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"Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, (...), de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso."

(Rainer Maria Rilke)

 

 

I - Dos Primórdios da Poética

De Otacílio Melgaço

 

‘Assim, pois, reprimo-me e afogo a chamada sedutora que brota no obscuro soluço. Ah, a quem poderemos recorrer? Não aos anjos, tampouco aos homens. E já os animais, sagazes, advertem que inseguros e vacilantes são os nossos passos através do mundo interpretado. Oh, e a noite, a noite, quando o vento cheio de espaço cósmico nos consome a face...’

(Da Noite) ‘Será mais ligeira aos amantes? Ah, eles não fazem outra coisa que ocultar um ao outro seu destino.’

 ‘Oxalá então à saída da visão raivosa, inicie o cantar de júbilo e glória aos anjos.’

 

II - Do Ato da Criação Melgaciana

 

‘Vivo minha vida em círculos que se abrem sobre as coisas, amplos. Talvez não consiga cerrar o último porém quero tentar. Giro em torno de Deus (Deus: a mais antiga das obras de arte), antiga torre, giro já há milhares de anos. E ainda não sei se sou águia ou tormenta ou se sou um grande cântico.’

‘Que direito teriam' essas obras 'a nascer de mim se não fossem mais do que eu? Minhas obras não seriam mais que a continuação de uma disposição e de progresso interiores, de um devir mais puro e mais vasto de toda minha natureza... Por acaso eu tenho direito a dar uma explicação justa de minhas obras?

Elas me superam até ao infinito.’

‘Oh velha maldição dos poetas que se queixam quando devem dizer; que sempre opinam sobre seus sentimentos em lugar de formá-los, e supõem que quanto neles seja triste e alegre saberiam e poderiam em poemas chorá-lo ou festejá-lo. Como enfermos convertem em lamento sua linguagem, para dizer onde lhes dói, em vez de se transformarem, duros, em palavras, como o canteiro de uma catedral

transforma-se na calma da pedra...’

 

III - Do (re)Voltar de

Melgaço à Récita

 

‘...essas transformações silenciosas, secretas, trêmulas, as únicas das quais sairão os entendimentos e unidades de uma distância mais iluminada.’

‘Nossa tarefa é imprimir em nós mesmos esta terra transitória e caduca, tão profunda, tão dolorosa e apaixonadamente, que sua essência volte a ressuscitar em nós, invisível.’

‘Mantenhamo-nos entre os dentes para a transformação e que ela nos capte de todo em sua cabeça contempladora.’

‘Tua salvação fora ver como entra pelos versos o destino e não volta a sair, e faz-se imagem e somente imagem: um antepassado que, quanto tu o miras, em seu contorno, parece e não parece assemelhar-se a ti.’

‘Provemos perdidamente o mel do visível para acumulá-lo na grande colméia de ouro do Invisível.’

IV - A uma Melgaciana Lira Delirante

‘Quando via os demais voltarem-se para Deus com todas as forças, não os compreendia, pois mesmo que eu por ventura o tivesse menos que eles, não haveria obstáculos entre Ele e mim, e eu pesava pouco em seu coração. Por acaso não é Ele quem deve tomar posse de nós, e nossa tarefa não consiste tão somente em

deixar-nos atrair por Ele?’

Ele: Deus. Todavia é ateu o homem Otacílio Melgaço. Ele-Ela: a Poesia. Por acaso não é Ela que deve tomar posse de nós, e nossa tarefa não consiste tão somente em deixar-nos atrair por Ela? Foi ao cântico dos cânticos declamante da tal Musa a que se rendeu o artista, sim: religante artista Melgaço. Pois lhe deu Voz. A própria. Por fim, após vasto prologal fraseado rilkeano, arremataria com uma quase-prece

a incensar os 'recitais' de O.M.:

Musa, 'é tempo. Enorme foi o verão. Põe já tua sombra sobre o relógio de sol e deixa solto o vento nas planícies.’

Ave!

 

 

 

"Ao nauta o mar obscuro é a rota clara. Tu, na confusa solidão da vida, a ti mesmo te elege (não sabes de outro) o porto. Não tenhas nada nas mãos, senta-te ao sol. Abdica e sê rei de ti próprio. Altivamente donos de nós-mesmos, usemos a existência... Que me pode o Destino conceder melhor que o lapso sensual da vida...? Pudesse eu suspender, inda que em sonho, o Apolíneo curso, e conhecer-me, inda que louco, gêmeo de uma hora imperecível!" (Ricardo Reis)

 

"Em uma nota quase (inde)cifrada - encontrada na fortuna crítica infindamente tecida pelo señor Paz

a respeito de O.M. - há o seguinte fragmento

pessoano (aqui, inscrito em mármore, assume ares

de concisa frasária biografagem):

 

´Torna o teu coração digno dos deuses

e deixa a vida incerta ser quem seja.´" [Confrari|om]

 

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