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Ao professor que lhe pediu dados biográficos, ítalo Calvino respondeu:

"ainda sou daqueles que acreditam que de um artista só contam as obras - quando contam, naturalmente. É por isso que não dou informações biográficas, ou, se dou, são falsas. e procuro sempre modificá-las. pergunte o que quer saber e vou responder. mas jamais direi a verdade." (O.M.)

N-OTA:

 

"O reservado musicólogo portenho Pablo Suarez Paz é quem possui a chave da fortuna crítica de Otacílio Melgaço. Pelo próprio foi eleito. Fruto de uma relação de respeitosa admiração e imensurável fraternalidade. Realiza, o argentino, via epístolas tácteis e também eletrônicas, atemporais ciclos de conversações com o artista brasileiro. Como num jogo de xadrez à distância, cada indagação transmuta-se em movedura que, ao longo dos átimos, recebe contrapartida melgaciana. Logo, menos oral e mais literária (como prefere O.M., pois para ele - se há conteúdo escriturado necessariamente há de se proclamar continente liricográfico! -), a cordial peleja de ambos, segundo Otacílio, tende à sempiternidade. Imprevisível e sazonalmente inéditas dialéticas estarão à disposição de revisitações por parte dos Internautas pois talweltinnenraum haveria de triduano término ter?

 

Vale chamar a atenção para como O.M. assume uma legião de vozes, fazendo jus ao que há de mais seminal no conceito de rizomaticidade internética. Ele se faz babélico no entanto é um politradutor de si mesmo; Minotauro a se cumprir como fiador de Ariadne. Obviamente, para os Netcitizens que se conluiam a um modus vivendi cubicularmente restrito a ´140 caracteres´, a presença do discurso otaciliano é uma Esfinge implacável. Aos que, extrapolando a estereotipia de um mundo virtual efemericida, forem adiante - com espírito desbravador e de fruição, certamente descobrirão que aqui: ´decifrar´ e ´ser devorado´ são auscultantes sinônimos. 

 

Em suma, para além da Obra - colóquios desse quilate - assim como eventuais depoimentos, apontamentos, polinizantes fragmentos... - (acreditamos piamente que) são a vereda mais adequada à descoberta constantemente renovada de Quem Otacílio Melgaço É; de Em Quem Ele Está Sempre Se Tornando..." [Confraria|M]

 

A saber mais a respeito de P.S.P.: Milonga del Angel

E N T R E

 

V I S T A S

 

Primavera, 

 

'Captatio Benevolentiae ou Jó Espera Que Deus O Ajude Contra Deus'

 

P.S.P. - Biografia. Gênese apropriada a nossa série de entrevistas. Otacílio Melgaço é 'biografável'? Ou sempre se nos revelará convidativa incógnita? 

 

Vide resposta d'Otacílio Melgaço: aqui

 

Outono, 

 

'Gira, Melgaço ou Double-De-Lui-Même'

 

P.S.P. - Arte adentro, Senhor Melgaço?

 

O.M. - É um homem estranho, prezado e pacífico portenho! Ainda está interessado em Arte? Dificilmente é uma preocupação do nosso tempo. Hoje, tanto os Artistas, como Os que Os admiram, são vistos como fósseis. Imagine um megatério ou um diplodocus passeando pelas ruas de Florença, Praga ou mesmo Cordisburgo! Essa deve ser a impressão que produzimos em nossos contemporâneos... 

A época em que vivemos é a dos tecnocratas, não a dos Artistas. Na vida moderna, por mais que alguns neguem: o que se busca é utilitarismo, o castrador e por-baixo-nivelador utilitarismo. Somos forçados a aperfeiçoar nossa existência materialmente! O restante torna-se ou caricaturável ou animosamente suspeitíssimo! Cada dia a ciência inventa novos meios para alimentar, vestir ou transportar o homem. Em geral, fabrica economicamente maus produtos para dar prazeres duvidosos a um maior número. É verdade que também traz melhorias reais para satisfazer todas as nossas necessidades. Mas pouco interesse despertam - em amplo lastro - o espírito, o pensar e o sonhar.

 

P.S.P. - Alguns afirmam que a Arte é inútil, o que me diz?

 

O.M. - Antípodas às deturpações fúnebres do termo 'útil', penso que os Artistas são os mais úteis dos homens. Na sociedade moderna, talvez - sim, perpetuo a utilização do 'A' pois tantos nefastos mas competentíssimos farsantes há - os Artistas sejam os únicos homens que exercem sua ocupação com (transcendente) prazer. Descomunal lacuna a nossos contemporâneos é, parece-me, o amor à profissão. Só executam suas tarefas com repugnância. 'Sabotam-na' com prazer. De alto a baixo da escala social acontece o mesmo. Os políticos encaram seus deveres apenas em termos das vantagens materiais que possam obter e parecem ignorar a satisfação sentida pelos grandes homens de Estado de outrora quando estes, habilmente, lidavam com os negócios de seus países. Os industriais, ao invés de preservarem a reputação de sua marca, procuram apenas ganhar o máximo de dinheiro que podem, adulterando seus produtos. Os operários, incitados contra seus patrões por uma hostilidade mais ou menos legítima, relaxam em suas atividades. Quase todos os homens de hoje parecem considerar o trabalho como uma necessidade horrível, como uma obrigação maldita, quando deveria ser encarado como também nossa razão de ser, vocação que justifique - íntima e coletivamente - nossa existência. 

Por outro lado, não creia que tenha sido sempre assim. A maior parte dos objetos remanescentes do período anterior à revolução industrial - móveis, utensílios, tecidos - denotam a enorme consciência daqueles que os fabricaram. O homem gosta tanto de trabalhar bem quanto de trabalhar mal. Acredito mesmo que a primeira maneira lhe agrade mais, pois deveria ser mais consoante com sua natureza. Mas ele ouve ora os bons, ora os maus conselhos. Atualmente é aos maus que dá preferência. E, no entanto, como seria mais legítima a humanidade se o trabalho, em vez de ser o preço da existência, fosse a meta! Para que essa mudança maravilhosa ocorresse, bastaria que todos os homens seguissem o exemplo dos Artistas, ou melhor, que todos eles se tornassem Artistas! Pois a palavra, em sua acepção mais ampla possível, significa para mim aqueles que buscam multifacetado prazer no que fazem. A lição dada pelos Artistas aos outros homens poderia ser esplendidamente fecunda! 

Tal idéia da utilidade da Arte deve recuperar em todos, no mínimo, a compreensão a que temos direito no mundo em que vivemos... A Arte é uma magnífica lição de sinceridade... Pois bem, há os que afirmam que as obras de arte não se contam entre as coisas úteis, entre as que servem para nos alimentar, vestir, abrigar, satisfazer necessidades corporais nos libertando da escravidão da vida prática e nos abrindo o mundo encantado da contemplação e dos sonhos... Geralmente nos enganamos sobre o que é útil e o que não é: consideram-se também como úteis as riquezas exibidas apenas por vaidade e para excitar a inveja. E essas riquezas não só são inúteis, mas também hediondas... Num máximo denominador comum - para que todos, absolutamente todos possam compreender e usufruir, chamo de útil: o que nos regozija. Ora, aproveitando-me de um dos tentáculos do senso comum que citei anteriormente, quem negaria o regozijo nos oferendado pela contemplação e pelo sonho? Hoje isso é esquecido com demasiada freqüência...mas... 

...reivindicarei Arcádia por alguns átimos como parte de minha argumentação! Muitos dos já cegos, mudos e...surdos por doses cavalares do modus vivendi contemporâneo, dessensibilizados, nem assimilarão tais palavras (as tomarão como ingênuas ou mesmo ininteligíveis!). Faço-o de propósito. O homem que, salvo de privações, goza como um sábio as inumeráveis maravilhas que passam por seus olhos e seu espírito a cada momento, anda pela terra como um deus. Embriaga-se ao admirar os belos seres cheios de vigor que exibem, à sua volta, um ardor fremente. Essas são amostras orgulhosas das espécies humana e animal - músculos jovens em movimento, admiráveis máquinas vivas, flexíveis, esbeltas, pujantes. Ele passeia sua alegria por vales e colinas onde a primavera se consome em prodigiosas festas verdes e floridas, em eflúvios de incenso, em murmúrios de abelhas, em farfalhar de asas e canções de amor. Extasia-se diante das ondulações de prata que se perseguem e parecem sorrir na superfície dos rios. Entusiasma-se ao observar as tentativas de Apolo, o deus de ouro, de dispersar as nuvens que, na primavera, a terra ergue entre ele e ela, como uma amante pudica que hesita em se revelar. Que mortal será mais afortunado do que esse? E, já que é a Arte que nos ensina, que nos ajuda a saborear tais deleites, quem negará que ela seja infinitamente útil? 

Mas não é somente uma questão de volúpias intelectuais. Há muito mais em jogo. Tal qual piamente defendo, a Arte indica aos homens a razão de ser. Revela-lhes o sentido da vida, ilumina-lhes o destino e, conseqüentemente, os orienta na existência. Os Artistas, os Pensadores... são como liras infinitamente delicadas e sonoras. As circunstâncias de cada época provocam vibrações nos tais que se prolongam em todos os outros mortais... E não se deve dizer, como habitualmente se faz, que os Artistas só refletem os sentimentos de seu meio. Isso já seria muito. Pois não é inoportuno apresentar aos outros homens um espelho para ajudá-los a se conhecerem. Amargamente, muitos - que pouco refletem sobre si mesmos - se assustam com e preferem repelir a própria imagem... Personas podem ser vitaliciamente aderidas, não? Inoportuno não haveria de ser aos Artistas, por mais recriminados, hostilizados ao realizar tal primordial ato. Contudo fazem mais. É verdade que se inspiram amplamente nas fontes comuns acumuladas pela tradição, mas também ou perseveram e enriquecem ou questionam e reinventam esse tesouro. Talvez a genialidade seja para o cérebro humano o que a pérola é para a ostra: uma doença da Beleza? Mas que não deixa de ser uma doença, o que pode explicar porque os verdadeiros artistas não pensam nem se comportam como as outras pessoas? O que reitero é: se nos despojamos das artes que se restringem a estatutos, a programas esteticistas, etc; se focamos inclusive a poética da reconstrução espiritual do Homem: são realmente Demiurgos e Guias os Artistas... 

O 'otimista' para mim...é um indivíduo malinformado. Não sou otimista nem pessimista, diria - como alguns outros - que um realista esperançoso, e, apesar disso, reconheço que seria uma quimera crer que graças aos esforços dos grandes Artistas e Pensadores quando convidam cada um de nós a considerar-se como (que não deturpem o que direi:) um fim em si mesmo (um Self) e a viver de acordo com seu coração, a humanidade acabaria por se ver livre das tiranias que restringem o indivíduo e das injustiças e intolerâncias que escravizam as pessoas... 

Mas não se faz bem aos homens impunemente...

 

P.S.P. - Tento reconhecer na História os Artistas de que fala e não encontro dificuldades - por mais 'semideuses' que possam parecer através do teor de suas palavras, Senhor Melgaço. Adotarei também o jogo entre Maiúsculas e minúsculas, me parece bem apropriado... Os Artistas, os tratamos como 'semideuses' devido a suas Obras, claro. Suas Obras são imortais... Os homens fenecem, as Obras ficam. De Ésquilo a Shakespeare, de Miguel Ângelo a Rodin, de Camões a Guimarães Rosa, de De Falla a Piazzolla... Porém, quando hoje em dia tento reconhecê-los, a dificuldade se torna descomunal e não me parece ser pela falta de um distanciamento histórico, como muitos argumentariam. Há uma grave dicotomia! Artistas, raros por se destinarem ao Gênio, e, um número infinito de 'artistas', esse operariado... Há os que tomam o dom, a vocação, ferrenha dedicação, obsessivo aprimoramento e até profissionalização - como queira - tal um Sacerdócio; há os que o fazem por ambicionarem sucesso/status/prestígio/fama/cifrões... Posso me considerar míope por ousar dizer que hoje o Artista está em franca extinção?

 

O.M. - A Arte é imortal... O Artista-em-Si - por decorrência - também o é. Levo a sério a crença em uma ditadura do 'operariado artístico' (presente em todos os andaimes da pirâmide cultural) e, de tempos para cá, na paulatina extinção do Artista... 

A Arte sucumbindo à ultraquantitativa 'arte'? Pois o minúsculo 'artista' é o que se contenta com o trompe-l'oeil... Pois o que chamo de 'arte' acaba por redundar ou em mera engrenagem da inanimada e voraz indústria cultural, objeto débil de descartável consumo, ou: numa atividade onanista por parte de poucos desrizomáveis, irreligantes, prepotentemente aislados... E dá-se o círculo vicioso, o público torna-se ou ignorado, depreciado por esta ou marionetizado, lobotomizado por aquela. Em decorrência disso e em contrapartida a meu suposto brado apocalíptico até aqui, fervorosamente é meu desidério que o Artista - a própria Eternidade que se projeta sobre o presente - seja visto e tomado sim como...um Inimigo, um Pária, metafísico Anunciador e Propagador cruel da Peste...: ei-lo, portanto: a antítese do suicidado 'pela' sociedade!  

 

P.S.P. - Agora, o outro lado da moeda: um pouco do tipo antigo de excessiva reação civilizadora contra o instinto ainda é perceptível num padrão de pensamento cujos expoentes sempre estão dispostos a dividir a humanidade em duas categorias abstratas, denotadas por rótulos como 'natureza' e 'cultura', ou 'corpo' e 'mente', sem qualquer tentativa de investigar a conexão entre os fenômenos a que tais conceitos se referem. É o que diz Norbert Elias. Acha que o mesmo se aplica à tendência de tratar uma clara linha divisória entre o artista e o ser humano, o gênio e a 'pessoa comum'? Como também a tendência de tratar a arte como algo que flutua no ar, exterior e independente das vidas sociais das pessoas?

 

O.M. - Adendo semibeuysiano que é hóspede do sumidouro melgaciano (futurístico, utópico ao extremo?): sim O uno é o múltiplo e o múltiplo o uno; sim Deuses e o mundo são Arte - Arte são ciências e ciências são Arte; sim Deve haver uma relação entre o criador e o que usufrui - viver há de ser criar com e para a humanidade; sim Cada homem haverá de ser um Artista - a estética é o Ser; e, sim Conceito ampliado de Arte - Arte é a Vida... 

Proclamo e sempre proclamei a indiscernibilidade de natureza e cultura, corpo e mente, sensibilidade e razão, concreção e abstração, relativo e absoluto, físico e anímico e...e...e...assim, com todo vigor antimaniqueísta, conclamo aos quatro ventos: Arte/Vida (VIDARTE): plena Unicidade! Apesar de sem linhas divisórias obscurantistas ou clarificadas, alienantes aeroflutuações, exterioridades esquizóides e vis descolamentos, seria eu hipócrita, naive ou demagogo se não corroborasse disparidade, desconformidade, distinção - a mim, notórias, estratosféricas - entre quem é o dito homem comum e o inegável Gênio.

Revisito Valéry a encomiar Louys: o Gênio significa para mim, um ser à parte, consagrado, a um só tempo vítima e levita, um ser escolhido por seus dons, cujos méritos e faltas não se igualam aos dos outros homens. É o servidor e o apóstolo de uma divindade, cuja noção pouco a pouco se vai desenvolvendo. Desde a aurora de nossa vida pensante, encontramo-nos entre as ruínas das crenças definidas; e quanto aos conhecimentos positivos, o abuso metafísico que deles se acabava de fazer, a decepção causada por esse uso paradoxal e imaginário das aquisições verificáveis nos punha em guarda contra elas. Mas nosso deus desconhecido e incontestável era o que se manifesta pelas obras do homem enquanto belas e gratuitas. É um deus que só faz milagres, muito pouco importando com o resto. Agradam-lhe todos os artifícios da Arte. Inspira, como todos os deuses, o espírito de renúncia e sacrifício, e a fé que nele se deposita dá um sentido universal e preciso ao orgulho puro e ingênuo, indispensável à produção das Obras-Primas. O mártir e eleito desse deus, o Gênio, põe necessariamente toda a virtude na contemplação e no culto das coisas que são-em-si, toda santidade em sua criação.

No entanto, dou fé a processo de maturação, ascensão que é fruto de reinvenções, transmutações: do ordinário ao Extraordinário, do trivial ao (até mesmo) Genial: porém, se coletiva, seria uma hiperspectiva, constituindo o vértice-mor de uma Humanidade se não impraticável: a anos-e-anos-luz. Substituindo o termo 'Humanidade' por 'guetos/rizomas/pontualidades gentílicas', mais veramente aqui e agora me comportaria...ou não!? Desconfundamos as estações, Senhor Paz: há uma situabilidade razoável e urgenciosa: o resgate ou o próprio reparimento de uma crescente 'Artificação' da vida comum; questão alcançável e, a toda querência, semeadura. 

Arte é contemplação, é o prazer da mente que penetra a natureza e descobre o espírito que a anima. É a alegria da inteligência que vê o universo com clareza e o recria, dotando-o de consciência. A Arte é a missão mais sublime do homem já que é o exercício do pensamento tentando compreender o mundo e torná-lo compreensível. Hoje, porém, a humanidade crê que pode passar sem Arte. Não quer - em sempiterna grandeza - meditar, contemplar, sonhar - quer, exclusiva e totalitária, gozar fisicamente. Permanece indiferente a valores simultaneamente elevados e profundos - quer apenas, dissimulatório-tartufo-caótico-cosmética, apaziguar seus apetites corporais. Em seu materialismo e fisicidade vazia, a humanidade atual é bestial - não há lugar nela para os Artistas. Arte também é gozo mas não só. É gozo em seu paroxismo!...mas não só. É também gosto, reflexo do coração do Artista em tudo o que lhe é criação. 

Note um dos mais pueris exemplos: é o sorriso da alma humana visível na morada e em seu mobiliário! É o encanto do pensamento e do sentimento incorporados a tudo o que serve à humanidade. Todavia: viver cercados de casa e móveis de gosto? Outrora, vejamos...: na velha França, a Arte estava em toda parte... Os burgueses mais simples, até mesmo os camponeses, só faziam uso de objetos agradáveis à vista. Suas cadeiras, mesas, panelas, utensílios eram bonitos. Hoje, a Arte foi - em sua real substancialidade - afastada do dia-a-dia. Dizem que o que é útil não precisa de ser belo. Tudo guarda e desfere fealdades, tudo é fabricado às pressas e sem qualquer encanto por máquinas costumeiramente estúpidas... Se creio que, quando o Artista representa o Universo tal como o imagina, formula seus próprios sonhos; se na Natureza, é a sua alma que ele celebra e assim enriquece a anima mundi...: sim, sempremente o Artista é o I-n-i-m-i-g-o....... Perdão pelo suassunante devaneio, até mesmo me faz recordar certos - e tão ainda cabíveis, apesar de quase centenários! - diálogos entre Rodin e Gsell... 

 

P.S.P. - Como aliados, abordemos já suas produções no campo erudito; como o Senhor se situa composicionalmente?

 

O.M. - Considero-me um Artista Contemporâneo e ser contemporâneo, tomando o exequatur de Nietzsche ou Agamben, é estar em dissociação e desconexão com o Presente... É, não deixando de invaginá-lo, libertar-se de sua toda via ocular-medusiana. Todavia appartenendo ai percorsi dell'Eterno...

Segundo Schopenhauer, o suicida ama a vida, e por isso se mata; não faz mais que rebelar-se contra a situação que ela lhe oferece, não renuncia à vontade de viver, mas unicamente às condições da vida, de que destrua na sua pessoa um dos fenômenos passageiros e, destruí-lo, afirma o seu desejo de viver. Entretanto, se mortificando a vontade tivesse aceito sua dor como expiação, esta, em vez de o levar ao suicídio, o conduziria pela renúncia à liberdade de todo sofrimento. O suicida é um enfermo que não tem energia para deixar terminar uma operação dolorosa, que lhe dará saúde; o sofrimento suportado com coragem se converteria em uma total renunciação. Mas o enfermo e o suicida preferem continuar doentes?

Às vezes compor significa libertar-me de todo sofrimento... Como criador, sou um suicida que aceita sua dor como expiação...entretanto, se me atrevo a perturbar o sagrado repouso do Nada para tecer meus engendros, não há como deixar de me sentir imovelmente centrado tal qual, emersoniano, um ‘herói’ o é: um ser imovelmente centrado. É preciso instituir em sua lida intermitente renascimentação e de modo indescritível!, para, em paulatinidades, compreender as musas... 

 

P.S.P. - Percebe-se pertencendo a alguma ‘família espiritual’?

 

O.M. - Estimativa sim, estilisticamente não. Ou melhor, sou eu a pessoa menos prendada a me denunciar sobre. Não me atenho a nomes ou currais históricos ou escolas amestrantes e sim a (pura e simplesmente):

S-o-n-o-r-i-d-a-d-e-s... 

Indenomináveis, intemporais, inespaciais; quânticas: Fluxus: uma Terceira Margem em estado infinitivo. Alguém disse.......outro dia: nenhum som teme o silêncio que o ex-tingue. E nenhum silêncio existe que não esteja prenhe de sons... Sendo assim, minhas predominantes referências são impronunciáveis ou, as que não: adquirem status de secretas; não as desvendo a viv'alma - honro o pacto hierogâmico que tenho com minhas Musas. Delas a Nudez - com que me agraciam - preservo sempiternamente...    

Dito, inegável é minha admiração, selvagem sincrética caótica, por, cito contrariada e aleatoriamente, os mais reconhecíveis e pitorescos que se tornam supostamente obrigatórios e mesmo prole de um truísmo que, a meu ver: refestela-se em inútil listamento (para não nos embrenhar por algum Erkki-Sven Tüür, Eurico Carrapatoso ou Otacílio Melgaço): Monteverdi, Bach, Satie, Messiaen, Cage... E mais: Beethoven, a Escola de Viena, Jeune France (já re-cito Olivier), Villa-Lobos, Hildegard von Bingen, De Falla, Ives, Varèse, Stravinsky, Penderecki, Stockhausen, Shaeffer, Boulez, Roussel, Bartók, Purcell, Debussy, Ravel, Les Six, Ustvolskaya, Gubaidulina, Strozzi, Saariaho, Boucourechliev, Berio, Kagel, Nono, Henze, Xenakis, Orf, Dallapiccola, Rautavaara, Saariaho, Carrillo, Isang Yun e...Wagner...e...Köselitz ou Gast?, Palestrina e... Prefiro, quanto aos propriamente contemporâneos meus e a genesiar-me ou apocalipsiar-me por Melgaço, sofrer de mudo funambulismo... Ocorre que houve um engano de cerca de um século em meu oficioso registro natalino. Adiantaram-me no tempo, destituíram-me de espaço. Sou, atesto, um homem do final dos milli ed ottocento! Sou? Ou me embrenho por tais escrutínios em nome de mera confusionada picardia? Pouco (me) importa. Retomando o magma de sua indagação: o gênio é sempre assustador para seu tempo; mas na medida em que um deles nos ultrapassa não somente com seu espírito, mas também nas realizações, ele tem o efeito terrível de um sinal no céu.

 

P.S.P. - E no Brasil, além de Villa-Lobos...?

 

O.M. - Instituo mesma medida redundantesca: A Música Viva! de Koellreutter, Smetak, Krieger, Santoro, Guerra Peixe, mesmo a velha-guarda Guarnieri, Mignone, Lorenzo Fernandez... Se o óbvio, na maioria das vezes, é candidato de primeira ordem ao olvido, tenho um cálido motivo para incensá-lo aqui. Pelos citados historicizados como são, palmilhamos, antropo-e- autofagicamente: de explorações folcloristas à afro-americanidade; do 'indigenismo' ao neo-classicismo; de um dodecafonismo germano-brasileiro ao barroco convencionalesco... Fidelíssimo Portrait de um utopista protótipo ao compositor parido em Terra Brasilis, ou seja, estamos diante de um ‘procacissimu’ protomártir! Eis um esboço de quem sou, protuberrante...

 

P.S.P. - Uma curiosidade, algum nome no campo da Ópera?

 

O.M. -  Permita-me antiquado, um respostar de cunho efetivamente afetivo: Puccini.

 

De Chirico bradava, criticista, ‘Non gira’ - quando não sentia a profundidade, o relevo da imagem. Transpondo-o à música, e apesar de todas as 'deficiências' de Giacomo (certas ariantes 'facilidades'; adoção de libretos que não se sustentariam sem a música e etc): todo Puccini ‘gira’.  

Agora, se pretenderia retrucagem de esprit melganônico: 'Moses und Aron' de Arnold Schöenberg. E também me alumia o prisma improvisativo d'uma 'La Serrure' de Marius Constant. 

 

P.S.P. - E no campo das criações para Ballet?

 

O.M. - Sim, os Ballets Russes de Diaguilev! A conjunção ocorrida entre (compositores) Stravinsky, Debussy, Ravel, Schmitt, Satie, Rossini/Respighi, Falla, Prokofiev, Poulenc, Auric, Milhaud, Sauguet - por um lado, e, (coreógrafos) Fokine, Nijinsky, Romanov, Massine, Larionov, Balanchine - por outro (sem deixar de frisar culminante vértice - cenários e figurinos - dos triunviratos: Golovine, Bakst, Benois, Redon, Roerich, Picasso, Derain, Matisse, Larionov, Gontcharova, Laurencin, Braque, Laurens, Chanel, Pruna, Garbo y Prevsner, Jaculov, Bauchant, Rouault): povoa meu imaginário transepidérmica e epidêmica e epidemoniadamente.  

 

P.S.P. - Seus grupos de trabalho, o processo de escolha dos músicos que participarão de seus discos... Conte-nos a respeito.

 

O.M. - Ocasionalmente toco cada um dos instrumentos... O assumimento da engenharia sonora também o tenho como um tentáculo composicional/empirista. Afora tal severa introspecção – ensurdecedor ensimesmamento, há convidados especiais, cativos como Zycluz Quartett e Amedeo Rizzi, Célestine Alavoine, Nausícaaa Ensemble... Só me interesso em desenvolver projetos ao lado de musicistas ditos ‘amadores’ (técnica e concepcional e formativamente estão em níveis apuradíssimos, em mesmo front dos ditos 'profissionais-de-ponta' oriundos de quaisquer nichos globais; me ocorre sim a fuga à fleuma pedantemente piegas e burocratismo ilusoriamente qualitativizante e pilotismo-automatizado hediondo, lapidar e pastichização kitsch de nivelamento estatuetário e e e...dos que exercem uma atividade - a Música, posso denominá-la: uma mera atividade? Nonada!! - por profissão; retomo, numinoso, o amador como, sobretudo, legítimo conjugador do verbo amar - o que já o sobre-humaniza artisticamente pois de pletora humanização). ‘O que não me mata torna-me mais forte’, proclama Zaratustra. A necessidade de expressão cria a linguagem. O imperativo da regra mata a criação. Seguindo pertinente ponderação de Iberê Camargo, tenho, na companhia de ‘amadores’, o antídoto ao ‘imperativo da regra’, de modo que assim ‘salvo’ minha Criação.

 

 

Agremiações quase anônimas como "cOMbo" ou "O.M. and his Crafts'n'Arts Ensemble" são vértebras surreais de melgacianos delírios phon’exploratórios... Nutrir meu público de Incógnitas é como, ainda incensado por Iberê, o estabelecimento de contumaz Duplo. Relatara, de certa feita, o pintor: ‘Sentado num dos primeiros bancos do ônibus número 15, Praça São Salvador-Rio Comprido, vejo surpreso, e logo com crescente espanto, minha imagem refletida no retrovisor, com traje e movimentos que não são meus. Para afastar a possibilidade de uma alucinação, faço, como prova, exaustivos gestos propositadamente exagerados, que a imagem refletida não repete.

 

- Um sósia? Mas esse é semelhante, jamais idêntico.

Meu desassossego, meu espanto crescem.

O outro, com roupa e movimentos diferentes, permanece tranqüilo, impassível, alheio à minha presença e parece nem se importar em ser réplica.

 

- Ele não me terá visto? Impossível, estamos próximos. Ele talvez ocupe um assento à minha frente. Não sei.

A idéia do indivíduo de ser dois apavora.

Já agora preso de um terror incontrolável, sôo a campainha do coletivo e desço precipitado, sem olhar para trás, sem sequer ousar localizá-lo: falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim.’

Desejo ser Otacílio Melgaço e meu próprio apavorante, aterrorizante Duplo. Não obstante, por meio de minha Obra, almejo ser o Duplo-do-Outro, da alteridade que idiossincraticamente se aproxime de minha progênie, absorvendo-a, ruminando-a, regurgitando-a ocasionalmente, catalizando-a, mimetizando-se a, animizando-se em. Desejo ser tal Double para angariar a coragem necessária – não à visão mas – à audição ou ouvivência de.

 

P.S.P. - Toda manifestação sua – como os depoimentos nos sítios eletrônicos – está repleta de menções a outros artistas, muitas vezes citados textualmente. Isso reforça o fato de se considerar um homem fadado a ser inapreensivelmente babélico, seus registros na Internet são uma prova proposital da engenharia babélico-melgaciana?

 

O.M. - Relevantíssima questão! Merece prólogo e o dedico a colaço Fábio de Souza Andrade: em minha específica aktion internáutica, oscilo entre dois modelos discursivos, o ipsis litteris perturbado e o da voz tal qual, verbatim. Relativizados e jogados um contra o outro, minam o que de fixo associamos ao registro escrito e o que de fugidio, ao oral. Em sendo assim, tal nova voz narrativa não crava o compromisso de falar de moto próprio - muitas das vezes: cita. Ao contrário do eu cartesiano, que se basta, sua existência passa pelo testemunho legitimador do Outro (assim apreendo o universo wwwiano). Sem seu duplo, seu 'copista', ela perde a atualidade, deixa de existir; para ganhar corpo, precisa de um 'editor', de alguém que a perceba: o 'devised devisor devising it all for the sake of company' examinando macroscopicamente os microprocessos perceptivos (ou seria o contrário?). Ouvir e ver, mediações necessárias da criação, são a matéria prima dessa falsa ficção melgacibernética, transfigurando o eu em olho devorador, quando I faz-se eye. Quando o ear : here.

Reaportando em sua pergunta: Sim, sem dúvida. E percebo o quanto incômodos, estorvos tal empreitada sugere. Mas, salvadorenho, dalinista: será que minto seriamente? Será que digo verdades extraordinárias?  Será que as mentiras se transformam em verdades, será que as verdades não passam de criancices horríveis? Estou nesta constante interrogação: não sei quando começo a fingir ou quando digo a verdade. Finjo ser eu mesmo quem sou? Assim sou verdadeiro? Em tamanha ‘legião’ que insiro em meu verbo, em infernal poliedro no qual me velo e revelo: o que me importa, como uma vez disse Daniela Caldas sobre Rilke, o que me importa não é retratar ou representar a realidade, que se dissolve à minha frente, mas sim buscar na própria vida algo que lhe dê um solo? Não. Uma raiz? Não. Sim, busco na própria vida algo que lhe dê uma certeza de imortalidade...  

 

Verão, 

 

'Tornado Gesto Puro ou À Estrídula Vida Marítmica'

 

P.S.P. - Em sua Obra popular brasileira 'Desiderium', há uma harpista na capa. Klimt. Sempre Klimt. Melgaço em busca dos gestos... Música gestual?

 

O.M. - Gestaltual? Ó tocadora de harpa, se eu beijasse teu gesto, sem beijar as tuas mãos!, e beijando-o, descesse p'los desvãos do sonho, até que enfim eu o encontrasse...tornado...gesto...puro. Klimt-Pessoa. Sempre? Semper. Prosseguirei como Pessoa... Semper Pessoa.

 

P.S.P. - Músico que busca o gesto puro. Por sinal, ultimamente tem se dedicado à pintura?

 

O.M. - Eu sou a tela e oculta mão colore alguém em mim. Às vezes me sinto como um emissário de um rei desconhecido, eu cumpro informes pictóricos, instruções plásticas de meu-além. Não sei se existe o rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, meu orgulho o deserto em que em mim estou. 

 

P.S.P. - Paga-se um preço muito alto por ser quem se é artisticamente?

 

O.M. - Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser eu, de conquistar o viver à altura do mister e, por isso, de desprezar a idéia do reclame, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões dos outros. Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. Nada de girândolas para o riso ou a raiva alteriores. Se o artista ambiciona um patamar-mor à sua prole - e assim, ex aequo, a seus cúmplices, seu público - não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste. Reconheci a tranqüila posse de mim. Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.

 

P.S.P. - Nota algum mal-entendido por parte dos que avaliam suas proles?

 

O.M. - Impossível deixar de me reportar a Paul Gauguin! A maior fonte de mal-entendidos que persistiam (ou persistem?) em relação à sua Obra está entre todos aqueles que se põem a procurar as suas fontes: um pintor precedente, um friso do Partenon, uma dançarina de Borobudur, uma parede ou rosto simplificado de um famigerado Émile Bernard, um crisântemo de Vincent. Em primeiro lugar, como salientava Dorival em 1961, 'ele assimilou todos os empréstimos a ponto de tornar suas as Vacas de Tessaert que aparecem ao fundo da Natividade. Em segundo, esses trechos de pintura aparecem sobretudo de modo indireto e transformados, como sob o continente de diálogos, motivos, resumos, evocações, citações, sempre tomados como fragmentos de uma Obra que só adquire sentido dentro do conjunto, da totalidade. Naturalmente, Gauguin permite uma leitura acadêmica, trecho a trecho, fazendo com que digam pejorativamente que ele é um 'eclético'. Nesse caso, não se trata apenas de uma leitura míope, mas de uma leitura funcionalmente analfabeta! Compreende cada sílaba pictural isoladamente, sem alcançar a frase. O mais frequentemente mesmo, não chega a um mero vocabulário. 

Mas o que aproveito para afirmar aqui, assim como Daix, é que sua pobreza levou-o até mesmo a pintar em tela de saco de aniagem!, sem tinta suficiente para cobri-la (e isso foi um obstáculo para que sua arte atingisse a mais...lonjura?). O verdadeiro Gauguin vem à tona quando tira desses supostos obstáculos, em que - naquele momento - qualquer um outro teria naufragado, efeitos fornecidos pela própria matéria bruta, realizando, com sua ciência prodigiosa de a-u-t-o-d-i-d-a-t-a, o casamento de materiais tão primitivistas com o primitivismo maior a que visava. E foi bem por essa razão que ele partiu para antípodas, levando e elevando estratosfericamente seu museu imaginário tão ímpar. Em suma, sou e sempre serei também e tão bem um canibabélico, pantropofágico Selvagem! Bem-entendido?

 

P.S.P. - Tanto que suas criações mais recentes me parecem em franca ascensão poética....

 

O.M. - Sobre a poeticidade e seu poder magmático: Miguel Ângelo criou estátuas como elas emergiam, como um bloco. Ele próprio dizia que só eram boas aquelas obras que podiam rolar do alto de uma montanha sem que nada se quebrasse. Em sua opinião, qualquer coisa que se partisse nessa queda seria supérflua... 

Onde me esconderei dos olhos do Vulto invisível (inaudível?) que espreita pelas estrelas...?...quando o coração vê pelos olhos o Mistério olhar (ouviver?) o universo? A poesia que me acerca, caríssimo Pablo, são os clarins na noite. Subitamente distintos na noite. Da noite. 

 

P.S.P. - Ainda crê em Inspiração?

 

O.M. - No que vem do fundo do mundo? Vem do abismo das coisas? Sim, creio no que vem de onde partem as leis que governam tudo. 

 

P.S.P. - Ao menos, como homem das artes, tem sido bastante prolífico de alguns anos para cá...

 

O.M. - Não quero intervalos no mundo! Quero a contigüidade penetrada e auscultável dos sons, quero que os corpos físicos que vibram sonoramente sejam uns dos outros como as almas... 

 

P.S.P. - Pretende divulgar mais sua prole? Tirá-la dos subterrâneos?

 

O.M. - Subterrâneos? Vorticistas subterrâneos!! É a hora real e nua como um cais já sem naus; sim, traço um semicírculo que me compassa e sugere a grande cidade agora cheia de sol. Tento, mineiro que sou, ressurgir como um grito marítimo, marítmico, um aroma, uma voz, o eco, a selvageria dessa selvageria, arrastado, arrastado... 

 

P.S.P. - Romperá seu proposital anonimato? Não posso acreditar...

 

O.M. - Rompe por mim silvando vertiginando o cio sombrio e sádico da

estrídula vida marítima. Depois amontanho-me novamente... 

 

P.S.P. - Minas é um Grande Cais?

 

O.M. - Todo cais é uma saudade de pedra! Minas Gerais é Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos... 

 

P.S.P. - E J.G.R.?

 

O.M. - Como Platão, Rosa sonhando viu a idéia de Deus esculpir corpo e existência nitidamente plausível dentro do seu pensamento exteriorizado como um Ser-tão. Minhas Minas são Rosa: aquele que vem soleníssimo, soleníssimo e cheio de uma oculta vontade de soluçar; Guimarães Rosa que vem lá do fundo, do horizonte belo lívido, aquele que vem e arranca-me, vem maternal, vem silencioso e extático; João Guimarães Rosa: aquele que vem me envolver na noite manto branco o meu coração. Quero ser eu um retrato nas paredes caiadas das Minas...e como não doerá mais! Rosa, Rosa-Pessoa. Semper ex aequo. 

 

Primavera, 

 

'Do Rediário Florentino ou Deus Como Obra De Arte?' 

 

P.S.P. - A respeito do ato em si de Criar, poderia explanar um pouco mais?

 

O.M. - Faço coro com Jean Genet. Criar não é uma frivolidade qualquer. O criador empenhou-se numa aventura apavorante que consiste em assumir pessoalmente até o fim dos perigos arriscados pelas suas criaturas. Não se pode supor uma criação em cuja origem não haja amor. Como colocar diante de nós, tão forte como nós mesmos, aquilo que deverá ser objeto do nosso desprezo ou ódio. Mas então o criador tomará a si o peso do pecado dos seus engendros. Jesus tornou-se homem. Expia. Depois de, como Deus, os ter criado, ele livra dos seus pecados os homens: é flagelado, cospem-lhe no rosto, zombam dele, pregam-no à cruz. Eis o sentido da expressão: 'Ele sofre em sua carne.' Não nos preocupemos com os teólogos. 'Tomar o peso do pecado do mundo' significa muito exatamente: experimentar em poder e em efeitos todos os pecados; ter subscrito o mal. Todo criador deve, pois, endossar – palavra talvez fraca -, fazê-lo seu a ponto de sabê-lo sua substância, circulando, em suas artérias -, o mal concedido por ele, mas que os seus heróis escolhem livremente. Queremos ver nisso uma das numerosas utilizações daquele mito generoso da Criação e da Redenção. Se ele concede aos seus engendros o livre-arbítrio, a livre disposição de si, todo criador no segredo do seu coração espera que eles escolham o Bem. Todo amante faz o mesmo esperando ser amado por si.

Desejo por um instante prestar uma atenção aguda à realidade da suprema felicidade no desespero: quando se está sozinho, de repente, diante da perda repentina, quando se assiste à irremediável destruição da própria obra e de si mesmo. Eu daria todos os bens deste mundo – é preciso realmente dá-los – para conhecer o estado desesperado – e secreto – que ninguém sabe que sei.

 

Se a santidade é o meu objetivo, não posso dizer o que ela é. Não podendo obter uma definição da santidade – nem tampouco da beleza – a cada instante quero criá-la, isto é, fazer com que todos os meus atos me conduzam para ela, que ignoro. Que me guie a cada instante uma vontade de santidade até o dia em que a minha luminosidade há de ser tal que as pessoas dirão: 'É um santo', ou com mais sorte: 'Era um santo.' Demoradas sondagens para lá me guiam. Não existe método. É obscuramente e sem outras provas salvo a certeza de fazer santidade que realizo os gestos que a ela me levam. Que ela seja ganha com uma disciplina matemática é possível, mas receio que se consiga uma santidade fácil, educada, de formas experimentais, numa palavra: acadêmica. Ora, isso é obter um simulacro. Partindo dos princípios elementares das morais e das religiões, o santo alcança o seu objetivo quando se livra deles. Como a beleza – e a poesia – com a qual a confundo, a santidade é singular. A sua expressão é original. Parece-me porém que ela tenha por base única a renúncia. Eu a confundirei, pois, também com a liberdade. Mas principalmente quero ser um santo porque a palavra indica a mais alta atitude humana, e farei tudo para consegui-lo. Empregarei o meu orgulho e o sacrificarei.

 

P.S.P. - Acho esse um ponto propício para relembrar o que Bourgeois tratava como artefato e arte.

 

O.M. - Madama B. ressaltava o artefato como primeiramente útil, e não se relacionando a nada com mais vitalidade que a sua serventia. Está isolado em seu significado momentâneo, e é facilmente reproduzido. Não é um original. Assim, grande parte da arte contemporânea deveria ser considerada artefato. Andy Warhol colecionava vidros para guardar biscoitos; estes só têm valor na medida em que representem a opção de Warhol. Significavam algo para ele, mas não eram socialmente significativos. Hoje são uma mercadoria da mídia de massa. Um brinquedo é bom, mas é apenas um brinquedo. Não é uma realidade, a arte é uma realidade. O artefato é um objeto manufaturado; uma obra de arte é uma linguagem. O artefato tem apenas um valor educacional ou sentimental. A obra de arte tem um valor absoluto. Assim, repito, grande parte da arte contemporânea deveria ser considerada artefato. 

 

P.S.P. - Por sinal, você, assim como ela, não gosta de ser fotografado...

 

O.M. - Fiel a declarações de Louise, assim como ela não era uma atriz, não sou um ator. Apesar de ou justamente por me considerar uma extensão de minha arte (incluo meu corpo), sou o que faço e não o que posso aparentar a A, B ou C. Louise era o que fazia. Somos nossos Ofícios...

 

P.S.P. - Alguns temas sempre interessantes ou dignos de nota constante. Abordemos de única feita a roda da fortuna que são Artista, Crítica, Público... Na ordem que quiser, Senhor Melgaço.

 

O.M. - (I) Do Público - Um guia para a Itália destinado a orientar o visitante sobre o desfruto de suas obras de arte deveria conter uma única palavra, e um único conselho: olha! (parto dos inolvidáveis ecos d'Diário de Florença' rilkeano, e nobilíssimos alicerçamentos que nos proporciona messer Maria). Aquele que possuir uma certa cultura deverá contentar-se com esta orientação: olha! Ele não irá adquirir uma série de conhecimentos, e dificilmente adivinhará se esta obra provém da época tardia do artista, ou se naquela outra se manifesta o ‘modo pródigo do mestre’. Mas ele reconhecerá uma exuberância de vontade e poder, oriunda de temores e da nostalgia, e esta revelação o tornará melhor, engrandecido e mais grato. Eis o que me parece terrível: em outros países a maioria das pessoas viaja racionalmente. Elas se deixam guiar muitas vezes pelo acaso, descobrem coisas belas e surpreendentes, e uma profusão de alegrias, ricas e maduras, lhes é proporcionada, sem que para tanto precisem fazer qualquer esforço. Na Itália, passam cegamente por mil belezas singelas, correndo para as obras oficialmente qualificadas como dignas de nota, mas que, na maioria das vezes, apenas decepcionam, porque estas pessoas, em vez de adquirirem algum tipo de relacionamento com as obras, tão-somente percebem a distância existente entre a sua pressa mal-humorada e as apreciações solenes, pedantes, do professor de história da arte, respeitosamente registradas nas páginas do Baedeker. 

Assim em Itália no períoso florentino de Rainer, assim em algures e alhures atuais...

 

(II) Do Artista - Esta educação artística errada, a que René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke se refere e que eu subscrevo, distorce todos os conceitos: espera-se que de repente o artista se torne uma espécie de tio que apresenta um divertimento dominical aos seus sobrinhos e às suas sobrinhas (ao distinto público): a sua obra. Ele pinta um quadro ou cria uma estátua com o seu cinzel. Para quê? Meu Deus: para agradar a fulano e sicrano nos quais não está nem um pouco interessado, para estimular a sua digestão preguiçosa por meio desta boa idéia, e para decorar as suas salas com a obra condescendente. 

 

(III) De Ambos: É assim que o público quer o artista; decorre daí este medo filisteu de tudo o que a arte possa apresentar de desagradável, de triste ou trágico, de nostálgico e ilimitado, de terrível e ameaçador – aspectos que já existem em quantidade suficiente em nossa vida. Eis a razão da preferência pela alegria inocente, pelo lúdico, inofensivo, insípido, picante – pela arte, em suma, de filisteus para filisteus, que se possa usufruir como uma sesta ou uma pitada de tabaco. Saibam, pois, que a arte é: um caminho para a liberdade. Todos nós nascemos acorrentados. Um ou outro esquece os seus grilhões, revestindo-os de prata ou de ouro. Mas nós queremos quebrá-los. Não com violência torpe e selvagem; queremos nos desvencilhar crescendo, até que eles não nos caibam mais. 

 O artista, o criador é o homem póstero, aquele para além do qual se encontra o futuro. O criador não subsistirá indefinidamente ao lado do homem. À medida que o artista, o mais sensível e mais profundo, adquire a maturidade e a plena força criadora, à medida que ele vive aquilo com que sonha no tempo atual, o homem vai empobrecendo e se extinguindo pouco a pouco. O artista é a eternidade que se projeta sobre o presente. Cada obra de arte significa uma libertação. 

Entretanto, ninguém deve tocar na arte de outrem. Porque se ele buscar inspiração em um maior, ele se perde; se tentar reproduzir a maneira de um menor, ele se profana e sua alma perde a pureza. Mas o artista pode sempre abeberar-se, com gratidão, na cultura do outro. Que cada um forme, assim, o espírito de outro, conduzindo-o a uma humanidade mais elevada e, portanto, a uma arte mais pura. 

Shakespeare: quem é nobre e sério não imita os pequenos gestos de uma personalidade – e sim a amplitude do seu estilo, característico de todo artista de envergadura: o caminho solitário em direção a si mesmo. 

Nenhum ser humano consegue extrair de si próprio tanta beleza a ponto de que ela o encubra totalmente. Uma parte do seu ser sempre transparecerá nela. Mas nas épocas de apogeu da arte, alguns construíram, ao lado de sua beleza, uma herança tão sublime, que a obra não mais necessita deles. A curiosidade e o hábito do público procuram e encontram a sua personalidade, mas não há necessidade disso. Nestas épocas existe uma arte, mas inexistem artistas. 

 

(IV) Da Crítica - Exercer a crítica é exercer preponderantemente um ato artístico em si. A figura, pois, do crítico haveria de estar realmente (nem acima: ilusória presunção; nem abaixo: vexatória propensão) perfilada à do músico, poeta, escultor etc. 

Recorro aos mesmos intemporais diários: enquanto a crítica não representar uma arte ao lado de outras artes, ela será sempre mesquinha, unilateral, injusta e desprovida de dignidade. Os críticos são semelhantes aos alunos que ‘sopram’ as respostas nos bancos escolares; eles riem às escondidas quando o vizinho, ou seja, o público, repete cegamente, com confiança estúpida, as suas insinuações erradas e levianas. Imagine-se Michelangelo discutido em algum jornal, não importa se em termos laudatórios ou de censura. Acredito que ele teria cinzelado o seu crítico, como se fora um bloco de mármore mal lavrado. 

Mas, se, alerto: raro, é vislumbrável, o tal crítico, como artista...

O que reverberar, no final de todas as contas?, é que a Glória é a soma de todos os mal-entendidos que se formam ao redor de um novo nome...

Ilfauttravaillertoujours

uniomystica

Ilfauttravailertoujours...

 

P.S.P. - A seu ver, pensara eu na Itália de Michelangelo, há uma arte dita nacional?

 

O.M. - Arte nacional! Toda arte autêntica é nacional. As raízes do seu ser absorvem o calor do solo pátrio e dele recebem o seu vigor, exclama meu paraninfo austro-húngaro. Mas já o tronco ergue-se solitário, e a ramagem superior, a sua copa, é o reino de ninguém. E pode acontecer que a raiz insensível ignore quando os galhos se cobrem de flores. Fato é que cada um cresce em direção a si mesmo. Se alguém se encontrasse e reconhecesse, poderia, talvez, retornar ao convívio com os outros e ser o seu salvador. Haveriam de crucificá-lo ou queimá-lo na fogueira. E daquilo que dele restasse arquitetariam uma religião. Mas este homem não poderia ser um artista. Porque quando um criador descobre a si mesmo, ele permanece na sua solidão, e deseja morrer na sua pátria. Se houvesse deuses, nunca viríamos a sabê-lo; pois o fato de sabermos de sua existência é suficiente para destruí-los. 

Não podendo a arte ser nacional em seus momentos de apogeu, segue-se que todo artista, na verdade, nasce em terra estrangeira. Sua pátria não está em lugar algum, situando-se apenas em seu próprio íntimo. E as obras nas quais traduz a linguagem desta terra são as suas mais genuínas. Quero acreditar que esta seja uma das características mais marcantes do gênio artístico: o homem comum deixa a sua pátria e sedia-se em terras estrangeiras; ele envelhece, por assim dizer, seguindo caminhos incertos. O artista que tem sua origem em terras desconhecidas e sombrias, que provém de inúmeros enigmas, torna-se cada vez mais lúcido, sereno e seguro em seu caminho. Todas as coisas tornam-se mais familiares, e pare ele existe apenas um grande reencontrar, reconhecer e saudar.

'- Quem mais amas, homem enigmático, diz? teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? 

- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. 

- Tua pátria? 

- Ignoro em que latitude está situada. 

- Eis! o que amas então, extraordinário estrangeiro? 

- Amo as nuvens... ali, ali, as nuvens maravilhosas.' (L'Étranger,

Baudelaire).

 

P.S.P. - Ainda no campo da criação e já que tocou no assunto, vê Deus como um supremo Artista? E como conotar as religiões?

 

O.M. - Em termos de artistas, há sempre três gerações que se sucedem. Uma encontra um Deus, a segunda o encerra e agrilhoa em uma templo, a terceira empobrece e retira pedra após pedra da casa de Deus, para com elas construir precariamente míseras cabanas. Em seguida vem outra geração que precisa novamente iniciar a procura de Deus.

Tantum religio potuit suadere malorum!

A religião é a arte dos que não criam. Deus é a mais antiga obra de arte.

 

Inverno,

 

'Mon Coeur Mis à Nu / My Heart Laid Bare / Meu Coração Posto a Nu ou 28 fragmentos em Valéry'

 

P.S.P. - Em dada circunstância, havia me remetido 28 serpenteamentos (ou serpensamentos seguindo a tradução de Augusto de Campos) a partir dos esboços, rascunhos, apalpadelas, exercícios, estudos, ensaios de Paul Valéry. Poderíamos inseri-los aqui e agora?

 

O.M. - Pois sim... P.V.:  aquele que, aborgeado, personifica os labirintos do espírito. Em negrito, mordeduras valerianas. Em itálico, sopraninos meus...

  1. Talvez rei, talvez nada – mantenho minha indecisão, recuso o nome, só quero estar perto de quase tudo, sem me abandonar – Poder,  poder, sem cessar; o exercício pouco importa. Ou, ser tudo e me abandonar por completo. 

  2.  Meu fácil me enfada. Meu difícil me guia. Ter como guia tal Tirésias...et ses tétines...

  3.  Se me acusam de complicação é talvez por causa deste princípio que extraí de minha natureza: o que é evidente não existe. A Obra enquanto reivindicadora inexorável da Existência.

  4.  A especialidade me é impossível. Valho um sorriso. Você não é nem poeta, nem filósofo, nem geômetra – nem outra coisa.  Eu sou como o olho que vê o que vê. Seu menor movimento muda o muro em nuvem; a nuvem em relógio; o relógio em letras que falam. Talvez esteja aí a minha especialidade. Muro em nuvem em relógio em letras que falam em sonsilêncios que transentoam…

  5.  O proselitismo é inimigo da honestidade – Seus meios são todos os meios (Seduzir, assombrar, confundir as coisas.) A Arte como um Rito de Passagem, Rei-niciação. Aprendizagem pela Pedra, pelo Perene, Perenal.

  6.  Sou um enxertado. Fiz em mim mesmo diversos enxertos. Enxertar a matemática na poesia, o rigor em imagens livres. ‘Idéias claras’ * em tronco supersticioso... * As idéias claras são inumanas. Enxertar Valéry em Melgaço: Seres Inumanos.

  7.  Meu trabalho é um trabalho de paciência executado por um impaciente. Deixar-se Escolopendrador.

  8.  Se o bom senso me permitisse fixar-me uma meta, eu escolheria por meta e por ideal poder fazer com toda a clareza, e por análises, tudo o que se pretende que precise de trevas e de caos para ser produzido. Se meu instinto permitisse fixar-me uma meta, eu escolheria por meta e por ideal poder fazer com todas as trevas e todo o caos, e por delírio, tudo o que se pretende que precise de clareza. Vice e Versa. Verso.

  9.  Acredito no arrebatamento e na importância.

  10.  Contra os poetas, eu sou. Pois minha paixão foi a paixão de não sei que Reforma... Refazer seu espírito, não é tarefa para poetas. Contra os filósofos, eu sou. Pois minha natureza não dissimula as potências. Não creio no universo. Não inflo os signos e sei para onde eles se dirigem. Contra mim, eu sou. Pois meu eu devora meu eu... Aut’antropofagiar-se, o maior tesouro herdado da Terra Brasilis?

  11.  ...e em suma, a partir de então, não apreciei, não estimei um ‘artista’ de qualquer gênero a não ser em sua semelhança de exigência e liberdade (verdadeira) com o geômetra e o construtor... Uróboro em sempiternidade espiralizante.

  12.  Desenvolvo minha idéia, porque ela me fala do meu  ‘intelectualismo’. Eu lhe digo que não se deve confundir – que eu sou um formal – e que o fato de proceder pelas formas a partir das formas em direção à ‘matéria’ das obras ou das idéias dá a impressão de intelectualismo por analogia com a lógica. Mas que essas formas são  intuitivas na origem... A Intuição como Pigmalião do Si-Mesmo que é  máquina de fazer a própria coisa....

  13.  Não saboreio nas obras do homem senão a quantidade de inumanidade que nelas encontro. Obra-Total / Sobre-Humana / Inumana.

  14.  Ange = Étrange, estrange = étranger...  S'éveille-telle en lui Déloge l'homme en lui Un ange vole Un ange vole ...Beau... Se love-t-elle en lui Furtive elle en lui Un homme change Un homme change ...Etrange... Parfait mélange S'échange -t-il d'aile en elle Un homme sombre change en elle Un ange bombe Un ange blonde ...Dérange... Doux... parfait mélange... Sexe d'un ange......................

  15.  O não-compreender bem reconhecido e definido deve engendrar uma atividade e uma lucidez, como um achado. Sou Escravo de minha Incompreensão pois Ela me é Libertadora.

  16.  ...rejeitar todos os termos que eu não sei traduzir em não-linguagem; ou registrá-los, ao menos, com este caráter provisório, exterior – inacabado, que é o da maior parte dos nossos ‘pensamentos’. Horror da repetição, da facilidade, da ambição fundada nos outros. Tentar descobrir, liberar, eliminar tudo o que se repete, ou repete – Daí  tantas buscas. Nada de repetições: construir para destruir. Deus como a mais antiga Obra-de-Arte.

  17.  Provocar atos internos. Ter a Eu-Profundidade como Astrolábio.

  18.  Não sou músico – musicista, pois não só não me importa como me ultrapassa musicar o que ouvi, senti ou peguei. Isso terminou para mim. Tomo da batuta para o futuro do meu pensamento – não para o seu passado.

  19. Prefiro ser ouvi(vi)do muitas vezes por um só do que uma só vez por muitos.

  20. Erro dos críticos: remontar ao autor em vez de remontar à máquina que fez a própria coisa. Erro máximo, a meu ver. Ter sempre e sempre o homem-melgaço como e mesmo a mim: étrange, estrange = étranger...

  21. A música só me interessa quando tende e concorre para o crescimento do espírito. No caso contrário, me aborrece.

  22. Eu não componho/não comporei para pessoas que não me possam dar uma quantidade de tempo e uma qualidade de atenção comparáveis às que eu lhes dou.

  23. Se fosse compor para o ‘público’, seria obrigado a traduzir e essa tradução é muitas vezes impossível.

  24. Tive a mania de querer dar ao ouvidor mais do que ele me pede e, portanto, mais do que ele pode suportar.

  25. O que há de mais fecundo para o pensamento que o imprevisto? Improuvido? Improuviso.......

  26. A obra deveria sustentar-se por si própria em virtude de sua estrutura – e não por suas semelhanças e vínculos exteriores. A Conquista se dá em Processo Endógeno. A Ulterioridade é Fruição.

  27. Mas, de fato, quem fala em um poema? Mallarmé queria que fosse a linguagem, ela mesma. E na música?, os sons, eles mesmos?... Beau serpent, bercé dans le bleu...

  28. Não amo a profissão musical – Ela me desagrada. Eu não teria querido ser (e sou), enquanto músico, mais que um amador, mas (quiçá? e mouriscamente...) mais hábil, mais exigente e mais profundo nesse mister que as pessoas que dele fazem profissão.

  29. Sou um valeryano enquanto, segundo Maurice Bemol, aquele que ‘tenta ver em um outro mundo, o mundo da consciência segunda’, o esforçador ‘que mantém essa consciência da consciência’ (inconscienCIOsamente?)  ‘que parece ao homem comum uma atitude contra a natureza, mas que é a chave de todo o conhecimento verdadeiro’. E, eu-melgaço, roi/rien: (não inadvertida ou impunemente selo da obra discográfica Desiderium) Uroboromem: Je mords ce que Je puis…Que l’univers n’est qu’un défaut dans la pureté de Non-être...                                                                                               

Verão,

 

'À Saúde Da Serpente ou Nas Ervas Seus Grãos Transparentes A Espiga De Cristal Debulha'

 

P.S.P. - Proponho ao senhor um Jogo. Pronuncio uma palavra e lhe cabe contextualizá-la com total liberdade. Uma reflexão, um aforismo... - pouco importa. Aceita minha traquinice?

 

O.M. - Pois sim. Um jogo à la Santé du Serpent...e, aqui, em especial: ao suserano René Char!

 

P.S.P. - Alma.

O.M. - Farás da alma que não existe um homem melhor que ela. 

P.S.P. - País.

O.M. - Olha a imagem temerária em que teu país se banha, esse prazer que há muito te fugiu.

P.S.P. - Limite.

O.M. - São inúmeros os que esperam que o recife os eleve, que o limite os supere, para se definir.

P.S.P. - Remorso.

O.M. - Agradeça a quem não faz conta de teu remorso. És seu igual.

P.S.P. - Confidente.

O.M. - As lágrimas desprezam seu confidente.

P.S.P. - Destino.

O.M. - Resta uma profundeza mensurável onde a areia domina o destino.

P.S.P. - Visível.

O.M. - Meu amor, pouco importa que eu tenha nascido: ficas visível no lugar onde desapareço.

P.S.P. - Êxtase.

O.M. - Poder andar, sem iludir o pássaro, do coração da árvore ao êxtase do fruto.

P.S.P. - Gratidão.

O.M. - O que te acolhe no prazer é a gratidão mercenária da lembrança. A presença que escolhestes não se livra do adeus.

P.S.P. - Amar.

O.M. - Só te curves para amar. Se morres, ainda amas.

P.S.P. - Luxúria.

O.M. - As trevas que tu te infundes são regidas pela luxúria de teu ascendente solar.

P.S.P. - Homem.

O.M. - Despreza aqueles aos olhos de quem o homem não passa de uma etapa da cor nas costas torturadas da terra. Que eles desfiem sua longa advertência. A tinta do atiçador e o rubor da nuvem perfazem um.

P.S.P. - Conhecimento.

O.M. - Produz aquilo que o conhecimento quer manter em segredo, o conhecimento de cem passagens.

P.S.P. - Respeito.

O.M. - Aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece respeito nem paciência.

P.S.P. - Criação.

O.M. - Quanto vai durar esta falha do moribundo no centro da criação porque a criação o licenciou?

P.S.P. - Inverno.

O.M. - Cada casa era uma estação. A cidade assim se repetia. Todos os habitantes juntos só conheciam o inverno, apesar de sua carne reaquecida, apesar do dia que não passava.

P.S.P. - Consciência.

O.M. - És sempre poeta em sua essência, sempre ao zênite de teu amor, sempre ávido de verdade e justiça. Talvez seja um mal necessário não poder sê-lo assiduamente em tua consciência.

P.S.P. - Sol.

O.M. - Haverá sempre uma gota d'água a durar mais que o sol sem que se abale o ascendente dele.

P.S.P. - Jardim.

O.M. - No giro da andorinha um temporal se instrui, um jardim se constrói.

P.S.P. - Girassol.

O.M. - Quem confia no girassol não meditará em casa. Todos os pensamentos do amor serão seus.

P.S.P. - Beleza.

O.M. - É a vez do pão romper o homem, e ser a beleza do primeiro sol.

P.S.P. - Calor.

O.M. - Canto o calor ao rosto do recém-nascido, o calor desesperado.

P.S.P. - Poeta.

O.M. - Não é digno do poeta ludibriar o cordeiro, investindo em sua lã.

P.S.P. - Coração.

O.M. - Se habitamos um clarão, é o coração do eterno.

P.S.P. - Nome.

O.M. - Olhos que acordaram o vento pensando inventar o dia, em que posso servi-los? Meu nome é olvido.

P.S.P. - Poesia.

O.M. - De todas as águas claras a poesia é a que menos tarda nos reflexos de suas pontes. Poésie, la vie future à l'intérieur de l'homme requalifié.

P.S.P. - Rosa.

O.M. - Uma rosa para que chova. Ao fim de inúmeros anos, eis teu anelo. 

. . .

Rosa - João Guimarães - Rosa: amo você - repete o vento a tudo o que torna vivo. Amo você e você vive em mim. Cativo. Vive cativo. E cativo, desposei a lentidão da hera no assalto à pedra da eternidade...

 

Quinta Estação, 

 

'Desnudar O Coração ou Anedota Do Caçador Sobre A Íntima Ligação Entre O Amor E A Ferocidade '  

 

P.S.P. - Desde quando se vê como um paradoxal 'ateu religioso'?

 

O.M. - A força do amuleto demonstrada pela filosofia. Os solos perfurados, os talismãs, as lembranças de cada um. Tratado de dinâmica moral. Da virtude dos sacramentos. Desde menino, habitavam minha alma dois sentimentos contraditórios: o horror da vida e o êxtase da vida. É bem a característica dum indolente nervoso. Minha infância, leia-se: pendor para o misticismo. Conversações com Deus... Ou monólogos perante um espelho: um desvão?

 

P.S.P. - Como lida com sua iconoclastia atávica? O que sente depois de ouvir um dos seus próprios cds?

 

O.M. - Após uma cena de devassidão, sentimo-nos mais sós, mais abandonados...

 

P.S.P. - Posso supor então que a música é como Melgaço se 'religa', é seu 'religare'?

 

O.M. - A Música abre o Céu.

 

P.S.P. - O mesmo tema. Apesar de ateu, o espetáculo e o contato do público com seu artista e obra, sei que tudo isso lhe é profundamente religioso...

 

O.M. - Um culto. O Sacrifício e a Promessa constituem as fórmulas supremas e os símbolos da troca. O sobrenatural compreende a cor geral e o acento, isto é, intensidade, sonoridade, limpidez, vibratilidade, profundeza e repercussão no espaço e no tempo. Da arte como operação mágica, sortilégio evocatório. Em certos estados de alma quase sobrenaturais a profundeza da vida se revela por inteiro no espetáculo que se tem sob os olhos. Ele se torna o símbolo da vida. Deus é um escândalo...

 

P.S.P. - Aproveitado a abertura, divague um pouco sobre religião, ou melhor, sobre sua religiosidade atéia...

 

O.M. - A Teologia. Que é a queda? Se é a unidade feita dualidade, então foi Deus quem caiu. Noutras palavras: não seria a criação a queda de Deus? Todavia, há na prece uma operação mágica. A prece é uma das grandes forças da dinâmica intelectual. Nela há uma espécie de recorrência elétrica. O rosário é um médium, um veículo; é a prece ao alcance de todos. A Espanha que nos deu Falla, Goya, Gaudí, Picasso, Dalí, Buñuel...: como a Espanha emprega na religião a ferocidade natural do amor! Sei que há homens que não se podem divertir senão em bando. O verdadeiro herói se diverte sozinho. Falando de mim: talvez eu creia numa religião universal feita pelos alquimistas do pensamento, uma religião que se desprende do homem, considerado como memento divino. Embriaguez da humanidade; grande quadro por fazer; no sentido da cooperação; no sentido da libertinagem; no sentido literário, ou literal. Talvez creia num culto da sensação multiplicada e que se exprime pela música... 

 

P.S.P. - Observa em si e nos Artistas (com 'A' realmente maiúsculo) algo como a existência de uma 'aura' que os diferencia?

 

O.M. - "Atravessava eu o Bulevar com um pouco de precipitação, para livrar-me dos carros, quando a minha auréola se desprendeu e caiu na lama do macadame. Por felicidade, tive tempo de apanhá-la, mas, um instante depois, insinuou-se em meu espírito a desgraçada idéia de que aquilo era um mau presságio; e desde então a idéia não me quis sair da cabeça, deixando-me sem tranqüilidade durante o dia inteiro...", também - como em todo momento aqui - escrevera Baudelaire.

 

P.S.P. - Platônico que é, tudo lhe surge de uma 'idéia poética'?

 

O.M. - Creio que o infinito e misterioso encanto que há na contemplação de um navio, e sobretudo de um navio em movimento, prende-se, no primeiro caso, à regularidade e à simetria, que são uma das necessidades primordiais do espírito humano, no mesmo grau que a complexidade e a harmonia; - e, no segundo caso, à multiplicação sucessiva e à geração de todas as curvas e figuras imaginárias operadas no espaço pelos elementos reais do objeto. A idéia poética, que se desprende dessa operação do movimento nas linhas, é a hipótese de um ser vasto, imenso, complexo, mas eurrítmico, de um animal cheio de gênio, que sofre e suspira todos os suspiros e todas as ambições humanas. Por sinal, por que motivo o espetáculo do mar é tão infinitamente e tão eternamente agradável? Porque o mar oferece, a um tempo, a idéia da imensidade e a do movimento. Idéia Musical, diga-se de passagem! Seis ou sete léguas representam para o homem o raio do infinito. Eis aí um infinito diminutivo. Que importa, se ele basta para sugerir a idéia do infinito total? Doze ou quatorze léguas de líquido em movimento bastam para dar a mais alta idéia da beleza que se ofereça ao homem no seu habitáculo transitório... (como na arte sonorosa...). No final de todas as contas, a idéia é, por si mesma, dotada de uma vida imortal, tal qual uma pessoa. Toda forma criada, mesmo pelo homem, é imortal. Porque a forma é independente da matéria, e, como bem sabe Pablo, não são as moléculas que constituem a forma...

 

P.S.P. - Mudando de assunto ou quase. Estética. Sempre comentara comigo que se sente um Dândi inserido no mais puro anacronismo. O Belo, me fale dele. 

 

O.M. - Os meus antepassados, idiotas ou maníacos, em aposentos solenes, vítimas, todos eles, de terríveis paixões... Dandismo - Que é o homem 'superior'? Não é o especialista! Contudo encontrei a definição do Belo, do meu Belo. É algo de ardente e de triste, algo um tanto vago, rasgando horizontes à conjectura. Se o quiserem, vou aplicar minhas idéias a um objeto sensível; por exemplo, ao objeto de maior interesse na sociedade, a um rosto de mulher. Uma cabeça fascinante e bela, uma cabeça de mulher, quero dizer, é uma cabeça que faz pensar, a um tempo - mas de maneira confusa -, em volúpia e em tristeza; que comporta uma idéia de melancolia, de lassidão, de saciedade até, - ou uma idéia contrária, isto é, um ardor, um desejo de viver, associados a uma amargura refluente, como oriunda de privação ou desespero. O mistério, o pesar, são também caracteres do Belo. Uma bela cabeça de homem não necessita comportar, aos olhos de um homem, bem entendido, - sim, talvez aos olhos de uma mulher, - essa idéia de volúpia que, em rosto de mulher, é uma provocação tanto mais sedutora quanto mais melancólico, em geral, é o semblante. Porém essa cabeça conterá também algo de ardente e triste, - necessidades espirituais, - ambições tenebrosamente recalcadas, - a idéia de um poder atroante e sem aplicação, - as vezes a idéia duma insensibilidade vingativa (pois o tipo ideal de dândi não deve ser desdenhado, nesta matéria), por vezes, também - e é um dos caracteres de beleza mais interessantes -, o mistério, e afinal (para que eu tenha a coragem de confessar até que ponto me sinto moderno em coisas de estética) a 'malchance'. Não quero dizer que Beleza e Alegria não se possam associar; contudo, considero a Alegria um dos ornamentos mais vulgares, ao passo que a Melancolia é, por assim dizer, a ilustre companheira da Beleza, a ponto que me custa conceber (seria o meu cérebro um espelho mágico?) um tipo de Beleza em que não haja 'Malchance'. Baseado em - outros diriam: obcecado por - tais idéias, ser-me-ia difícil, bem se vê, não tirar delas a conclusão de que o tipo mais perfeito de Beleza viril é Satã - à maneira de Milton, John Milton.

 

P.S.P. - A que realmente aspira um Dândi?

 

O.M. - Deve o Dândi aspirar a ser sublime, sem interrupção.

 

P.S.P. - O Estilo: o Homem?

 

O.M. - ESTILO - a nota eterna, o tom eterno.

 

P.S.P. - Uma introdução à próxima pergunta: é um homem tímido?

 

O.M. - O retrato de Sérène, por Sêneca. O de Stagira, por São João Crisóstomo. A Acédia, doença dos monges... O Taedium Vitae. Nunca entro num Café sem certa emoção. Para uma natureza tímida, uma portaria de teatro assemelha-se um pouco ao tribunal dos Infernos. Sim, sou.

 

P.S.P. - Como o suposto dandismo melgaciano intervêm no 'Feminino' e vice-versa? Há muito do 'Feminino' em suas Obras... 

 

O.M. - Que é o amor? A necessidade de sair de si(?). Amamos as mulheres à proporção que elas nos são mais estranhas. Tratemos do Ar na Mulher... Os ares encantadores, e que fazem a beleza do 'Feminino' e que com os tais aprendi, são: o ar impudente; o ar de olhar dentro de si; o ar de vontade; o ar perverso; o ar felino, misto de infantilidade, abandono e malícia. Eis UM dos meandros de minha dualidade...

 

P.S.P. - Dualidade, delírio e racionalidade...

 

O.M. - Pode a alucinação, se estas palavras não se repelem, invadir as coisas do puro raciocínio? O que não é um tudo-nada disforme tem um aspecto insensível, donde se conclui que a irregularidade, vale dizer, o inesperado, a surpresa, o espanto, constituem parte essencial e a característica da beleza.

 

P.S.P. - A beleza nos exige disciplina. É um homem disciplinado? O que norteia seus passos como engendrador?

 

O.M. - Harmonia poética do caráter. Eurritmia do caráter e das faculdades. Conservar todas as faculdades. Desenvolver todas as faculdades.

 

P.S.P. - Não abordamos Otacílio em outras atividades artísticas... O teatro. É dramaturgo. Quais suas opiniões sobre o teatro?

 

O.M. - Minhas opiniões sobre o teatro. O que eu sempre achei mais bonito num teatro, em minha infância, e ainda hoje - se estivermos num recinto que se preze, é o lustre, - um belo objeto luminoso, cristalino, complicado, circular e simétrico. Contudo, não nego absolutamente o valor da literatura dramática. Quisera eu, porém, que os comediantes montassem patins altíssimos, trouxessem máscaras mais expressivas que o semblante humano, e falassem através de porta-vozes; enfim. Além de tudo, o lustre sempre se me afigurou como o ator principal, visto através da grande ou da pequena extremidade do binóculo.

 

P.S.P. - Costuma compor sob a luz do dia ou sob a dos lustres?

 

O.M. - O homem bebe a luz com a atmosfera. Assim tem razão o povo em dizer que o ar da noite é malsão para o trabalho. Sou um adorador nato do fogo, um parsis-nato. Deleites espirituais e físicos devidos à tempestade, à eletricidade e ao raio, rebate das lembranças amorosas, tenebrosas, dos antigos anos. Necessito de escuridões para a feitura de outras naturezas da Iluminura...  

 

P.S.P. - Imagino que seu tempo reservado ao sono...seja excêntrico!

 

O.M. - Sonhos e teorias do Sonho à Swedenborg. No moral como no físico, eu tive sempre a sensação do abismo, não só do abismo do sono, mas do abismo da ação, do sonho, da lembrança, do desejo, do belo, do número, etc. Cultivei minha histeria com prazer e terror e agora: tenho comigo, trago comigo sempre a vertigem... A propósito do sono, aventura sinistra de todas as noites, pode-se dizer que os homens adormecem diariamente com uma audácia que seria incompreensível se não soubéssemos que resulta da ignorância do perigo. 

 

P.S.P. - E por tratar de periculosidade, um salto. O que diria ao artista que agora inicia sua carreira?

 

O.M. - Como se eu possuísse dote ou lucidez para isso! Pois bem... Não desprezar a sensibilidade de ninguém. A sensibilidade de cada um é o seu gênio. Achar o frenesi cotidiano. O poder da esperança. O hábito de cumprir o dever expulsa o medo. É necessário querer sonhar e saber sonhar. Evocação da inspiração. Arte mágica. Uma seqüência de pequenas vontades dá um resultado considerável. Todo recuo da vontade é uma parcela de substância perdida. Como, pois, é pródiga a hesitação? Portanto, diria eu: para cada carta de credor, escreva cinqüenta linhas sobre um tema extraterreno, e será salvo. 

 

P.S.P. - Às vezes comentara informalmente que, como instrumentista, tocar poderia ser como se estivesse sonhando acordado, inconsciente e surrealmente desenhar, traçar sonhos com sons... Seria um dos nortes?

 

O.M. - Sim, sim sim sim.......e o desenho-arabesco é o mais espiritualista dos desenhos. Faço música em arabesco, Pablo... Excêntrica se pensarmos nos dias de hoje...

 

P.S.P. - A arte atual. Os artistas que desenvolvem seus próprios trabalhos como outros quaisquer, de que modo os ronda?

 

O.M. - Não é o trabalho o sal que conserva as almas-múmias?

 

P.S.P. - Considera que haja uma 'arte menor' então? Há os artistas de uma alta cultura e há o 'operariado'? Espere, vou traduzir para que não me entenda mal: quero dizer, há os realmente Mestres-de-Ofício (vou citar alguns em áreas diferentes: Beuys, Messiaen, Proust, Duncan ...) e aqueles que fazem sua labuta como fariam outra qualquer?

 

O.M. - No contexto capcioso da pergunta: qualquer joão-ninguém, desde que saiba divertir, tem o direito de falar de si mesmo.

 

P.S.P. - A quantas anda o cinismo seu em relação a artistas/Estado/Burguesia Empresarial? 

 

O.M. - Se um poeta pedisse ao Estado o direito de ter alguns burgueses em sua cavalariça, haveria grande espanto, ao passo que, se um burguês pedisse poeta assado, todos achariam isso muito natural.

 

P.S.P. - Concursos, prêmios, condecorações... Cogitou levá-los em conta?

 

O.M. - Se um homem tem mérito, por que condecorá-lo? Se não o tem, podem condecorá-lo, que isso lhe dará um lustre. Aquele que pode a medalha parece dizer: - Se não me condecoram por haver cumprido o meu dever, eu não recomeçarei mais. A glória é o resultado da adaptação dum espírito à tolice nacional. Consentir em ser condecorado é reconhecer ao Estado ou aos 'principados' o direito de julgar, de  ilustrar, etc. Aliás, se não é o orgulho, é a humildade cristã que deveria proibir a medalha, a cruz. 

 

P.S.P. - A arte contemporânea ainda o irrita em parte?

 

O.M. - Só quando a superstição é o reservatório de todas as verdades. O mundo não marcha senão pelo mal-entendido. É pelo mal-entendido universal que o mundo inteiro se entende. Pois se, por desgraça, os homens se compreendessem, não poderiam jamais entender-se. Talvez o homem de espírito seja o que nunca se entenderá com ninguém?

 

P.S.P. - Teríamos de tratar, então, do homem contemporâneo...e assim falamos do artista.

 

O.M. - Esse homem é tão pouco elegíaco, tão pouco etéreo, que encheria de horror até a um notário. Admiro os ainda capazes ao abstrato. Epíteto de ordem abstrata aplicada a um ser imaterial. O entusiasmo que se consagra a outras coisas que não sejam as abstrações é sinal de fraqueza ou até de doença. Os enganos tocantes às fisionomias são o resultado do eclipse da imagem real pela alucinação que dela se origina...

 

P.S.P. - Há o horror ao cotidiano mediocrizante do homem contemporâneo...

 

O.M. - Quase toda a nossa vida é empregada em curiosidades tolas. Em compensação, há coisas que deveriam acender no mais alto grau a curiosidade dos homens, e que, a julgar pelas vidas ordinárias, não lhes inspiram nenhuma: por exemplo: Que é a liberdade? Etc., etc.

 

P.S.P. - Há muita volubilidade, ela engole quase todos... Estamos nos referindo a um Império do Efêmero...

 

O.M. - Compreendo que se abandone uma causa (quando há) para saber o que se experimentará em servir a outra. Seria agradável, talvez, ser alternativamente vítima e carrasco. Há em toda volubilidade algo infame e agradável ao mesmo tempo, algo que participa da infidelidade e da mudança. Tout pour une vie moins ordinaire...

 

P.S.P. -  Para agravar, constata-se a arte - pura e simplesmente como comércio...

 

O.M. - E o pior: o espírito de todo comerciante é inteiramente viciado. Para o comerciante, a própria honestidade é uma especulação de lucro. A arte como comércio é algo diabólico, dado que é uma das formas do egoísmo, e a mais baixa, e a mais vil.

 

P.S.P. - E o Kitsch que parece imperecível, que nos ataca - em todas as arenas artísticas - pelas costas?

 

O.M. - Conceber um plano para a bufonaria lírica ou trágica, para pantomima, e traduzir isto em arte. Afogar o todo numa atmosfera cismativa, - na atmosfera dos grandes dias. Seja isso algo acalentador... A mistura do grotesco e do trágico é agradável ao espírito, como as discordâncias aos ouvidos enervados. O que há de fascinante no mau gosto é o prazer aristocrático de desagradar. O que importa é que, na formação de todo pensamento sublime (quando há sublimidade no Kitsch) deve haver um abalo nervoso que se faz sentir no cerebelo.

 

P.S.P. - Melgaço é um homem de convicções?

 

O.M. - Não tenho convicções, como as entendem os homens do meu século, porque não tenho ambição. Não há em mim base para uma convicção. Há uma certa frouxidão até. Wu Wei?  

Ocorre que somente os salteadores estão convencidos, - de quê? - De que devem vencer. Por isso eles vencem. Como é que eu venceria, se não tenho sequer vontade de tentar? Podem fundar impérios gloriosos sobre o crime, e nobres religiões sobre a impostura. Entretanto, eu tenho algumas convicções, num sentido mais elevado, e que muitos dos homens do meu tempo não podem compreender.

 

P.S.P. - Não poder compreender... Difícil compreender o enigma que há entre o Artista e o Tempo... Falo abstratamente, há um acerto possível entre ambos?

 

O.M. - Dizem que eu tenho trinta e tantos anos; mas se eu vivi três minutos em um..., não tenho noventa anos? Eis que a cada minuto somos esmagados pela idéia e sensação do tempo. Impossível esquecê-lo senão servindo-nos dele. Não há obra longa, salvo aquela a que não ousamos dar começo. Ela se torna um pesadelo. Outra questão é: o gosto do prazer liga-nos ao presente. O cuidado com a salvação (pela arte) suspende-nos ao futuro. Se penso na efemeridade e no mero hedonismo que infestam a arte: aquele que se liga ao prazer, isto é, ao presente, dá-me a impressão dum homem a rolar num declive, e que, querendo agarrar-se aos arbustos, os arrancasse e os levasse consigo na queda. Um axioma é revelado: antes de tudo, ser um grande homem e um santo para si mesmo. Digo a mim mesmo: quantos pressentimentos e sinais já mandados por Deus, de que já é mais que tempo de agir, de considerar o momento presente como o mais importante dos minutos, e de fazer dos meus tormentos minha perpétua volúpia? "Quando temos muito tempo para gastar, persuadimo-nos de que podemos esperar anos para brincar em face dos acontecimentos...", palavras de Chateaubriand. 

 

P.S.P. - Voltando às suas criações no tempo... Sente que há uma gradação em suas obras?

 

O.M. - Sim, tal qual uma Espiral. Estudar em todos os seus modos, nas obras da Natureza e nas obras do homem, a universal e eterna lei da gradação, do 'pouco a pouco', do 'aos poucos', com as forças progressivamente crescentes... O mesmo se dá com o tesouro variável da 'vontade'.

 

P.S.P. - 'Vontade'. Do que parte sua dita 'Inspiração'?

 

O.M. - De uma certa fruição sensual na sociedade dos extravagantes. A inspiração chega sempre quando quero, mas nem sempre se vai quando desejo...

 

P.S.P. - E quando não se sente 'inspirado' para criar, o que faz?

 

O.M. - Líquen da Islândia...125 gramas. Açúcar branco...250 gramas.  Mergulhar o líquen, durante doze ou quinze horas, numa quantidade suficiente de água fria, depois deitar fora a água. Fazer ferver o líquen em dois litros de água a um fogo brando e contínuo, até que esses dois litros se reduzam a um só, escumar uma só vez; adicionar então os 250 gramas de açúcar e deixar engrossar até à consistência do xarope. Deixar esfriar. Tomar três grandíssimas colheradas, de manhã, ao meio-dia e de noite. Não recear forçar as doses, se as crises forem por demais freqüentes...

 

Outono, 

 

'Je Suis L'Empire À La Fin De La Décadence ou A História É Sempre História De Uma Sociedade, Mas, Sem A Menor Dúvida, De Uma Sociedade De Indivíduos'  

 

P.S.P. - Comecemos com sua forma sui generis de conceber a mixagem de suas criações.

 

O.M. - Eisenstein. Concebia ele a montagem como a base da linguagem fílmica. A sua principal crítica aos senhores da montagem da época (Kuleshov e Pudovkin) era 'a de estes verem a unidade do plano como um tijolo; fazer um filme era encostar tijolos uns aos outros.' Eisenstein escreveu referindo-se a Pudovkin: 'Confrontei-o com o meu ponto de vista sobre a montagem como colisão. A ideia de que do choque de dois factores dados surge um conceito... Assim, a montagem é conflito. Na base de toda a arte está o conflito.'

Assim a mistura (mixagem) é conflito!

É notável a influência da dialética nessa teoria. Essa busca da síntese da arte e da ciência levou Eisenstein a interessar-se pela lingüística. Começou a acreditar que as origens da linguagem estavam na metáfora e na conjução com rituais místicos e mágicos. Chegou a crer que a linguagem dos povos primitivos seria bem mais metafórica e imagética que a das nações desenvolvidas. Saturou-se na leitura de antropólogos como Frazer, Lévy-Bruhl e Malinovsky e tomou o mito como função primeira do pensamento. Sob a influência do teatro Kabuki, o mestre russo começou a ver a montagem como uma atividade de fusão ou síntese mental, através da qual pormenores particulares eram unificados a um nível de pensamento superior, e não como uma série de explosões no interior de um motor em combustão, opinião que antes tivera. Começou a ficar fascinado pelo uso de convenções, máscaras e vestuários simbólicos que caracteriza o teatro oriental. Começou a interessar-se pelas idéias dos japoneses sobre a composição pictórica. O modo como o som e o gesto se relacionavam no teatro Kabuki fascinava-o - questão que, aliás, se tornou para ele cada vez mais crucial ao dar-se conta que o filme sonoro seria a fórmula do futuro. Compreendeu que no teatro Kabuki a linha de um sentido não acompanhava simplesmente um outro, mas que ambos eram inteiramente intermutáveis, elementos inseparáveis de um conjunto monístico. O cineasta estudou ao máximo o ritmo da imagem, o resultado imagem-palavra-música-sons. Descobriu e desenvolveu vários tipos de montagem (montagem rítmica, métrica, paralela, intelectual, dialética, tonal, vertical, horizontal, montagem das atrações). Eisenstein foi o Senhor da montagem por excelência. Procuro ser o Senhor das minhas misturas. E só.

 

P.S.P. - Misturas. Cadavre Exquis Ensemble é um projeto recente e intrigante. Uma música onipresentemente improvisada. Pode resumi-la em uma frase?

 

O.M. - Dieu est le cadavre de lui-même...

 

P.S.P. - Não é um paradoxo se sentir realmente como um artista do final do século XIX, como havia sugerido anteriormente a mim? Uma espécie de Decadentista?

 

O.M. - Pessoalmente gosto da palavra 'decadência', toda rebrilhante de púrpura e ouro. Ela pressupõe refinados pensamentos de extrema civilização, uma alta cultura literária, uma alma capaz de voluptuosidade intensa. Projeta fagulhas de incêndio e reflexos de pedras preciosas. Respira o pó-de-arroz das cortesãs, os jogos do circo, o arfar dos beluários, os saltos das feras, o desaparecimento nas chamas das raças esgotadas pela força de sentir, ao som invasor das trombetas inimigas. Je suis...

 

P.S.P. - Tratamos disso recentemente. Vamos além. Em vista do status quo, o Senhor sempre tem se referido ao dito 'artista' atual, em sua maioria, como que a alguém que assume o papel de um 'bobo da corte' perante grande parte da mídia, dos vários poderes, da sociedade... Em uma carta trocada comigo há pouco tempo citara Norbert Elias, poderia trazer de novo à baila tal assunto?

 

O.M. - Referia-me à dicotomia Genialidade e Bufonaria artísticas. Situado ainda entre decadentismos bréchon-pessoanos, cito que o destino do 'gênio' é o combate com o (terrível) Anjo: a resistência que opõe um espírito humano, demasiado humano, à grandeza soberana dos pensamentos que ele mesmo concebeu em seu delírio.

Há um artigo interessante do sociólogo Edson Bariani que nos presta ao ensejo... Na teia social de sua época, os Mozart (pai e filho) eram tão somente servidores de nobres cortesãos, faziam parte do universo dos muitos domésticos que buscavam a proteção (ou reconhecimento) de uma casa nobre. No entanto, o indivíduo Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) não se integrou perfeitamente às expectativas de prática social de sua época, buscando uma margem de autonomia artística que, como notara Elias, somente se realizou historicamente na maturidade de Beethoven (1770-1827). Portanto, o reconhecimento artístico de Mozart como gênio foi tardio. Porém, para se evitar anacronismos, deve-se perguntar: Como se colocava a questão do gênio na época de Mozart?

Na concepção iluminista, a questão do gênio – e, conseqüentemente, a do talento – era posta em termos de um dom natural, um legado ocasional da natureza. Até início do século XIX, não havia ainda a idéia do gênio como indivíduo, isto é, não havia a referência ao indivíduo como “gênio”, ao indivíduo como o possuidor de um dom especial. Na verdade, era quase como se o dom possuísse o indivíduo, a saber, havia um “gênio” que caprichosamente tomava o indivíduo, que se encarnava nele, instrumentalizava-o a serviço da natureza, da razão, da arte e – é bom lembrar – de um patrono. Nesse sentido, no limite, o que havia eram indivíduos de “gênio”, indivíduos que serviam ao “gênio”. Nas palavras de Kant (1724-1804), contemporâneo de Mozart:

“Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence, ele mesmo, à natureza. Poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposição natural inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra. [...] Gênio é a originalidade de modelar do dom natural de um sujeito no uso livre de suas faculdades de conhecimento [...]. O gênio é um favorito da natureza, tal que só se pode considerá-lo como um fenômeno raro; o seu exemplo, para outras boas cabeças, produz uma escola, isto é, uma instrução metódica segundo regras, na medida em que se tenha podido extraí-las daqueles produtos do espírito e de sua peculiaridade; e, para estas, a bela-arte é, nessa medida, imitação, à qual a natureza, através do gênio, deu a regra.”

 

No entanto, como lembra Elias, as regras da arte seguiam o gosto cortesão. Era inscrevendo-se nesse padrão de gosto e realizando-o com maestria que Mozart construía a sua variação de arte, cuja finalidade social modelar era servir como entretenimento para nobres cortesãos. Portanto, se para alguns contemporâneos de Mozart, como Kant, o gênio era como um legado que materializava o ‘espírito’ do ingenium natural e, de certo modo, fazia progredir a arte por meio de sua ação, não se deve ignorar que tal gênio, uma vez encarnado, adquiria funcionalidade, realizava um padrão de gosto inscrito numa relação social de poder.

A concepção posterior de gênio como indivíduo extraordinário – i.e., a noção de sujeito de raro talento, com consciência singular do processo artístico – é uma idéia romântica. Somente no romantismo o gênio tornou-se o indivíduo espetacular que, no livre e deliberado exercício de seu talento pessoal, rompe com os limites do seu tempo, quebra os padrões e extrapola a ordem, fazendo avançar as formas de expressão e criando novas condições a partir das quais os outros recomeçam, abrindo caminho para que outro indivíduo genial rompa com o estabelecido. Assim, quando chegamos à geração de Hegel (1770-1831), já podemos observar este deslocamento de sentido:

“Gênio é aquele que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para exercer tal poder com o máximo de eficácia. Tal poder e tal energia são, porém, essencialmente subjetivos, pois a produção espiritual só pode existir num sujeito consciente do que quer, dos fins que se propõe, da obra que pretende realizar”.

O gênio – da forma, tal como é definido por Hegel – tem seu exemplar, mormente, em Beethoven, o artista romântico por excelência, aquele que – ao contrário de Mozart – encontrará um terreno fértil para contrariar o status quo, já que presenciará a decadência do Antigo Regime e a ascensão de um novo ambiente cultural, não mais regido pela rigidez do gosto da corte, mas sim direcionado a um público anônimo. Mozart, segundo Elias (1995: 45-52), viveu justamente a tensa transição da arte de artesão para a arte de artista. Embora eu considere que esta distinção feita por ele seja pertinente, já que se refere a configurações sociais historicamente distintas, penso que Elias subestima consideravelmente o poder do público e do mercado de ditar os padrões de gostos para a arte de artista. Otto Maria Carpeaux trata dessa transição da arte de artesão para a arte de artista de forma bastante semelhante a Elias, quando afirma que:

“A igreja, a corte monárquica e o palácio do aristocrata perdem a função de mecenas que encomenda obras ao artista. No século XIX, o compositor enfrenta o público, isto é, uma massa de desconhecidos, pessoas que não encomendaram nada: esperam, apenas, algo de novo. Ao anonimato dos ouvintes corresponde o subjetivismo romântico do compositor. Esse novo público é, evidentemente, a burguesia”.

Segundo Elias, mesmo vivendo uma situação condicionada pela arte de artesão, Mozart pretendeu se estabelecer como artista autônomo depois que fracassou em ser aceito na corte de Viena. Assim, deixou-se guiar por uma ânsia de expressão original e criadora, fustigando os limites do padrão de gosto da arte cortesã justamente porque sabia realizá-lo de forma sublime – mérito da educação disciplinada, neste padrão, em que seu pai tanto se esmerara a dar-lhe. Deste modo, a sua genialidade, como “fato social”, termina por encerrar o seu “destino social”, já que lhe confere uma condição de “desvio da norma”, a despeito de sua subordinação social aos ditames da corte. Mozart insurgiu-se contra esse estado de coisas e vislumbrava a possibilidade de expandir os estreitos padrões da arte a partir de suas próprias exigências estéticas pessoais.

Todavia, a sociedade de sua época vedava a Mozart o exercício da condição de artista autônomo: ele – um “burguês outsider na sociedade da corte”, segundo Elias – esbarrava nas estreitas condições de produção da arte (e imperativos do gosto) por possuir uma convicção da independência do artista no processo de criação. Assim, rebelava-se contra o estado de coisas e angariava problemas em demasia para a sua vida doméstica. Considerando isso, caberia perguntar: Se as condições sociais cerceavam o horizonte de atuação transformadora de Mozart enquanto indivíduo e gênio, poderia ele expandir os estreitos limites de sua atuação e mudar significativamente suas possibilidades de realização dentro de uma estrutura de relações sociais? De modo simplificado, poderia ele mudar o seu destino social e, em última instância, os aspectos da sociedade em que vivia?

A possibilidade (ou não) de mudança social e mesmo do ‘curso’ da história por indivíduos já foi aventada e intensamente discutida. O filósofo escocês Thomas Carlyle (1795-1881), autor de “Os Heróis”, chegou mesmo a esboçar uma filosofia da história na qual os heróis – indivíduos raros e superiormente dotados – fariam eles próprios, com suas proezas, avançar a história. Na sociologia, se Marx (1986) deixou pouquíssimo espaço para a atuação do indivíduo na história – e talvez a sua própria existência, determinante para alguns acontecimentos, contrarie-o na sua teoria – e privilegiou as classes sociais como sujeitos, Durkheim (1978), de outra forma, praticamente vetou a ação socialmente significativa dos indivíduos, vendo nestes uma mera função de uma sociedade (“ente externo”) generalizadora.

Max Weber (1982), adepto de certo individualismo metodológico, reconheceu a possibilidade de o indivíduo influenciar decisivamente os rumos sociais – ainda sim, tais afirmações não constam de sua teoria da ação e sim das formas de dominação. Em sua teoria, somente na análise da dominação carismática surge um indivíduo que, particularmente encarnando determinados atributos socialmente reconhecidos, isto é, dotado de carisma, poderia – em circunstâncias peculiares – modificar a forma de ordenação de uma sociedade, subvertendo a ordem e, modernamente, a avassaladora rotinização do domínio da racionalização.

E na visão de Norbert Elias? Como era colocada a questão do indivíduo extraordinário, o seu horizonte de atuação e os seus limites institucionais e históricos? Para ele:

“Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode transformar sua sociedade de um só golpe”.

Ainda que...

“[...] a margem de decisão individual emirja dentro da rede social, não existe uma fórmula geral indicando a grandeza exata dessa margem individual em todas as fases da história e em todos os tipos de sociedade. Justamente o que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem da estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age. De nenhum tipo de sociedade essa margem estará completamente ausente”.

Entretanto,

“[...] a forma e a extensão da margem individual de decisão podem variar consideravelmente, conforme a adequação e a estatura pessoais do ocupante da função. Aqui, a margem de decisão é não apenas maior, como também mais elástica; nunca, porém, é ilimitada”.

Assim, nem a sociedade nem os indivíduos determinam unilateralmente a história, não há uma regra geral ou modelo interpretativo único que fixe cabalmente o papel e as possibilidades de mudança por parte dos sujeitos sociais. Mesmo o indivíduo, em sua singularidade, pode – em certa margem – promover mudanças sociais, mesmo “o caráter individual e a decisão pessoal podem exercer considerável influência nos acontecimentos históricos” (ELIAS, 1994: 51). Voltemos, então, ao caso Mozart: Por que o jovem gênio, com todo o seu virtuosismo, não pôde exercer sua arte da forma almejada, como o faria mais tarde Beethoven com imensa autonomia?

Uma passagem da biografia de Beethoven – relatada por J. e B. Massin – ilustra com precisão a nova conduta do gênio romântico como artista independente, esteticamente ‘livre’, que já não reverenciava o patronato cultural e a rígida hierarquia social. Ao ser interpelado pelo Príncipe Lichnóvski a respeito de sua arte, Beethoven respondeu: “Príncipe, o que sois viestes a ser pelo acaso do nascimento. O que sou, sou por mim mesmo. Príncipes existem e ainda existirão aos milhares, Beethoven, só existe um”. Ele já tinha arraigada a consciência de sua singular condição, via-se, como é visto até hoje, como ícone da música; por outro lado, quem se lembra ou mesmo conhece hoje o Príncipe Lichnóvski?

No entanto, no ocaso Mozart, fora vedada socialmente a alternativa de subverter o establisment social-estético devido à inexistência de um mercado e público anônimo de consumidores, o que concederia ao artista, segundo Elias, a possibilidade de se expressar esteticamente de modo mais ‘livre’, sem constrangimentos imediatos à sua obra:

“O fato de Mozart depender materialmente da aristocracia da corte, quando ele já tinha se constituído como artista autônomo que primariamente buscava seguir o fluxo de sua própria imaginação e os ditames de sua própria consciência artística, foi a principal razão de sua tragédia.”

 

Tem-se então que, tragicamente, Mozart fracassou na vida e realizou-se na história. Derrotado em vida pelas condições limítrofes da sociedade em que viveu, acabou triunfando postumamente em sua luta pela autonomia da arte. Seria isso uma vitória momentânea da sociedade ou – na derrota – uma vitória histórica do indivíduo? Tal questão Norbert Elias não se colocou. 

Nosso caro Bariani nos deixa, portanto, um enigma que nem mesmo, talvez, Elias tenha elucidado. Enquanto isso, façamos ('A' e 'P' maiúsculos - o Artista e o Público  contemporâneos) coro com Beethoven: “Ó lepidóptera, ó infernale Machine Sociale: O que sou e somos, sou e somos por mim e por nós mesmos. Tais decrépitas engrenagens existem e ainda existirão aos milhares, prezamos e lutaremos para edificar o que só existe um!”

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