os toma, a história torna-se sob suas mãos uma dócil argila. E, no mesmo instante, ele não está mais diante dela com a atitude do erudito, mas com aquela do grego diante do seu mito que modela e recria com amor e com uma devoção respeitosa, mas sobre a qual se arroga o soberano direito do criador'. Henry Corbin estava certo e poderia estar se referindo a Melgaço que acertaria totalmente o alvo com que nos alvejou acima.

Dando termo a minha breve exegese da inaugural fase da Obra de Otacílio Melgaço, temos a impressão de que, doravante, o continente é conhecido, que ele surgiu das ondas e que, no entanto, resta uma infinitude de trabalhos de exploração. Como numa terra nova, os desbravadores põem-se anos a cultivar um solo que o olhar abarca graças ao herói que os conduziu certeiramente até lá. Ainda um signo hegeliano, essa satisfação angustiada do espírito: ele se reconhece inteiramente, e uma longa história lhe resta, diante dele mesmo, para que, em vastíssimo conteúdo, se junte novamente. Esse sentimento apenas

os mestres perseguem.

Assim o persegue O.M.

E sobre a próxima e descomunal fase? Quando virá, como virá? Perguntado, Melgaço responde relapsamente: "Será, quando for,

o que será (de) um Deus

Selvagem..."

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Abaixo, textos que tratam de Bispo do Rosário e Peter Greenaway, dois nomes (dentre iluminados outros, como o de Borges) que muito se aproximam dos intentos melgacianos e vice-versa.

 

*Arthur Bispo do Rosário

(Abelardo de Carvalho)

Há uma década, precisamente, morria no Rio de Janeiro, no hospital psiquiátrico Juliano Moreira, o negro Artur Bispo do Rosário. Sem receio nem comedimento, é por mim considerado o maior e mais genuíno artista brasileiro. Nenhum outro foi tão profundo na sua pesquisa pessoal. Nenhum outro foi tão universal, tão ilimitado e sagrado. Em tempo: Bispo não esculpiu santos, não decorou igrejas, nem nunca trabalhou com nenhuma espécie de tinta, telas ou cavaletes. A matéria prima de seu trabalho advinha do lixo recolhido no hospital, sucatas, restolhos e trapos de pano, que eram desfiados e posteriormente utilizado em seus bordados.

Artur Bispo do Rosário era, dentre outras coisas, um bordador de obras primas. Passou mais da metade de sua vida trancafiado no Juliano Moreira, mumificando seus objetos pessoais: escovas de dente, talheres, tesouras, etc. As loucuras de Artur Bispo do Rosário não cabem numa simples dissertação, é preciso se deparar com a sua vasta obra para se ter a dimensão de quem foi Artur Bispo do Rosário. Era um artista obcecado por jogo de xadrez, misses e geografia; um artista que, com sua sede de registros, extrapolou as dimensões da pintura e criou fantásticas vitrines com copos de alumínio, pentes de plásticos e objetos variados.

Criado por uma família rica, em Botafogo foi, quando jovem, marinheiro e lutador de boxe. Certo dia recebeu uma mensagem de Deus, de Deus, ele dizia: era o início de seu desequilíbrio mental. Internado, ele logo se intitulou xerife e passou a bater nos companheiros. Ficou recluso numa solitária, onde passou grande parte de sua vida. Segundo Bispo, Deus lhe havia pedido que "Reconstruísse o universo" e "Registrasse a sua passagem aqui na terra". Durante meio século, não fez outra coisa. Para ele, a sua obra era um desejo de Deus, mas para o crítico Frederico de Morais, que o apresentou ao mundo, tudo não passava da mais genuína arte.

Em Belo Horizonte foi criado um Centro de Convivência que leva o seu nome. De certa maneira, ao que parece, é um extensão, no que concerne ao tratamento, do Hospital Pedro II, onde existe o bem sucedido Museu do Inconsciente. Em ambos os casos, os pacientes desenvolvem práticas artísticas e os resultados são surpreendentes. Prova disto, é a exposição que se realiza na Feira de Artesanato do Minascentro, em Belo Horizonte.

Hoje o nome de Artur Bispo do Rosário já correu os quatro cantos do planeta. Os europeus se extasiaram e, desde então, o reverenciam. Sua exposição visitou as principais capitais do mundo. Em um de seus mantos, Artur Bispo do Rosário bordou o nome das mulheres que seriam salvas, por ele, no Juízo Final. Este manto deveria acompanhar-lhe na subida aos céus, cujo desejo não foi atendido. Todos os principais conceitos e seguimentos de arte moderna estão contido na sua obra. É preciso observar que Bispo, sendo interno, estava alienado do mundo e por isso a sua originalidade é incontestável. Quando, em vida, quiseram expor os seus trabalhos, ele foi enfático: "Não faço isto para os homens, mas para Deus".

 

**O inventário do mundo: Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway

(Maria Esther Maciel)

Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício.
Walter Benjamin

 Aproximar artistas de contextos radicalmente distintos e com histórias de vida não menos dissonantes não deixa de ser um exercício de imaginação. Sobretudo quando não há pontos de interseção entre suas trajetórias criativas, nem evidência de qualquer diálogo explícito entre eles que possa justificar possíveis afinidades. Este é o caso da aproximação que tentarei estabelecer entre o artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário e o cineasta britânico Peter Greenaway, à luz de alguns escritos de Jorge Luis Borges.

Advindos de culturas inteiramente diversas, criando a partir de condições sociais e de motivações estéticas contrastantes, Bispo e Greenaway encontram-se, entretanto, no mesmo apreço pelas taxonomias e enumerações impossíveis, compartilhando uma certa cumplicidade em relação ao que Borges chamou de "la tarea de dibujar el mundo". Não foi à toa que Greenaway, em seu primeiro contato com a obra de Bispo, em agosto de 1998, quando esteve no Rio de Janeiro para a exibição da ópera "100 Objetos para Representar o Mundo", reconheceu as afinidades de seu próprio trabalho com o do artista brasileiro – este um ex-pugilista, ex-marinheiro e ex-empregado doméstico, negro, psicótico, nascido em 1909. "Ele é mais obsessivo do que eu; a obsessão dele é infinita" – admitiu Greenaway – à medida que percorria o vasto acervo dos trabalhos de Bispo, composto de quase mil peças criadas ao longo de cinqüenta anos de confinamento do artista em uma instituição psiquiátrica.

Essas peças, que vão desde objetos avulsos, como navios de madeiras ou uma roda de bicicleta, até assemblages, fardões, fichários, faixas, panôs, coleções de miniaturas, tabuleiros com peças de xadrez e um majestoso manto bordado, dentre vários outros artefatos, compunham o que o próprio artista designou de "registros sobre minha passagem sobre a terra", um catálogo de todas as coisas do mundo, que, segundo ele, seria apresentado a Deus no dia do Julgamento Final. De meados dos anos 50 até sua morte em 1989, Bispo se dedicou, com grande afinco e extraordinário senso de rigor, à sua missão, convicto de que tinha sido o escolhido de Deus para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a terra com seus "objetos mumificados" e suas listas infinitas de nomes e imagens bordadas sobre panos ordinários. Buscava sua matéria prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou. Compôs, a partir desse entulho, uma narrativa visual de sua passagem pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas da taxonomia e, ao mesmo tempo, atravessada pelo movimento espontâneo da imaginação. Nela, como explica Eliana Lourenço em ensaio sobre o artista, Bispo deixou inscrito o seu "desejo de buscar uma compreensão da ordem cósmica e de reordenar a vida".

Difícil não comparar esse trabalho de catalogação com o que, segundo a mitologia bíblica, Noé realizou mediante a ameaça do Dilúvio. Considerado por estudiosos da taxonomia como o primeiro colecionador da história da humanidade, o primeiro – segundo John Elsner e Roger Cardinal – a sofrer a "patologia da completude a todo custo", Noé converteu o ato de inventariar todas as criaturas da terra em um antídoto contra a destrutividade do tempo e da morte. Sua paixão foi colocada a serviço da salvação do mundo, como a de Bispo do Rosário. Com a diferença de que, para Bispo, o mundo não se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a partir do que nele foi depositado pela cultura. Interessava-lhe, particularmente, coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e das nomenclaturas que as acompanham. Ou como ele mesmo dizia, "o material existente na terra dos homens". Para depois, ordenar tudo, fazer tudo coexistir em um todo finito, a partir de uma lógica desconcertante, na qual se conjugam, paradoxalmente, a lucidez e o delírio.

Lembrando, de certa forma, algumas classificações borgeanas, como a que caracteriza, por exemplo, a famosa enciclopédia chinesa descrita no ensaio sobre John Wilkins, as coleções de Bispo apresentam, na forma como são organizadas, uma ordenação que aponta, simultaneamente, para os modelos taxonômicos sistematizados pelos códigos reconhecidos de classificação e para uma maneira particular de captar, como diria Foucault, "por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, os parentescos subterrâneos entre as coisas, suas similitudes dispersas". Ou, num plano inversamente simétrico: captar, por sob as semelhanças explícitas, as diferenças invisíveis entre os objetos repetidos de uma série. O resultado de todo esse processo, que tem como função alegórica representar a complexa sintaxe do mundo, não poderia ser senão a fragmentação dessa mesma sintaxe, a revelação da vertigem caótica da realidade circundante.

Jean Baudrillard, em ensaio sobre o ato de colecionar, diz que todo objeto, ao ser colecionado, deixa de ser definido pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador. Abstraído de seu contexto, perde sua presentidade, desloca sua temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo, no qual a história é substituída pela classificação. Nesse sentido, colecionar se converte em uma forma de enclausurar o objeto, des-historicizá-lo, de maneira que seu contexto seja abolido em favor da lógica sincrônica da coleção.

No caso de Bispo de Rosário, entretanto, isso se dá de forma mais complexa. Seus objetos, mesmo que desvestidos do caráter funcional e descartável, ao serem subjetivizados pela posse e pela criatividade do artista, passam a dizer muito mais de seu contexto do que quando ocupavam simplesmente o espaço utilitário de suas funções imediatas. Eles adquirem uma linguagem, convertem-se em metonímias do próprio contexto de que foram tirados. As coleções de Bispo arrancam o objeto de sua própria inércia, dão-lhe um nome, um lugar e uma história. Ao mesmo tempo em que se configuram como registros de um tempo, de uma vida e de um contexto marcados pela pobreza, pela loucura e pela exclusão, elas se transfiguram em metáforas sempre renovadas do mundo, confirmando as palavras de um outro artista, Hélio Oiticica, segundo o qual "o objeto é a descoberta do mundo a cada instante".

Isso se constata sobretudo quando tomamos os objetos avulsos de Bispo, verdadeiros ready-made, que guardam visíveis semelhanças com certos artefatos de Marcel Duchamp, como a roda de bicicleta, por exemplo, sem que haja por parte do artista brasileiro qualquer dívida para com o artista francês. E por um motivo muito simples: Bispo nem mesmo sabia da existência de Duchamp. Sua história não lhe permitiu entrar no mundo intelectualizado dos movimentos estéticos, dos salões de arte, dos espaços privilegiados do saber letrado. Mal sabia escrever, apesar dos impressionantes textos que bordou, das inúmeras listas de nomes que escreveu e dos mapas detalhados que traçou em seus estandartes de pano.

Completamente alheio aos movimentos estéticos que, nos anos 50 e 60 fervilhavam nos meios culturais brasileiros e internacionais, dialogava, sem saber, tanto com os experimentos internacionais da chamada Pop Art, quanto com algumas expressões da neovanguarda brasileira que, na época, ganhava espaço sobretudo no cenário cultural carioca. Mesmo na claustrofobia de seu confinamento psiquiátrico, Bispo manteve uma inexplicável sintonia com o seu próprio tempo, chegando a antecipar também alguns aspectos da arte contemporânea. Como afirma o crítico de arte Frederico Morais, um dos maiores divulgadores da obra do artista:

"Sem que algum dia tivesse saído de sua cela para visitar exposições ou folhear revistas de arte em alguma biblioteca sofisticada, Bispo fez nos anos 60 assemblages como as de Arman, Cesar, Martial Raysse e Daniel Spoerri, integrantes do Novo Realismo. (...) A lógica formal com que Bispo envolve seus trabalhos antecipa certos aspectos da nova escultura inglesa, de um Tony Cragg, por exemplo. (...) Os textos costurados de Bispo lembram os manuscritos de Joaquim Torres-García, nos quais ele funde palavra e imagem. (...) O manto e as demais roupas de Bispo remetem aos parangolés de Hélio Oiticica, tanto quanto sua cama-nave assemelha-se à casa-ninho de Oiticica em sua residência nova-iorquina ou ao Éden que ele expôs em Sussex, Inglaterra."

Como não retornar aqui, aproveitando a lista de Morais, às similitudes dissonantes entre a obsessão de Bispo por catálogos, enumerações, mapas e nomenclaturas e a de Greenaway, que através de seus filmes, trabalhos de artes plásticas, óperas e escritos ficcionais, também tem se dedicado à tarefa de converter o mundo em uma grande enciclopédia, valendo-se dos sistemas racionais de classificação e mostrando, ao mesmo tempo, os pontos em que tais sistemas transbordam e se rompem? Vale lembrar que o que mais chamou a atenção de Greenaway em relação à obra de Bispo, durante sua já referida visita ao Museu Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, foi precisamente o uso criativo que o artista brasileiro fez das taxonomias, a forma como ele parece "zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia".

Com tal observação, Greenaway – um eterno seduzido pelos "excitements of research, collection and collation" – não apenas marca a sua cumplicidade oblíqua com a obra do artista brasileiro, como também define o seu próprio gesto catalogador. Um gesto que não se define necessariamente pelo objetivo ilusório de completude, mas pela necessidade crítica de mostrar como os princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos, numéricos, estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos.

Desde os seus primeiros pseudo-documentários, como "Windows", em que faz, pela via do nonsense, um estudo estatístico de casos de defenestração, "H is for House", em que leva ao infinito as possibilidades e impossibilidades da nomenclatura, ou "Act of God", em que levanta uma lista insólita de casos de pessoas atingidas por raios, Greenaway vem jogando ironicamente com as taxonomias, conjugando as regras de classificação com as leis paródicas da ficção. Para não falar aqui de seus longa-metragens, todos eles estruturados em forma de catálogos narrativos, de cuja simetria rigorosa emerge, paradoxalmente, uma lógica desordenadora e muitas vezes absurda. Poderíamos citar ainda seus trabalhos de artes plásticas e, especialmente, os de curadoria, como o que teve como título "Some Organising Principles", uma exposição em Wales (1993), na qual, através de obras selecionadas, criou uma espécie de história sincrônica da taxonomia, do século XVII à época contemporânea. Em todos esses trabalhos, Greenaway não busca senão constatar o caráter ilusório de toda tentativa de ordenação do mundo, de todo impulso de se colocar, como quis Mallarmé, o mundo inteiro em um Livro.

É nesse sentido que Greenaway (e, por extensão, Bispo) também poderia ser associado a Borges, dado o conhecido apreço de Borges pelas séries temáticas, combinações insólitas, listas e categorizações. Bastaria mencionarmos o modelo taxonômico que o escritor argentino usou na delirante descrição do mundo enciclopédico de Tlön, o planeta "donde abundan los sistemas increíbles", na enumeração dos catálogos infinitos da "Biblioteca de Babel", na explicação do idioma analítico de John Wilkins, e ainda nos verbetes insólitos do bestiário Manual de zoología fantástica. Em todos esses textos, "há uma reversão do típico uso épico de catálogos e listas", como apontou Flora Sussekind, visto que Borges não almeja necessariamente classificar racionalmente a realidade ou o universo, mas revelar o caráter arbitrário de todos os sistemas de classificação. Seus catálogos e listas seriam, portanto, "auto-anulatórios", por se basearem no famoso princípio do próprio autor, segundo o qual "não há universo no sentido orgânico, unificador, que tem essa ambiciosa palavra". E se em Greenaway este gesto crítico se repete é porque suas conjeturas sobre o que Borges chamou de "secreto dicionário de Deus" também não almejam tornar o caos do mundo mais legível, mas evidenciar o impossível de sua organicidade e unidade.

Não seria descabido dizer, portanto, que o cineasta britânico busca chegar, pelas vias transversas da ironia, ao que Bispo do Rosário alcançou, de forma espontânea, com a força da imaginação: revelar, através das ordenações taxonômicas, a desordem e a multiplicidade do mundo. E é nesse sentido que ele transforma em projeto o que para Bispo foi uma missão.

Isso pode ser visto, de forma explícita, na já mencionada ópera-instalação, "100 Objetos para representar o Mundo", escrita e co-dirigida por Greenaway, com música de Jean-Baptiste Barriére. Definido como uma "opera-prop" (prop, em inglês é um termo do teatro que significa acessórios do contra-regra, adereços), o trabalho é uma paródia da história das duas naves Voyager que, contendo mais de uma centena de imagens e arquivos sonoros, foram enviadas ao espaço pelos norte-americanos, em 1977, com o propósito de mostrar a eventuais extra-terrestres a existência da Terra. Como argumenta o próprio Greenaway, é provável que tal material representativo, compactado em um espaço restrito, tenha se limitado às referências culturais da década de 70 e à visão subjetiva de um grupo de "americanos brancos, de classe-média, com formação científica, e talvez com arrogantes ideais democráticos e atitudes paternalistas em relação ao resto do mundo".

Com o visível propósito de ironizar tal empreendimento, Greenaway cria a sua própria lista, inventariando um número limitado de objetos (concretos e abstratos) que, em sua opinião, poderia simbolizar e descrever (ironicamente, é claro) a multiplicidade inumerável das realizações do homem e da natureza na terra. Tais objetos, que vão desde o mais prosaico guarda-chuva ou uma coleção de sapatos até figuras representativas do imaginário cultural do Ocidente, como Adão e Eva, "A Vênus de Willendorf", "O chapéu, o casaco e a pasta de Freud", são recolhidos de temporalidades e culturas diversas (dependendo do país onde a ópera é apresentada, a lista passa a incorporar símbolos locais) e dispostos no espaço serial de um catálogo multimídia, cuja finalidade principal não difere da de outros projetos taxonômicos do artista: desqualificar todo e qualquer esforço humano de representação racional do mundo. Uma lista que atesta não apenas a nossa diversidade, mas também a nossa vulnerabilidade, nossa irrelevância e nossa megalomania, tornando-se, portanto, crítica de si mesma e de sua própria pretensão.

Para a apresentação de tal lista, Greenaway converte o palco em uma espécie de sala de exposição, onde alguns objetos são dispostos segundo a lógica curatorial do diretor. Elementos cinemáticos e teatrais contribuem para o impacto visual do espetáculo, pois à medida que os cem objetos vão sendo apresentados em uma seqüência narrativa, uma profusão tecnológica de vozes, luzes, textos e imagens projetadas sobre o palco satura o espaço de signos, apontando para a impossibilidade de se esgotar a pluralidade de referências que circunda culturalmente cada "objeto" apresentado. Um projeto enciclopédico, sem dúvida, que guarda similitudes com certos projetos literários de autores contemporâneos que também fizeram de suas obras verdadeiras enciclopédias ficcionais. Enciclopédia, aqui, entendida não como um conjunto fechado e definitivo, mas como uma totalidade incompleta, conjetural, multíplice. Como é também a obra de Bispo, feita de um saber não legitimado socialmente, fora da ordem canônica da cultura erudita e, portanto, em estado de deslocamento, de novidade e de alteridade radical em relação aos modelos enciclopédicos conhecidos.

Umberto Eco, ao comparar o dicionário à enciclopédia, chama a atenção para o princípio de "semiose ilimitada" que define o modelo enciclopédico. Segundo ele, a enciclopédia, ao contrário do que almejaram os filósofos iluministas, não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado, mas fornece regras, em geral "míopes", para que, "segundo algum critério provisório de ordem", se busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam. Nesse sentido, tal modelo destoaria do de dicionário, por excluir definitivamente, segundo Eco, "a possibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades, os semas". Em suas palavras:

"O conhecimento enciclopédico seria de natureza desordenada, de formato incontrolável, e praticamente deveria fazer parte do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos saber sobre os cães, até a particularidade por que minha irmã possui uma cadela chamada Best – em suma, um saber incontrolável até para Funes, o Memorioso."

Como vimos, os objetos apresentados por Bispo em suas coleções são visivelmente enciclopédicos, pois abrangem toda a esfera das matérias a que o homem empresta uma forma. Eles compõem, em conexão com os inúmeros textos, desenhos, mapas, em geral bordados em roupas e estandartes, um mundo desordenado pelas suas próprias regras de organização, através do qual o artista busca dar um sentido à sua própria realidade. É interessante observar ainda o fato de que vários de seus objetos também aparecem na ópera de Greenaway, como os sapatos em série, uma coleção de moedas, a cadeira-de-rodas, o guarda-chuva, a cama, o barco, a boneca, o lixo, objetos de uso doméstico, além dos mapas, textos e das listas intermináveis de palavras começadas com uma determinada letra do alfabeto. O que confirma, mais uma vez, as imprevistas afinidades entre os dois.

Na interseção entre esses dois artistas que nunca se encontraram, cada um cria uma forma distinta (porque subjetiva e cultural) no ato comum de inventariar o mundo. Se, por um lado, a subjetividade de Greenaway é a da consciência irônica, lapidada pelo exercício diário de uma lucidez que, de tão lúcida, revela sua própria vertigem, por outro, a de Bispo advém de uma cumplicidade visceral com a experiência, com o agora de seu próprio corpo, de sua loucura e de sua realidade. Enquanto um busca sua matéria-prima no espaço canônico da cultura ocidental, o outro recolhe a sua da precariedade material de sua existência cotidiana. Um faz do rigor um delírio; o outro extrai do delírio o rigor. Ambos mostram, por caminhos inversos, que a desordem não deixa de habitar qualquer de nossas tentativas de apreensão totalizadora do mundo, visto que o paradigma da construção e reconstrução dos mundos míticos, místicos, estéticos e até mesmo científicos, é sempre, como aponta Félix Guattari, o da "narratividade delirante". E isso é o que também Borges parece nos dizer em seus textos, como neste que fecha o seu livro El hacedor, e que reproduzo aqui, a título de conclusão:

"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."

 

II

r e t r a t o

d o

a r t i s t a

Q u a n d o

M e l g a ç o

ou

D a s

R e f l e x õ e s

Q u e

O

E s p e l h o

F a z

 

" (...) Se é uma quimera tentar realmente defini-lo, sou tentado a imaginar quais seriam as mil e uma faces do artista Melgaço se diante dessa máquina infernal a engrenar um retrato fiel de quem nela é refletido: o Espelho. Retrato fiel? Espelho,

espelho meu: outra e outra quimera.

Mesmo assim, se torna mais que inexorável encontrar na pena do escritor

João Guimarães Rosa, messer  de Otacílio,

uma das mais intrigantes respostas: 

 

(Convido você internauta a seguir-me)

 

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece,

há um milagre que não estamos vendo.

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça,

é de fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições… E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores,

como esses com que os meninos brincam. Duvida?

Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse…

Sim, são para se ter medo, os espelhos.

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz—treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade?

Alongo-me, porém. Contava-lhe…

— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o.

Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras,

ou de inferior significado.

Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora… Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo.. Sem ver o que, em meu rosto, ]

não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses,

de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia… Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?… Tirei-me.

Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer

encarar-me. Nada. E, o que tomadamente

me estarreceu: eu não via os meus olhos.

No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho…

Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os,

sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia,

para deter-se acolá, refletida, surpresa?

Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: rostinho de menino,

de menos-que-menino, só. Só.

Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam

de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”… — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — "Você chegou a existir?"

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos

e de seus esbarros titubeados. Sim?"

(Excerto de intróito à obra melgaciana, por Caio Campbell

– um de seus curadores.)

 

 

 

 

 

 

 

III

"Questionam-me incessantemente a respeito... 

...da razão de em palcos não pisar. A razão de permanecer um artista dito recluso, preferidor do papel de um engendrista obscuro a de expositor carne-e-ossificado em ribaltas e ribeiras. Tenho ciência de que em algum quando terei de romper meu geralista exílio, minha diáspora-para-dentro, às-avessas e permitir-me vis-à-viseiro. Até o presente dia (e a saber da contagem regressiva que não desvalidará meu relato aqui incrustado), dentre pertinentes argumentos que ratificam, a fazer valer expressão jocosa de Raquel de Queiroz, "minha inclusão fora" do proscênio:

venho proclamar a defesa da Auraticidade.

 

Cito Marcelino Peixoto Melo: trabalho e religião foram as primeiras formas de sociabilidade. Instituíram os símbolos de organização humana do espaço e do tempo, do corpo e do espírito. As artes (técnicas/mecânicas) formaram um par inseparável. Na relação com o sagrado, as atividades humanas assumiram a forma  de rituais: a guerra, a semeadura, a colheita, o nascimento e a morte, a doença e cura, as estações etc, tudo assume a forma de culto religioso. A sacralização e a ritualização da vida fazem com que as artes mecânicas (medicina, agricultura, música, adornos etc) tornem-se elementos de cultos. As belas artes (sete artes) nascem no interior dos cultos e para servi-los. Levarão milhares de anos para que surjam como atividade cultural autônoma. A dimensão religiosa das artes deu aos objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamin: a aura. A aura é a absoluta singularidade do ser (irrepetível). A obra de arte aurática é aquela que torna distante o que está perto, porque transfigura a realidade, dando-lhe a qualidade da transcendência. “Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.” As artes tinham como finalidade sacralizar e divinizar o mundo – tornando-o distante e transcendente – e, ao mesmo tempo, presentificar os deuses aos homens – tornando o divino próximo e imanente – sua origem religiosa transmitiu às obras de arte a qualidade aurática mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se tornarem autônomas e belas-artes. “O valor único da obra de arte 'autêntica' tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja." Contudo "(…) é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas 'ficarem mais próximas' é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetitividade. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar 'o semelhante no mundo' é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único. Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição. (…) a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na História intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita. Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX. Com a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de criações sempre novas. Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia elas começaram a situar-se no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração, que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século XIX. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos. Seria possível reconstituir a História da arte a partir do confronto de dois pólos, no interior da própria obra de arte, e ver o conteúdo dessa História na variação do peso conferido seja a um pólo, seja a outro. Os dois pólos são o valor de culto da obra e seu valor de exposição. A reprodução artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que existem, e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de artes: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis, do solo, para o observador. À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa. A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-História. Com efeito, assim como na pré-História a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, e que talvez se revele mais tarde como secundária. Uma coisa é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão. É certo, também, que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte, especialmente visível no cinema, permite um confronto com a arte da pré-História, não só do ponto de vista metodológico, como material. Essa arte registrava certas imagens, a serviço da magia, com funções práticas: seja como execução de atividades mágicas, seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíram efeitos mágicos. Os temas eram o homem e seu meio, copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, não menos elementar que a da sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econômicas. Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido." (Walter Benjamin)

 

Refletindo acerca do universo musical, refuto o possuimento do objeto (do desejo) artístico através, em princípio, do totalitarismo imputado à imagem. Da exacerbação de seus prolixos suportes: fotos, vídeos, (muitas vezes) débeis e óbvias artes gráficas do serialismo discográfico em que a estampa do artista chafurda - pauteriza(da), massivos eventos televisivos...e, chegando a um ponto extremo: espetáculos. A cópia e reprodução indiscriminadas da imagem do artista estabelecem sufocante círculo vicioso plurimidiático que me obriga a realizar crucial (saramágico) Elogio da Cegueira, desvisão como uma das condições aguerridas da ouvidura em sua complexa contemporaneidade! Sim, meu particular ausenciamento visual (mesmo físico - em palcos -) é indicação extremista de uma bussolaridade plenamente auditiva quanto a

melgacianas criações e não me preocupo com

o rompimento imediato de insubordinável umbilicalidade.

Me parece que insistem em convencer o público de que as responsabilidades artísticas mais importantes (eis um fenômeno que não se volta somente às artes, é óbvio e aterrorizante) cabem unicamente aos olhos: eis uma ditadura que renego e me torno frontalmente subversivo a. Como se, na seara sonora, os olhos apreendessem mais depressa do que os ouvidos...e assim o culto à aceleração ótico-apreensiva me soa como abovinamento hediondo. Sim, creio que a reprodução artística há de começar com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens: ou melhor, já a extrapolar Benjamin: o que importa, a priori, nos sons - o que me é relevante quanto ao musicista: é que exista, e não necessariamente que seja visto. Que seja ouvido, ouvivido... Ouvivisto: eis uma possibilidade dentre várias porém preponderantemente hierárquica não o é. Penso, atávico, no artista como no alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna: ser instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ser visto pelos espíritos. Uma pergunta incômoda: seria anacrônico afirmar que, se tomo como pressuposto a arte e seu inexorável valor de culto, conquistar e reivindicar tal valor não nos obrigaria a manter (quase) secretas as/nossas obras? Musicista e imagética sacra: secretos: imunes ao despotismo ultra-ocular. Estátuas divinas, certas madonas, certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis, do solo, para o observador. Mas não inaudíveis! Defendo, não de modo totalitário ou nulo a exceções, o culto à invisibilidade do músico; artista e público: pactários-do-desver como um mecanismo de ressacralização do que nos seja quintessencialmente sonoroso, enfim: musical. Sendo assim, questiono a emancipação, leia-se: descolamento da arte - de seu cunho ritual. À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que sejam expostas. Atualmente tal nível atinge um paroxismo holocáustico. A exponibilidade de um busto, que pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina, que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa. Pois eis uma ruptura indesejável a meus olhos (sic): a exponibilidade da imagem do que chamarei: fon'omem - não pode nem deve atingir tal majoração. Com efeito, assim como na pré-História a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico. Brado eu a favor de tal magicidade! Traduzo-a idiossincraticamente: Aura! A arte a serviço da magia, com funções práticas: seja como execução de atividades mágicas, seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíram efeitos mágicos. Entendam como quiser, senhoras e senhores. Defendo uma sociedade (sua - em âmago onipropulsor - artisticidade, portanto) cuja técnica se refunda inteiramente com/n'o ritual. A Aura, absoluta singularidade do ser (irrepetível). A obra de arte aurática: a que transfigura a realidade, dando-lhe a qualidade da transcendência.

Por outro lado, a tirania da imagem à qual sucumbe o artista (crendo que assim garantirá um veio mais corpulento de êxito em carreira pois em consonância estará com os ditames do mercado que, em maior ou menor proporção, desalma o que lhe resta de talento - círculo vicioso e massacrante) acaba tornando-o simulacro falho, aleijado do que haveria como transcendental. E, em decorrência, a fon'arte-em-si: um fenômeno paliativo que propicia a proliferação de um império-do-olhar que é, a re-ver o contexto do que aqui é argumentado: desritualizado e incultuável. O ser artístico que se desaura, que abdica de singularidade/autenticidade...é metabolizado pela própria reprodutividade/repetitividade do que incessantemente - e com sua conivência - defeca visualmente e tudo, me parece, se torna indiscernível a tal oftalmescatologia. Rechaço essa perspectiva abertamente. E minha invisibilidade, concluo, é uma afronta, uma impertinência, um manifesto vivo, aktion, represália a isso. Protelar o pisar em palcos é, por fim, uma demonstração radical disso. Um sinal claro à priorização das audições em estado bruto, anima-do; um embandeiramento à reeducação dos (e para novos) escutares: literalmente: iconoclásticos!

À la Tanizaki, meu epílogo é, além da Cegueira e por conseguinte: um Elogio da Sombra. Para os ocidentais, o mais importante aliado da beleza foi sempre a luz, a ausência de sombras. Para a estética tradicional japonesa, do rosto das mulheres às salas dos templos, o essencial está na sombra e nos seus efeitos. A cor das lacas, dos atores de nô, das paredes dos corredores, dos beirais das casas, da luz que há na sombra...nos previnem contra 'tudo o que brilha', ofusca. "Estranhos seres nebulosos e ilusórios deviam esgueirar-se nessa 'escuridão visível' reinante no interior das mansões antigas, propiciando alucinações e aterrorizando mais que a noite externa. Com certeza era desse tipo de negrume que saltavam monstros e seres fantasmagóricos, mas...as mulheres que ali viviam, cercadas por cortinados, biombos e portas (...)? A intensa treva com certeza revoluteava dez, vinte vezes em torno delas, preenchendo todo o vazio ao redor da gola, da manga ou da prega do quimono. Mas esperem: pode ser que a treva, em vez de envolvê-las, brotasse - isso sim - de seus corpos (...) qual teia urdida por gigantesca aranha... "Talvez o essencial seja mesmo invisível aos olhos. Mas são umbrais a outras genesíacas, brotáveis, auráticas trevas: os ouvidos...

À-luz-sina-ação..." (O.M.)

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