top of page

H o r a  S e v e r a

 

 Quem neste instante chora em algum lugar

do mundo,
sem motivo chora no mundo,
me chora.

Quem neste instante ri em algum lugar na noite,
sem motivo ri na noite,
se ri de mim.

Quem neste instante morre em algum lugar

no mundo,
sem motivo morre no mundo,
me observa.

Quem neste instante caminha em algum lugar

no mundo,
sem motivo caminha no mundo,
caminha até mim.

 

(R a i n e r M a r i a R i l k e)

 

 

Quando se discute a velha questão da arte pela arte e da arte como função social, nem sempre se questiona o principal interessado, o povo. Fala-se da necessidade de tornar a arte acessível ao povo, ou então de elevar o povo ao nível da compreensão da arte, como se povo e arte fossem duas entidades distintas que jamais se tivessem encontrado, dois inimigos que é preciso conciliar. Não é difícil descobrir por detrás disto uma atitude aristocrática e paternalista, que ignora a existência duma arte popular e duma sabedoria popular, e para quem o povo não passa duma massa de gente destituída de razão, de sensibilidade e de vontade própria. No fundo (pese embora a muitos, bem intencionados) é a mesma atitude daqueles que, falando de cátedra, dizem que o povo ainda não está preparado para certas formas de vida... como se não tivesse sido o povo o agente de todas as grandes transformações históricas!

            Quando se transpõe esta questão especificamente para o domínio da música, o equívoco aumenta ainda mais pela intervenção de outro factor: a "música ligeira". As pessoas são levadas a pensar que é esta a "música popular", sem se aperceberem de que o elevado consumo dessa música deriva apenas da expansão da indústria, do comércio, da publicidade, enfim, de um conjunto de mecanismos que nada têm de artístico nem de popular, cujo móbil é, pelo contrário, organizar a alienação e extrair delas as maiores margens de lucro. Dominados pelos mesmos interesses e objectivos, os meios de comunicação - na sociedade de consumo -fornecem música ligeira em quantidades industriais e filtram tudo o mais, inclusive a verdadeira arte musical. A informação - a política da informação - tem, pois, muito que ver com a função social da arte.

            Enquanto isso se passa, o povo continua a conservar a sua música, a "música popular" genuína. A música que ele canta no trabalho, nas suas festas tradicionais, nas ocasiões solenes, não a aprendeu ele da rádio ou de quem quer que fosse. Nasceu ligada à própria função a que se destina porque a arte faz parte da vida e o povo nunca a dispensou no seu quotidiano.

            Para além do seu interesse etnomusicológico ou sociológico, a verdadeira "música popular" tem também enorme interesse estético. A riqueza melódica, harmónica, rítmica, até mesmo tímbrica, dos documentos musicais recolhidos mostra que a arte do povo, aquela que ele verdadeiramente reconhece como sua, é uma arte superior, que não se pode confundir ou sequer comparar com os subprodutos ordinários da cançoneta ligeira. Mercê de certos mecanismos socio-económicos, esta - a cançoneta ligeira - tem constituído uma espécie de tampão, que impede ou dificulta as relações entre o povo e a criação musical dita erudita, entre a música genuinamente popular e a música "séria". Mas os grandes compositores, ao longo de todas as épocas da história da música - muitos contemporâneos não fogem à regra - nunca deixaram de se interessar seriamente pela "música popular", quer harmonizando-a para agrupamentos corais ou instrumentais, quer utilizando os seus temas em todo o género de obras, quer ainda assimilando a linguagem musical popular e aplicando-a sistematicamente como sua própria. A riqueza expressiva, o conteúdo social, a arte, são conceitos que se aplicam tanto à música popular como à chamada música "séria".

            Se alguma coisa há que esteja longe duma e doutra, alguma coisa a que não podem aplicar-se tais conceitos, é a "música ligeira".

            Por isso, não faz sentido dizer que esta é mais acessível ao povo do que a "música séria"; é apenas mais consumida, por imperativos comerciais e ideológicos das empresas que lucram com este consumo.

            Tem-se usado e abusado muito do termo folclore. Tudo é folclore: os ranchos, as marchinhas de Lisboa, o fado, a cançoneta a arremedar o estilo rústico, tudo o que cheira a pitoresco. Daí que o adjectivo "folclore" chegue a ter um sentido pejorativo. Associamo-lo logo ao ridículo de certos espectáculos, concebidos para-turista-ver.

            É claro que o verdadeiro folclore não se confunde com isso. O verdadeiro folclore é a música rústica, a música que os camponeses conservam na sua tradição e que corresponde a situações precisas da sua vida quotidiana: aos trabalhos do campo, às festas religiosas - a que o povo dá um cariz muito especial -, a tudo aquilo que tem relevância social. Com o desenvolvimento industrial, essas tradições foram desaparecendo nos meios urbanos e, nos casos em que esse desenvolvimento não foi acompanhado de profundas transformações sociais, acabaram substituídas por práticas decadentes, em vez de derivarem para outras formas de actividade cultural. O repositório do folclore é, pois, hoje em dia, o campo, mais precisamente, no nosso caso, as regiões onde ainda não se faz sentir com agudeza a influência dos meios de comunicação. Estes, na verdade, não têm levado ao povo a música do povo, nem qualquer outra música de dignidade igual ou superior à do povo, mas sim subprodutos que designamos genericamente por "música ligeira". Com o tempo, e a manter-se o "statu quo", o povo acabará por esquecer a sua música tradicional, recebendo em troca algo que nada representa para ele.

          Ao olhar para a doutrina da música concreta tal como foi originariamente delineada por Pierre Schaeffer deparamos logo com uma especial atitude no que respeita à relação da música concreta com a música tradicional. É uma relação de autonomia. Até aqui, houvera apenas uma arte dos sons que merecia o nome de Música. Todas as novas escolas e correntes, através dos séculos, por muito reformadoras que fossem, tinham aceitado implicitamente essa unidade.

            Schaeffer não apareceu como um reformador da música tradicional. Embora ele a criticasse, acerbamente às vezes, não se mostrou interessado na sua reforma. Quis, antes, criar ao lado dela mais uma arte dos sons, independente daquela que até hoje era a única a ter o nome de Música. Perguntemos: Quais as bases de um projecto tão ambicioso?

            A primeira conquista que a música concreta para si reclamou foi a da pura sensação auditiva, que passou a ter uma importância absoluta e exclusiva.

            Poderia parecer que esta reclamação não tinha nada de radicalmente inovador, uma vez que, já antes, várias correntes da música tradicional haviam proclamado a primazia do prazer auditivo No entanto, a música concreta dá a essa reclamação um alcance como nunca antes teve, e é incompatível com tudo o que anteriormente por isso se entendera.

            Com efeito, por muito grande que fosse a importância dada à sensação auditiva, sempre a Música Ocidental partira do pressuposto de que essa sensação estava subordinada ab initio a um certo princípio de ordem, que a regia e lhe conferia um sentido e uma qualidade; podia esse princípio chamar-se inspiração, podia chamar-se forma, não importa, o que importa é que era sempre de um grau mais abstracto do que a simples sensação, e gozava de um verdadeiro direito de precedência em relação a esta. Era por isso que o compositor tradicional, para compor, não precisava absolutamente de começar por ouvir certos sons concretos: ele podia compor, mesmo sem ter nenhum instrumento à mão - bastavam-lhe papel e lápis. Para a sua composição, partia de certas relações ou impulsos, de natureza qualitativa, e os sons vinham a surgir primeiro na sua consciência, como os suportes requeridos para que essas relações e impulsos pudessem tomar corpo.

            Ora, os músicos concretos terão sido os primeiros a ter a coragem (porventura suicida) de concentrar todas as faculdades da sua consciência sobre a pura sensação auditiva, livre de qualquer infra-estrutura afectiva ou intelectual, e de banir mesmo, por um acto de vontade, tudo o que implicasse precedência dessas estruturas sobre a simples sensação.

            Tratou-se, assim, como Schaeffer de boa mente salienta, de uma verdadeira inversão de Copérnio. E é dessa inversão de ponto de partida que derivam as restantes características fundamentais da música concreta.

            Assim, a música concreta foi levada a reservar um lugar destacado para os elementos quantitativos da sensação. O que se compreende: uma vez que a sensação é amputada dos elementos afectivos e intelectuais, que são essencialmente qualitativos e dinâmicos, fica circunscrita a um estado de imóvel tensão, em que a intensidade tem um papel de relevo.

            Daí até sentir que as sensações auditivas se podem adicionar entre si vai apenas um passo. E, continuando, conclui que a obra musical deve visar à maior quantidade e intensidade de sensação possível.

            Uma outra consequência, porventura mais directa, e decerto mais espectacular, é a substituição da noção tradicional de nota musical (considerada demasiado abstracta e intelectual) pela noção de objecto musical.

            Realmente, como todos sabem, toda a música tradicional, antes de existir como som, existe previamente como notas de música, normalmente constituindo uma partitura, que só se converterá em sons efectivos mediante a chamada execução. Ora as notas de música não fornecem senão um sistema de coordenadas, como que balizas dentro das quais o intérprete produzirá os seus sons, com uma grande soma de liberdade.

            Por isso que a própria ideia de notação envolve uma certa soma de abstração sobre os caracteres da realidade notada, era fatal que a música concreta a repudiasse. O objecto musical não pode ser notado, pode ser gravado em fita magnética, que o reproduzirá com a fidelidade desejada.

            Desnecessário insistir no facto de que é também o ponto de partida eminentemente sensualista da música concreta o responsável pela busca, e aceitação, dentro dela, de todos os sons e ruídos possíveis. Porque, já que a obra musical há-de ser construída directamente com sensações auditivas, objectos musicais, naturalmente se sentirá a necessidade de que esses objectos musicais sejam o mais numerosos e ricos possível.

            Finalmente, a doutrina da música concreta, na sua origem, olhou com bastante desconfiança o uso de sons produzidos pelos instrumentos tradicionais. Isto por uma razão teórica: uma vez que o ouvinte podia determinar a fonte de produção daquela sensação auditiva, tratava-se de uma sensação impura, porque eivada de elementos intelectuais - a categoria de causalidade.

            Esta, muito esquematicamente, a doutrina da música concreta na pureza do seu proselitismo originário. A prática se encarregou de a limiar e modificar.

          Nos últimos vinte e cinco anos, Schaeffer afastou-se da composição e dedicou-se apenas à formulação teórica da sua doutrina. Mas acabou por ultrapassar as fronteiras da música concreta e estender a sua doutrina a todas as formas de comunicação estética, incluindo designadamente as artes visuais.

            A par disso, o tom de Schaeffer tende a ser, agora de um reformador da arte tradicional, o que o leva a lançar diatribres mais acerbas contra outras correntes vanguardistas. Assim, acusa mais do que nunca a música eletrónica de cerebralismo e abstração, e opõe-se às tentativas de criação científica da obra musical (por exemplo, pela música dita estocástica), as quais acusa de desconhecerem a natureza do facto musical.

            E tocamos aqui o ponto mais interessante da evolução do pensamento de Schaeffer.

            Schaeffer reconhece agora que a sensação musical pura é coisa que não existe. Todo o som, todo o objecto musical, traz a marca de uma estrutura afectiva ou intelectual, é não um facto físico, mas um fenómeno de significação. Privá-lo dessa significação é mutilá-lo.

            Por último, Schaeffer (e com ele a escola de Paris) há muito reconheceu que a relação de causalidade, que liga um instrumento musical clássico aos sons por ele produzidos, é muitas vezes menos perturbante do que a que liga muitos outros objectos musicais às suas fontes de produção.

            Daí a introdução frequente de partes instrumentais (aliás não gravadas, mas sim executadas ao vivo) em obras de música concreta.

           As mudanças de tom, e de substância, atrás indicadas não impediram que se descortine que continua grande o fosso entre a maneira de Schaeffer conceber a criação musical e a concepção tradicional.

            Com efeito, não basta reconhecer que a sensação contém um significado, se não se tiver a coragem de reconhecer que tal significado não é prisioneiro da sensação, mas a precede logicamente.

            É que não basta haver sensação para haver expressão seja do que for. A sensação pode ser prenhe de uma promessa de expressão, mas, para que essa promessa se realize, é preciso que a sensação entre num jogo, que viva e se transforme, dê lugar a uma forma, essa, sim, manifestando uma significação.

            Quando vier um criador que seja capaz de dar este último passo que ainda resta dar na doutrina e na prática da música concreta então os esforços iniciados por Schaeffer terão o seu epílogo porventura glorioso.

            Em vez de uma forma de arte precariamente autónoma e centrífuga, teremos mais uma magnífica floração da música de sempre.

              A intervenção do acaso na criação e na execução musicais não é uma descoberta ou uma conquista do nosso tempo. O primeiro exemplo de composição aleatória surgiu no século XVIII e é atribuído a Mozart. Com a ajuda de um jogo de dados, qualquer pessoa podia compor uma pequena peça musical. Cada primeiro compasso, segundo compasso, etc. de uma valsa ou de um rondó era escolhido à sorte entre as respectivas variantes até se formar um trecho completo. Também a Arte da Fuga de Bach tem sido apontado como exemplo da introdução do acaso em música, não já no plano da composição mas no da execução: o autor não especifica os instrumentos, o que quer dizer que o aspecto tímbrico da obra varia de interpretação para interpretação.

            Mas como acto consciente e sistematizado, com relevância estética, o aleatório em música surge apenas no século XX, na década de cinquenta, em consequência da evolução experimentada pela música serial.

            O determinismo total desta última, já continha dentro de si o seu próprio contrário. Schoenberg lançara o dodecafonismo nos anos vinte: a série de doze notas, ditada pela necessidade de eliminar o menor vestígio de preponderância de uma sobre as outras era apenas um princípio de ordenação das alturas dos sons. A distribuição destes pelos instrumentos, as intensidades com que seriam tocados, e os seus ritmos ou durações continuavam, como anteriormente, subtraídos a regras predeterminadas, escapavam ao determinismo serial. Webern é o primeiro a estender o princípio serial) a todas as componentes do processo musical. Boulez fala de estrutura e, para ele, o dodecafonismo pertence já ao passado: não há que temer agora o espantalho da música tonal; importa sim estruturar a todos os níveis a linguagem musical, a partir de um núcleo de células geradoras escolhidas pelo compositor, que podem compreender qualquer número de sons. Alturas, intensidades, durações, timbres, tudo passa a ser rigorosamente determinado, organizado, estruturado, segundo o princípio serial. É então que surge uma viragem. No meio de todo esse rigor determinista, põem-se constantemente ao compositor diversas opções ou alternativas. O compositor descobre que a coerência estrutural do todo é compatível com várias soluções que igualmente o satisfazem. E lança mão do acaso: entrega a este a tarefa de optar por uma das alternativas possíveis. O norte-americano John Cage é o primeiro a fazê-lo, logo em 1951, numa obra para piano intitulada Music of Changes. Nesta obra, os agregados de sons encontram-se escritos com toda a precisão quanto às alturas, mas a sua duração, bem como a sua periocidade, são ditadas pelo I-Ching.

            A compatibilidade de várias soluções com a coerência estrutural do todo pode ainda levar o compositor a transferir para o intérprete a função criadora. Passamos então do aleatório na composição para o aleatório na interpretação. Neste domínio, a obra marcante é a Klavierstuck XI de Stockhausen, composta em 1956: aqui, cabe ao pianista escolher entre as alternativas que se lhe oferencem, no próprio momento da execução. São, a este respeito, igualmente inovadoras a Sonata nº 3 de Boulez (1957) e o Concerto para Piano e Orquestra de John Cage (1958).

            A partir daqui, era de esperar que as formas de indeterminação do percurso musical a seguir pelo intérprete se diversificassem e alargassem cada vez mais. A ponto de o compositor se limitar a escrever um texto verbal sobre o qual um músico ou um grupo de músicos iriam reagir segundo a sua inspiração do momento. Estas experiências foram também lançadas por Stockhausen e podem assumir formas muito complexas, nomeadamente a interacção de vários textos e grupos de músicos reagindo ao mesmo tempo em salas diferentes e recebendo estímulos uns dos outros através de circuitos eléctricos manipulados pelo compositor (por um dos autores dos textos verbais) durante a interpretação. Tais experiências não cabem em rigor no âmbito da música aleatória. Pertencem já ao domínio da improvisação. O que há de peculiar naquelas práticas, aliás efémeras, é a presença de um texto verbal elevado à dignidade de partitura. Porque a improvisação, a partir de um tema, de um motivo musical, tem largas tradições não só na música europeia como na música negro-americana (Jazz) e em certas músicas orientais. De qualquer modo, a improvisação livre, hoje muito praticada por grupos de música contemporânea, é talvez a consequência última da crescente indeterminação a que conduziu dialecticamente o determinismo serial.

            Mas é precisamente contra todas as formas de indeterminação que se insurge Iannis Xenakis, um dos raros compositores que modernamente se batem por alcançar uma nova síntese, de ordem superior. Para Xenakis, a indeterminação na execução musical é incompatível não só com o conceito de acaso, mas com o próprio conceito de composição. Por um lado, sendo o intérprete um ser fortemente condicionado, não se poderia admitir a tese da escolha incondicional por ele exercida. Por outro lado, o compositor demitir-se-ia ao consentir vários circuitos possíveis equivalentes; haveria uma mera substituição de autores, e não, verdadeiramente, intervenção do acaso. O acaso, diz Xenakis, calcula-se; é uma coisa rara, que até certo ponto se pode construir, mas muito dificilmente, com a ajuda de raciocínios complexos que se resumem através de fórmulas matemáticas; pode ser construído, mas nunca improvisado ou imitado mentalmente. E remete para a demonstração da impossibilidade de imitar o acaso feito pelo matemático Émile Borel, especialista no cálculo de probabilidades. Sair do campo primário do acaso, que considera indigno de um músico, e calcular o aleatório é um dos objectivos que Xenakis se impôs a si próprio como compositor, recorrendo para o efeito a operações matemáticas, mais precisamente àestocástica.

            A razão por que atrás falamos de síntese de ordem superior, referindo-nos a Xenakis, decorre do facto de a sua crítica à indeterminação na execução musical ser também válida para o determinismo serial. Na verdade, segundo explica o autor das Nuits, a enorme complexidade a que chegou o estrito determinismo serial "impede na audição a possibilidade de se seguir o enredado das linhas e tem como efeito macroscópico uma dispersão ilógica e fortuita de sons de toda a extensão do espectro sonoro". Concluiu, assim, que há contradição entre "o sistema polifónico linear e o resultado que se ouve, que é superfície, massa". Também aqui se torna necessário, portanto, recorrer à estocástica, à aplicação da "noção de probabilidade", que permitiria, nesta hipótese, resolver a contradição entre o que se apreende da escrita serial e o que se apreende da audição.

            Daqui à utilização dos computadores, não para comporem eles a música, mas para assistirem o compositor nas operações matemáticas que este tem de fazer (isto é, para o libertarem de cálculos demorados e fastidiosos e o deixarem todo entregue às grandes linhas da sua concepção criadora), vai apenas um passo. Esse passo deu-o já Xenakis há mais de vinte anos.

            Mas a missão histórica de Xenakis não foi ou não é apenas a de resolver a contradição entre o acaso e o determinismo na música contemporânea. Outra missão chamou ele a si, não menos importante: a de apelar, no meio dos compositores experimentalistas, para uma tomada de consciência dos valores estéticos. Xenakis não confunde a matemática com a arte. É constante nos seus escritos a preocupação de distinguir bem uma da outra. Afinal, também Bach, Mozart e Beethoven fizeram uso de uma matemática. Mas, se foram grandes compositores, foi porque conseguiram ir além dela. Também Xenakis nos alerta para a especificidade do fenómeno estético. Para ele, a grande música contemporânea tem de assentar nas conquistas da matemática e da tecnologia modernas, mas será grande música na medida em que os compositores saibam utilizar essas conquistas para esteticamente as transcenderem.

       Quando ouvimos qualquer som musical, podemos classificá-lo quanto ao grau de intensidade sonora. Diremos que ele é mais forte ou mais fraco relativamente a outro som tomado como ponto de referência. Estamos então no domínio da dinâmica. O compositor pode determinar em cada momento a intensidade sonora que mais convém aos seus objectivos, empregando uma gama de indicações que vai desde o pianíssimo (a menor intensidade possível) ao fortíssimo (a maior intensidade possível e outras ainda, como, por exemplo, as que fazem variar gradualmente essa intensidade (crescendo, diminuindo). Como bem se compreende, a dinâmica é, pois, uma das componentes fundamentais da criação musical.

            Outra componente, não menos importante, é a que diz respeito à fonte que origina o som, isto é, ao instrumento ou à voz humana. A opção entre um violino ou um piano, entre um violino ou um grupo de violinos, entre os instrumentos de sopro ou os instrumentos de corda, entre um tenor ou um barítono, insere-se debaixo de um outro ponto de vista, sem a consideração do qual a música nem sequer existiria: estamos então no domínio da componente timbre.

            Quando qualquer de nós entoa uma melodia, trauteia um tema da sua predilecção, canta uma canção em voga, não é no timbre nem na dinâmica que se concentra: o timbre é um dado, neste caso, a sua própria voz; a dinâmica é a que lhe apetecer ou for ditada pela conveniência do momento (pode até acontecer que nem sequer chegue a entoar ou  a cantar a melodia e se limite a pensá-la). Para descrever ou escrever a música, só neste momento é que fazem verdadeiramente falta as cinco linhas horizontais que constituem a pauta. Porque só neste momento intervêm as notas de música (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si), ou melhor, os intervalos entre elas. O que se passa então é que nós produzimos sons de alturas diferentes, e o que caracteriza a melodia ou o tema é, antes de mais, a relação entre essas alturas diferentes. Outra componente, portanto, a considerar: a altura.

            Ninguém reconheceria, porém, facilmente, uma canção, mesmo das mais em voga, se experimentasse reproduzi-la - quanto à altura dos sons - alterando ao mesmo tempo a duração de cada um desses sons. Pelo que um tema ou uma melodia não são efectivamente só caracterizados decisivamente pela relação entre as alturas. A duração relativa desses sons também é uma componente imprescindível.

            Digamos, pois, que a dinâmica, o timbre, a altura e a duração dos sons são as quatro componentes (ou os quatro parâmetros como costuma dizer-se hoje na linguagem "de vanguarda") fundamentais da criação musical.

            Dividamos agora esquematicamente a história da música em duas eras: antes de Webern (1883 - 1945), depois de Webern. E também, muito esquematicamente, digamos que até Webern o essencial na invenção musical era tudo o que envolvia a altura dos sons (e as suas consequências melódicas e harmónicas) e a duração dos sons (e, nomeadamente as suas consequências rítmicas). O timbre e a dinâmica constituíam revestimentos importantes mas não a própria essência da criação musical. (Entretanto, isto não invalida o reconhecimento de uma evolução, que se traduz no facto de esta afirmação ser cada vez menos verdadeira). Webern coroa a evolução histórica estabelecendo, por assim dizer, a equiparação essencial entre as quatro componentes ou parâmetros.

            Penderecki, nascido precisamente cinquenta anos depois de Webern, começa a compor aí uns dez anos após a morte deste, quando a lição do grande mestre austríaco estava a ser já aplicada pelas "vagas" imediatamente anteriores de jovens compositores como por exemplo Boulez, já em 1955, e por outro grande mestre a mudar de "fase": Stravinsky. Ora, o que acontece com Penderecki é que ele já não passa pela aplicação dos ensinamentos de Webern, no que respeita ao ponto de vista que temos vindo a considerar. Penderecki não é um compositor serial (não trabalha com séries de alturas, durações, timbres e intensidades, estruturalmente organizadas, como faz ou fez Boulez). Ensaia um novo caminho: transformar a essência da música naquilo mesmo que, anteriormente a Webern, era seu mero revestimento, ou seja, trazer para primeiro plano as duas componentes timbre e dinâmica. Aqui reside talvez a maior originalidade da sua música e porventura também a sua maior fraqueza.

            A esta luz, bem se compreende que ele, em declarações públicas, insista na concepção arquitectural das suas obras, concepção que se materializaria (antes mesmo de começar a compor), num desenho, num plano gráfico para a totalidade da obra.

            O seu trabalho criador parece consistir numa espécie de distribuição ou de ordenação, no espaço-tempo, de efeitos sonoros essencialmente definidos (insistimos) pelo timbre (dos instrumentos) e pela intensidade (das propostas). Dizemos bem quando dizemos efeitos, para marcar a diferença de um pensamento rigoroso (matemático) e profundo. Aqui tocamos num ponto interessante: a forma em Penderecki, mau grado a necessidade que ele sente de a cuidar num plano gráfico prévio, nem sempre é uma forma tensa, nem sempre é uma forma que dê corpo a uma necessidade interna, profundamente sentida e unívoca, de significação de ideias coerentes através da música. É apenas, em muitos casos, uma ordenação arbitrária e demagógica de (belos) efeitos. Em todo o caso, não se pode ignorar, nem menosprezar, o papel histórico de Penderecki. Não se pode ignorar, nem menosprezar, o significado de obras como Threnos to the Victims of Hiroshima ou De Natura Sonoris. Aí, quando Penderecki alcança uma forte coesão entre os fins e os meios, entre a expressão e a linguagem, entre o conteúdo e a forma (não tenhamos medo do "chavão"), quando, enfim não aplica simplesmente uma receita - a sua própria receita - mas descobre ou redescobre uma dimensão sonora para o seu tempo, aí Penderecki afirma-se como um grande criador. Aí, a sua música não é mais efeito ou demagogia, é grito e lamento, é dor e esperança, é a nossa voz, a nossa raiva, a nossa luta, a nossa angústia também. Duramente, secamente, no contraste dos timbres e das intensidades.

         Numa obra de arte, a questão estética integra a questão política. Não há uma estética só da forma e outra só do conteúdo. Não há uma estética abstracta, existindo por si e para si, fora de todas as realidades: a perspectiva crítica, no plano estético, implica sempre necessariamente a consideração da génese e eficácia social da obra, incide também sobre o significado político que esta assume no contexto em que surge. Não se pode opor a estética à política. Não há obras "politicamente" reaccionárias e "esteticamente" progressivas, nem obras "esteticamente" reaccionárias e "politicamente" progressivas. Uma obra de arte ou o é na sua totalidade incindível (e então não se concebe que possa ser reaccionária seja sob que perspectiva for) ou não é uma obra de arte.

            A musica de "cordel" praticada nos meios radiofónicos-televisivos não está apetrechada, do ponto de vista das potencialidades expressivas, para apreender e projectar no futuro a realidade do nosso tempo. A pobreza dos meios de que se serve, há muito ultrapassados, está em contradição com a novidade e a riqueza de situações da época em que vivemos. A sua modernidade é puramente superficial e demagógica: é uma mentira que se disfarça sob o aparato das conquistas tecnológicas; não tem expressão ou relevância estéticas.

            A música comercial nega o seu tempo. Por isso é reaccionária a todos os níveis, é um dos veículos de alienação mais persistentes e contundentes. Não pode, em caso algum, servir um texto literário que se queira verdadeiro e profundamente moderno e interveniente.

            Os "festivais da canção" e outras iniciativas no género organizadas pelas estações de televisão são puramente comerciais. Os júris de selecção, ao escolherem em primeira mão as "canções" admitidas, guiam-se por critérios que, tanto ao nível da letra como ao nível da música, são inteiramente estranhos a considerações de ordem estética. Aceitar tais "festivais" como lugar adequado para exprimir poética e musicalmente preocupações ditas humanas, sociais ou políticas é entrar num jogo perigoso e equívoco. O perigo e o equívoco residem no facto de "poeta" e "músico" começarem por fabricar algo que possa caber dentro do padrão comercial em voga, pelo qual se guia o júri de selecção. Isto é , têm de fabricar algo que, logo à partida, entra em contradição com as tais preocupações e as subverte.

            Transformar a música e a poesia em "marketing" pode ser comercialmente muito interessante, mas não contribui em medida alguma para uma tomada de consciência colectiva. Vender a ambiguidade ideológica de um texto, entretanto admitido segundo as regras do jogo, acompanhado de uma coisa ordinária, pretensiosamente apelidada de música, a servir de veículo sonoro, é enriquecer ainda com mais argumentos o poderoso arsenal alienante dos meios de comunicação de massas. Ninguém aprende português sendo ao mesmo tempo impedido de o praticar. E quem quer ensiná-lo não vai decerto abster-se de o falar para se tornar acessível. Não se propaga a libertação das inteligências e das sensibilidades começando por demonstrar que essa libertação é igual ao seu próprio contrário.

            Alguém disse que a verdadeira missão da arte era "exprimir poderosamente e sugestivamente grandes pensamentos e grandes emoções." Missão importantíssima dentro de uma acção concertada que contribua para a tal tomada de consciência colectiva. Não a confundamos com a demagogia cúmplice, que baralha e deteriora esses mesmos pensamentos e emoções.

         Em dois discursos proferidos em 1942, Adolfo Hitler estabelecia as linhas-mestras de uma política de pacificação dos povos da Europa Oriental. "É necessário partir do conceito de que estes povos não têm outro dever senão o de servir-nos no plano económico", dizia ele, e continuava: "... que não se veja despontar a férula dos nossos pedagogos, com a sua mania de educar os povos inferiores, e a sua mística da escola obrigatória! Tudo quanto os russos, os ucranianos, pudessem aprender na escola (além do ler e do escrever) acabaria por se voltar contra nós. Um cérebro iluminado com algumas noções de história chegaria a conceber algumas ideias políticas, e isto nunca nos traria proveito." Portanto, entre outras medidas práticas (como, por exemplo, a proibição absoluta de campanhas de higiene e limpeza nas regiões habitadas pelas "populações indígenas", assistência médica exclusiva aos "colonos" alemães), Hitler propunha-se mandar instalar um altifalante em cada aldeia para dar algumas notícias à população e, sobretudo, "distraí-la". Mas a rádio não deveria "meter-se a dar aos povos submetidos palestras sobre o seu passado histórico". Não: o que ela deveria difundir era música e mais música"! E explicava: "A música ligeira provoca a euforia do trabalho. Forneçamos àquela gente a ocasião de dançar muito e ela ficar-nos-á reconhecida".Estes textos sugerem-nos algumas reflexões.

            A primeira: no seu plano de embrutecimento alienatório das "populações indígenas", Hitler atribuía um papel de primeiríssima ordem à difusão da música ligeira. Concluamos, pois, que para esse efeito a outra música (falo da música "clássica") não lhe merecia a mesma confiança. Porquê?

            Do domínio da prática política passemos para o terreno teórico. Aí surgem várias questões prévias (algumas delas já bastante banalizadas): será lícito distinguir entre música ligeira e música dita clássica ou séria? Se o é, onde assenta a distinção: em aspectos substancias ou em aspectos funcionais? E ainda: haverá critérios musicais que permitam distinguir entre uma música que aliena e outra que desaliena?

            Avançando um pouco mais: a justificação duma política em relação à música (à arte em geral) é independente da música (da arte) enquanto objecto da Estética? Ou: em que medida é que a Estética é politicamente neutra? Esta temática é aliciante e merecia ser tratada em profundidade. Pela nossa parte, não pretendemos mais do que propor algumas hipóteses... Na perspectiva ideológica que consideramos correcta, teríamos que começar por analizar as relações entre a produção artística e as estruturas sociais, a sua evolução histórica, o conteúdo classista da arte em geral. Mas a dificuldade não está aí. Di-lo Marx referindo-se à arte grega: "A dificuldade não está em que a arte grega se encontra vinculada a determinadas formas de evolução social. A dificuldade consiste no facto de ela ainda produzir em nós o gosto artístico, e de ainda valer em certo sentido como norma e modelo inalcansável."

            Como resolver essa dificuldade? Eis um problema que o mesmo Marx não teve tempo de estudar. Mas posteriormente, Lukáes, por exemplo, propôs-se retomar a questão e dar-lhe uma resposta. Para ele, o que há de específico numa obra de arte é a faculdade de "descobrir" precisamente na concretização do conteúdo imediato nacional e classista, aquele elemento novo, que merece converter-se em permanente aquisição da humanidade e que se converte efectivamente em tal." Assim, "a eficácia das obras importantes supõe uma ampliação, um aprofundamento, uma elevação da imediata individualidade quotidiana, sobretudo quando o conteúdo conformado é estranho ao receptor do ponto de vista espacial-temporal, nacional ou classista." Posto perante a arte realmente grande - diz Lukáes - "o indivíduo vive realidades que, de outro modo, lhe seriam inacessíveis na abundância que a obra oferece; as suas ideias sobre o homem, sobre as suas reais possibilidades no bem e no mal experimentam uma ampliação insuspeitada; mundos que lhe são alheios espacial e temporalmente, histórica, classisticamente, revelam-se numa dialéctica interna de forças em que vê, sem dúvida, algo de estranho, mas ao mesmo tempo algo que pode pôr-se em relação real com o seu próprio curso vital, com a sua própria interioridade." E logo acrescenta: "Quando este último efeito se não verifica, o que se produz é um interesse meramente externo, por vezes artístico - formal ou tecnicamente - mas não essencialmente estético, antes extrovertido, mero erotismo de curiosidade." Na verdade, "a eficácia da grande arte consiste precisamente em o novo, o original, o pleno de conteúdo alcançar a vitória sobre as antigas experiências do receptor," em produzir "um despertar e uma elevação da autoconsciência humana, [...] uma autoconsciência que não consiste numa separação hostil relativamente ao mundo externo, mas antes numa correlação mais rica e profunda entre um mundo externo captado rica e profundamente e uma autoconsciência mais rica e profunda do homem como membro da sociedade, da classe, da nação, como autoconsciente microcosmos no macrocosmos da evolução da humanidade."

            A partir daqui não seria difícil tentar responder às questões que colocamos atrás. Assim:

            - Também no domínio da música é possível distinguir entre o "mero erotismo de curiosidade" e o especificamente estético, entre o circunstancial e o que se eleva da individualidade imediata do quotidiano, convertendo-se em permanente aquisição da humanidade, ou seja, entre o ligeiro e o sério.

            - A música ligeira é por definição construída à base de fórmulas estandardizadas, há muito ultrapassadas pela evolução da música, não pode conter dentro de si nada de novo, de original, de pleno de conteúdo, capaz de produzir no receptor mais do que um interesse meramente externo. Só a música séria, pelo seu apetrechamento técnico e potencial espressivo, pode ter a eficácia da "arte realmente grande".

            - Se a arte é autoconsciência da evolução da humanidade e se a arte musical é a chamada música séria ou clássica, então será reaccionária uma política interessada essencialmente na difusão da música ligeira (Hitler lá tinha, pois, as suas razões).

            Neste sentido, e por razões de ordem musical ou de estética musical que lhe são substancialmente inerentes, é lógico ligar a música ligeira aos mecanismos de "alienação".

            A questão complica-se, porém, quando entramos no domínio da "canção de protesto", "canção de luta" ou "canção revolucionária", conforme quisermos chamar-lhe. Aqui, as fórmulas da música ligeira ou comercial (mais ou menos refrescadas pela seiva do folclore autêntico) aparecem associadas a uma letra "engagé". Tendo por objectivo essas canções uma acção de consciencialização política, alguns dos seus adeptos chegam a afirmar que elas, porque "mais acessíveis" ou "mais popularmente consumidas", sobrelevam a função social da música séria. O erro de uma tal tomada de posição radica, por um lado, na atitude de passividade perante a orientação reaccionária dos meios de comunicação, linearmente manipulados pelo poder dos monopólios e servindo interesses da indústria e do comércio do disco e, por outro lado, na incapacidade de analizar correctamente a especificidade da função da obra de arte (inclusive, da função política da obra de arte), por comparação com a função do panfleto ou da "palavra de ordem", que se destinam a actuar de imediato sobre uma situação concreta. Depois, há ainda a confusão suplementar de julgar a música uma arte não autónoma, que só teria relevância ideológica quando veiculasse textos capazes de explicitar o seu (dela) significado.

            Sintetizemos, a este respeito, alguns pontos: a) o conteúdo ideológico de um texto não caracteriza a música que o acompanha; b) tratando-se de um texto em si mesmo capaz de produzir no receptor mais do que um interesse meramente externo, o ser ele veiculado através de um subproduto musical dá origem a uma contradição que pode retirar ao texto a sua força original e transformar, não poucas vezes, numa caricatura, coisas muito sérias; c) essa contradição não é entre forma e conteúdo, mais entre dois conteúdos: o do texto e o da música.

            Entretanto, há que pôr de lado a ideia de que a análise duma obra do ponto de vista da Estética é absolutamente independente de aspectos ideológicos ou políticos, ideia que pode levar tanto ao formalismo mais estéril como ao dogmatismo mais cego. A aceitação dos postulados de Lukáes implica o reconhecimento de que toda a "arte realmente grande" é necessariamente "engagé", de que o especificamente estético está essencialmente comprometido com a evolução da humanidade. Deste modo, não pode haver conflito entre a análise teórica duma prática artística e a análise teórica duma prática política. Não pode a prática política levar-nos a subalternizar ou mesmo a anular a prática artística. A arte não é redutível à política: "não é redutível à escala das actuais reinvindicações do homem" (como diz Breton). Cair neste erro significaria, paradoxalmente, em última análise, privar a própria prática política de uma das suas maiores armas ideológicas: a arte, a especificidade da intervenção artística.

            Será que pretendemos, com isto, negar ou minimizar a importante função que a "canção ligeira", sobre textos revolucionários, pode exercer? Não, evidentemente. Trata-se, antes, muito simplesmente, de desfazer a confusão entre um tipo de intervenção essencialmente político, que usa elementos musicais sumários apenas como suporte e forma de penetração nos "mass media" (caso da "canção revolucionária") e um tipo de intervenção essencialmente artístico, reservado à chamada música séria (intervenção que é também social e política, no sentido de que fala Lukács quando se refere à "arte realmente grande").

            Portanto, e em conclusão: a função alienatória da música ligeira combate-se com a prática artística, que constitui a essência da música dita "séria, e com a prática política, que constitui a essência das "canções de luta" ou "canções revolucionárias".

(Francisco Trindade)

 

Silêncio

 

"Música é o silêncio em movimento." 

(F. Nietzsche)

 

Ruído

 

Em 1913, o futurista italiano Luigi Russolo publicava seu mais importante e decisivo texto: L'arte dei rumori, tratado que propôs pela primeira vez a incorporação de ruídos à música, 'marcando o princípio de uma fundação teórica sobre a estética da arte acústica' (Schöning). Algumas décadas depois, os experimentos radiofônicos elaborados em fita magnética por Pierre Schaeffer, à frente do Club d'Essai na Radiodifusão Francesa, acabam por levá-lo à invenção da música concreta. A transmissão de seu Concerto de Ruídos, no ano de 1948, produzido com sons naturais previamente gravados, foi um marco tão impactante quanto a publicação de seu Tratado dos objetos sonoros em 1966. Schaeffer, afirmou o compositor Rodolfo Caesar, gerou a dúvida com perguntas ainda não respondidas: "Isto é música? O que é música? O que é a música?"

 

Palavra

 

No princípio, os futuristas - russos e italianos - destruíram o verbo. E a sintaxe. 'Liberdade para as palavras', clamariam, enquanto seus contemporâneos dadaístas produziam poemas de letras (e os surrealistas exploravam o inconsciente). Era o começo deste século XX e aqueles seriam "os primeiros a estabelecer relações entre sons, sinais gráficos e espaço", escreve Jean-Yves Bosseur em O Som e as Artes Visuais.

Os movimentos revolucionários do início do século seriam incorporados pela mídia e pela arte. Deles,  'a poesia do som' como estética e a consciência da 'fala como um mundo próprio' (George Sperber) . Na criação literária, seus conceitos foram decisivos para o nascimento da poesia concreta de 1950. De acordo com Augusto de Campos, a poesia concreta, apoiada em duas outras expressões-chave da arte contemporânea - verbivocovisual, de James Joyce, e klangfarbenmelodie, de Anton Webern -, tornou-se uma literatura por tradição visual, com algumas experiências no campo da expressão oral. Apenas recentemente ela ganharia tratamento sonoro mais elaborado, com o avanço dos meios tecnológicos abrindo novas possibilidades formais e estruturais: a poesia sonora tornou-se, assim, uma arte também eletrônica.

Já a poesia fonética considerou exclusivamente o ponto de vista físico da palavra, ou seja, fenômeno que é onda sonora, portanto som e ruído. Seus criadores passaram a usá-la como «material expressivo independente, às vezes sem qualquer relação reconhecível com o sentido das palavras». Uma nova estrutura é descoberta. "A palavra entra na história" (Werner Klippert). Outra categoria acústica que devemos mencionar, no terreno da poesia ou simplesmente da palavra falada ou da emissão vocal, é o Text-sound, um termo criado por compositores do E.M.S., principal estúdio de música eletrônica da Suécia, para um gênero que combina texto, fonética e experimentos eletroacústicos.

 

Studio

 

A partir dos anos 1960, ganha impulso a música eletrônica, que opera com sons artificiais, gerados sinteticamente, evoluindo, na década seguinte, para a eletroacústica, que transforma e manipula sons acústicos. Seu ponto de orientação tem sido, desde o final da década de 80, um novo conceito amplamente difundido e discutido pelos pesquisadores e compositores franceses ligados ao Groupe de Recherces Musicales (GRM, antigo Club d'Essai), então sob direção de François Bayle: a Acusmática, teoria aplicada à experiência da escuta sem reconhecimento de fonte ou objeto sonoro. (Nunca, no universo da criação sonora, arte & ciência estiveram tão fortemente relacionadas. Dessa investigação mútua resultam inventividade estética e inventividade tecnológica. "A tecnologia já é a nossa segunda natureza", afirma Bayle.)

 

Espaço

 

As paisagens sonoras, invisíveis, servem a instalações ou mesmo a deslocamento de ambientes acústicos (caso de Michel Redolfi, compositor francês que projetou a imagem sonora do Pantanal brasileiro numa praça central na cidade de Nice; ou da Bridge San Francisco/Köln, do norte-americano Bill Fontana, que projetou a emissão ao vivo de uma ponte sonora entre dois pontos centrais daquelas cidades). A paisagem não apenas é passível de projeção também em rádio, como muitas vezes é fomentada por eles. O projeto Metrópolis, por exemplo, mantido pelo Departamento de arte acústica da WDR em Colônia, comissiona obras de compositores do mundo todo para um ensaio fonográfico sobre a acústica de uma cidade. Em lugar do olho, o ouvido: a paisagem sonora é fundamentalmente a arte da captação fotográfica do som. O microfone é o instrumento que permite o instantâneo e o close; a caixa acústica, sua ampliação. Quando revelado, o objeto sonoro apresentará uma re-leitura 'psicológica' do real: afirmação de seu interior, negação de sua superfície ou constatação de sua supremacia.

As esculturas sonoras, se propõem, na afirmação de Jean-Yves Bousseur, "um fenômeno acústico e social." Fundada pelo compositor norte-americano Harry Partch, suas qualidades são ao mesmo tempo plásticas e musicais, e suas dimensões, acústicas e visuais. Raras vezes se utilizando de aparato propriamente eletrônico, preenchem o espaço físico com um objeto plástico-acústico inusitado, e, com a freqüência, pressupõem a interação com o público. Escultura ou paisagem, ambas desafiam com sua proposta de interferência urbana. Tomado por outra perspectiva de contexto urbano, o compositor e pesquisador canadense Murray Schafer foi o pioneiro na concepção, pesquisa e prática da ecologia sonora - ciência que estuda e propõe soluções de ordem prática para os efeitos da poluição sonora urbana e industrial sobre o bem-estar e o meioambiente.

 

Design

 

"Em música, o leitmotif tem uma função direta e consciente; no design sonoro, o som recorrente atua sobre a percepção subconsciente". O pronunciamento é de Richard Beggs, um dos mais concorridos designers sonoros do cinema norte-americano. O desenho sonoro equivale ao conceito de música aplicada: interage com outro(s) meio(s) - cinema, dança, teatro, TV e vídeo, artes visuais, rádio etc -, mas pode igualmente interagir com o meioambiente. (Michel Redolfi, já mencionado, concebeu um amplo projeto sonoro para os doze espaços aéreos e subaquáticos da exposição Nausicaã do Centre National de la Mer, em Nice.) O design sonoro é a descrição acústica - verista ou abstrata - de uma imagem ou idéia em exposição. Cinema e desenho animado foram fontes criativas. Nesses, a colagem, que a teórica e esteta Tatiana Marschenko considera "processo mesmo do próprio pensamento humano", torna-se essencial.

Mais produto da cultura e da comunicação de massa, sem no entanto perder sua integridade artística, os electro clips, inaugurados numa proposta do núcleo canadense Empreintes Digitales, seriam uma resposta do áudio à linguagem do vídeo (ou a estrutura do vídeo-clip em áudio): mensagem reduzida, em técnicas de síntese, corte, recorte, miniatura e instantâneos, resumo.

Em todos os casos, estamos falando de uma arte originariamente de pesquisa (experimental, portanto); de um vôo livre sobre a situação sonora; de um produto da Era Eletrônica (e da Idade Mídia); de uma arte que nasce em estúdios e laboratórios científicos; e, finalmente, de um espaço de escuta virtual e imaginário.

Embora categorias acústicas distintamente empregadas, não é raro resultarem semanticamente próximas: atuam nos mesmos domínios - ora conscientes, ora inconscientes - do teatro da mente. Som que nos desafia a percepção por comportar a mais abstrata imagem - aquela que não existe no mundo real (tornamo-nos 'cegos') - e que, paradoxalmente (expressão máxima da pura sugestão), induz formas, verbais e não-verbais, no imaginário humano. Esse universo fantasmático, com seus mundos invisíveis, é produzido pelo som tornado paisagem e imagem acústica. Elemento cuja vocação melhor se expressa na evocação de impressões.

 

Rádio

 

John Cage, que sempre esteve próximo da experiência em rádio (em 1952, antecipando os happenings, apresentou-se numa ação musical no Black Mountain College com Imaginary Landscape nr.4, peça para vários aparelhos de rádio) e que logo percebeu o veículo como instrumento sonoro, para o qual comporia várias obras, observou: "Se você ignorar os sons ao seu redor, eles certamente irão incomodá-lo. Mas se você prestar-lhes atenção, descobrirá o quanto são fascinantes".

Já se disse que 'linguagem da arte acústica é a linguagem do filme'. Consta que a primeira obra de ficção para a rádio aconteceu em 1924 na Rádio London. No escuro. Como um cinema sem imagens. (Muitos consideram a visão interior a mais nítida e memorável de todas as experiências visuais - porque onírica, profunda e... livre. O cineasta russo Eisenstein, no citado ensaio sobre seu ofício, escreveria: "A imaginação não evoca quadros acabados, senão suas propriedades decisivas e determinantes.")

 

+

 

Da Utopia da Ubiqüidade

 

Arte do escuro, o mundo dos sons é um voltar-se para dentro, para o escondido - olhar interior através do qual a mente exercita as suas próprias imagens. Nesse jogo lúdico e introspectivo, liberamos a animação criativa e sensível de nossas próprias fantasias. A experiência subjetiva e ilimitada da escuta, quando o ouvido está em estado de alerta, na expressão de René Farabet (no máximo de sua consciência, portanto), alcança o terreno do inconsciente ou, pelo menos, como afirma Harri Hühtamaki, "ultrapassa nossa realidade consciente."Nesse domínio, deixam-se emergir verdadeiros sonhos vivos. Produz-se uma mudança do nível de realidade. Não-realidade? Supra-realidade? Irrealidade?

Peer Raben, autor das trilhas de Fassbaender, afirma: "Através da música, o olho vê imagens." O ouvido, 'órgão sem pálpebras' (Janete El Haouli) e sempre aberto, sentido que não dorme, estabelece uma conexão imediata com camadas profundas da mente, diferentemente dos vícios culturais do olhar, cuja percepção tende a ser mais gestáltica. Com o som, os outros sentidos despertam (experimente ouvir o vento, a água: a paisagem virá não só aos seus olhos, como à sua pele). Com o som, o espaço físico ganha em amplidão e profundidade. "Ouvir será criar sua própria cenografia num espaço infinito de escuridão", diz René Farabet - grande esteta do rádio e diretor do Centre de Création da Radio France.

Da mesma forma que altera a noção de espaço, a esfera acústica instaura uma outra qualidade - e percepção - do tempo (!). Sem excitar a superfície dos sentidos, mas o profundo da psique, essa linguagem estabelece não apenas novo paradigma para a criação sonora, como também para o potencial da percepção humana: falamos da arte de escutar, um gesto poético. (Parafraseando Oswald de Andrade, "ouvir com ouvidos livres.")

A engenharia estética dos sons, portanto, pressupõe todos os recursos do aparato tecnológico e, desde que aliada ao métier, total liberdade de criação. Cria-se o diferencial. A informação foi deslocada de sua realidade objetiva para a esfera privada e subjetiva do criador. Lá, permitiu-se a investigação, a análise, finalmente a compreensão. Então, inserida em um novo campo de visão, ganhou luz e sombras; o detalhe talvez esteja em espaços abertos, o conjunto em esconderijos. Eis agora o receptor: um ouvido que divaga. Farabet: "O autor (ou criador) constrói a dramaturgia da realidade, o ouvinte inventa as suas próprias ilusões."

Com o tempo, a interdisciplinariedade sonora fez frente ao mundo veloz do império das imagens.

Forma-se assim uma rede invisível (e, contraditoriamente, silenciosa) de criadores acústicos, caçadores perdidos do som e artistas ligados ao mundo pelo ouvido - hoje espalhados, em sua grande parte, nos países desenvolvidos, cujo sistema de produção oferece tecnologia mais sofisticada, melhores recursos econômicos e pesado investimento

em pesquisa científica.

O som que, em toda a sua natureza volátil, primeiro desvelou o tempo e o espaço para afirmá-los como corpos sólidos, agora ressoa por infinitos universos e mentes. Realiza o seu atributo último: som como Utopia (gr. ou-tópos = aquilo que não existe em lugar algum) da Ubiqüidade (lat. ubique = em toda parte).

(Mauro Sá Rego)

 

Da Música Contemporânea

 

Música concreta e música eletrônica - Surgem no início da década de 50, entre compositores franceses e alemães que atuam junto a emissoras de rádio. O grupo francês é liderado por Pierre Schaeffer (1920-1984), ligado ao rádio e televisão francesa (ORTF), e se dedica à música concreta. Realiza composições a partir de fitas de sons cotidianos pré-gravadas, recortadas e remontadas diversas vezes até atingir o efeito desejado. A música eletrônica surge junto ao estúdio da rádio de Colônia, na Alemanha, criada por um grupo liderado por Herbert Eimert, onde atuam Stokhausen, Luciano Berio (1926), Gyorgy Ligeti (1923) e compositores do grupo de Darmstadt. O objetivo é realizar a síntese do som a partir dos recursos eletrônicos de uma emissora de rádio, dentro dos procedimentos do serialismo.

Karlheinz Stockhausen - ver foto ao lado - nasce em Colônia, na Alemanha, e inicia sua formação musical em 1947. Realiza, em 1951, seu Primeiro estudo eletrônico, no estúdio da rádio de Colônia. Entre 1952 e 1953, estuda no Conservatório de Paris, com Olivier Messiaen e Pierre Schaeffer. Atravessa diversas fases: serialismo integral, música eletrônica, música aleatória e, por fim, a música de natureza mística, que vem pautando sua produção desde a década de 70. Destacam-se obras recentes: Os sete dias de semana, Stimmung e Mantra.

 

Música aleatória - Surge nos Estados Unidos e na Europa como a música feita pelo acaso. Tem antecedentes em uma peça de Mozart (século XVIII), que abre espaço para que o intérprete escolha ao acaso a seqüência das notas e ritmo e, mais recentemente, no jazz americano, também fruto da improvisação. O aleatório é levado ao extremo pelo americano John Cage (1912-1993) e pelos compositores da escola de Darmstadt, como Stockhausen, Luciano Berio e Boulez. Cage propõe que se combinem aleatoriamente gravações recolhidas na rua ou no rádio, em sua peça Fontana mix. Em Imaginary landscape, dispõe cada um dos elementos da composição (o tempo, as durações, os sons, as intensidades) em cartelas que deverão ser recombinadas pelo intérprete de acordo com o conjunto de linhas lido em hexagramas sorteados no I Ching, o livro da mutações. Stockhausen, em Klavierstuk IX (Peça para piano IX) e Stimmung para oito cantores dispõe em suas partituras passagens que o intérprete reordena segundo sua vontade. Em Musik fur eine haus (Música para uma casa) o público passeia por diversas salas de uma casa onde, em cada sala, se desenvolve uma música.

 

Teatro musical - É herdeiro da ópera e da música de cabaré do entreguerras e se expressa na música de Kurt Weill. Entre os compositores de teatro musical, destacam-se o argentino radicado na Alemanha Maurício Kagel (1931) e Hans Werner Henze (1926). Suas obras refletem engajamento político, tecendo críticas aos valores burgueses. Outros compositores, como John Cage, seu aluno La Monte Young (1935) e integrantes do grupo de Darmstadt realizam alguns trabalhos com características do teatro musical.

 

Ecletismo - Conquistas da música do século XX, como o serialismo, a música eletrônica, a aleatória, o teatro musical e o concretismo, se desgastam, levando compositores europeus a incorporar elementos de culturas não-ocidentais como a hindu, a chinesa ou a africana. Entre eles Stokhausen, Ligeti, e o italiano Luciano Berio, que incorpora à sua técnica composicional elementos da música polifônica dos povos da África Central, como em sua composição Coro. Entre os compositores que se voltam à música tonal e modal estão os minimalistas americanos Phillip Glass (1937), Terry Riley (1935), Steve Reich (1936). Suas músicas não se destinam exclusivamente às salas de concerto, mas estão presentes no cinema, como as trilhas de Koyanisqaatsi e Mishima, de Phillip Glass.

Luciano Berio inicia sua carreira ao lado de K. Stokhausen, Boulez e Bruno Maderna. Em 1953 funda, em Milão, o Estúdio de Fonologia. Muda-se para os Estados Unidos, em 1967, de onde é extraditado sob acusação de atividade antiamericana. Em Paris, dirige o centro de eletroacústica do Instituto de Pesquisas Científicas e Musicais (IRCAM), de 1974 a 1980. Suas obras mais conhecidas são: a Sinfonia, uma grande colagem de diversos materiais sonoros, em homenagem ao líder negro Martin Luther King, e as Folk songs, canções populares com arranjos vanguardistas da música de concerto.

 

Serialismo integral - Decorre diretamente do serialismo de Webern, da música de Olivier Messiaen (1908-1992) e do italiano Luigi Dallapicolla (1904-1975). Consiste em um sistema em que são acrescentadas à série de alturas uma série de durações, uma série de intensidades e uma série de timbres. A idéia do serialismo serve também para a organização de séries de 23 notas (incluídos os microtons), ou séries de sons sem alturas definidas, como é feito na música eletrônica e na música para percussão. O desenvolvimento do serialismo integral se deve aos compositores Karel Goeyvaerts (1823-1993), Pierre Boulez (1925), Karlheinz Stockhausen (1928) e Henry Pousseur (1929), dentre outros que, na década de 50, fundam os festivais de verão de

Darmstadt, Alemanha.

Pierre Boulez nasce em Montbrisson, França. Estuda composição em Paris, com Olivier Messiaen e René Leibowitz, entre 1946 e 1956. Lidera o movimento da música de vanguarda francesa. Funda, em 1975, o Instituto de Pesquisas Científicas e Musicais (IRCAM), responsável pelo desenvolvimento de tecnologias musicais, que aglutina hoje os principais pesquisadores em música eletrônica. Entre suas peças destaca-se o Marteaux sans maitre (O martelo sem mestre).

 

+

 

Nova Geração

 

Atualmente uma série de novos movimentos convivem com práticas remanescentes da música do pós-guerra. Destacam-se:

Nova simplicidade - Defendida pelo alemão Wolfgang Rihm (1952), visa uma estética da liberdade da arte, propondo uma música com ausência de dificuldades, livrando-se da carga histórica.

 

Nova complexidade - Resgata a importância estrutural do serialismo integral, em uma música que expressa a complexidade e multiplicidade do homem atual. O principal compositor dessa corrente é o inglês Brian Ferneyhough (1943).

Música espectral - Tem seu centro na França, liderada por Tristan Murail (1947), Michael Levinas (1949) e Gerard Grisey (1946). A música surge a partir do estudo de espectros sonoros de instrumentos e sons cotidianos com auxílio de recursos da eletrônica e informática.

 

Multi-music - É o caminho seguido nos Estados Unidos por Meredith Monk e Joan La Barbara, que trabalham misturando recursos audiovisuais como vídeo, teatro, dança etc.

 

Música e política - Tendo por base o envolvimento do compositor com diversas causas sociais, compositores de variadas tendências têm se dedicado a uma música engajada, como o alemão Helmut Lachenman (1935) e o brasileiro Willy Correa de Oliveira (1938).

 

Computer-music - Utiliza recursos da informática na síntese sonora, nos cálculos de estruturas musicais e nas transformações de informação numérica em informação sonora, além de simulações diversas.

 

Música Contemporânea no Brasil

 

No período que se estende da década de 40 até os dias de hoje, a música brasileira vive movimentos de nacionalização e de internacionalização. A introdução do dodecafonismo por H. J. Koellreuter na Bahia, o movimento Música Viva, o Manifesto de 1946, o movimento Música Nova e a música eletrônica

marcam o período.

Música viva - Em 1939, ao nacionalismo identificado com a ditadura Vargas opõe-se o Movimento Música Viva, liderado pelo compositor e professor alemão Hans Joachim Koellreuter, introdutor da música dodecafônica no Brasil. Entre seus alunos destacam-se os compositores Claudio Santoro (1919-1989), Guerra Peixe (1914-1993), Eunice Catunda (1915- ) e Edino Krieger (1928). Embora com tendência diversa da original, a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia é herdeira direta dos Seminários de Música de Salvador, dirigidos por Koellreuter. São seus representantes o compositor Ernest Widmer e seus alunos Lindenberg Cardoso, Rufo Herrera, Jamary de Oliveira e recentemente Fernando Cerqueira (1941) e Paulo Lima (1954).

Manifesto de 1946 - Em 1946, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Eunice Catunda e Edino Krieger assinam o manifesto de 1946, que tem o objetivo de recuperar o trabalho com a música popular brasileira, a partir das ferramentas fornecidas por Koellreuter. Guerra Peixe e Santoro seguem, posteriormente, um caminho mais pessoal, marcado por elementos da música regional, e influenciam a música popular instrumental brasileira. Embora não ligados diretamente ao manifesto, diversos compositores aderem ao uso livre de elementos da tradição brasileira, como Kilza Setti, Ronaldo Miranda, Marlos Nobre, Almeida Prado. Atualmente destacam-se Mariza Rezende (1944), Roberto Victório (1959) e Sergio Rojas (1960).

Claudio Santoro (1919-1989) nasce em Manaus. Atua como violinista até 1938, iniciando-se na composição ao término de seus estudos no Conservatório do Distrito Federal. Em 1940, torna-se aluno de Koellreuter e entra em um período estritamente dodecafônico. Incorpora depois elementos da música folclórica e, por fim, aproxima-se da composição progressista, em obras como Impressões de uma usina de aço e Ode a Stalingrado. Em 1947 estuda com Nadia Boulanger, em Paris.

Música nova - Também de tendência internacionalista é o movimento Música Nova, de 1963, liderado por Gilberto Mendes (1922) e Willy Correa de Oliveira (1938). As peças de Willy, como a série Phantasiestuck, Um movimento vivo, La flamme d' une chandelle refletem o pensamento dos serialistas da escola de Darmstadt e as idéias dos poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Destacam-se ainda Mário Ficarelli (1937), Aylton Escobar e novas gerações de compositores voltados para o teatro musical como Eduardo Álvares (1959), Luiz Carlos Czeko (1945), Carlos Kater (Tim Rescala) (1961) e Tato Taborda (1960). Na música instrumental, destacam-se compositores como Silvio Ferraz (1959), Lívio Tragtemberg (1963) e Eduardo Seincman (1955).

Gilberto Mendes nasce em Santos, São Paulo. Tem contato com a música de Cláudio Santoro e Olivier Toni. Autodidata, é um dos pioneiros da música aleatória e do teatro musical no Brasil. Em 1962, idealiza o festival Música Nova, que até hoje revela compositores. Entre suas peças, destacam-se Santos Football Music, Beba Coca-Cola, Ulisses em Copacabana. Sua mais recente produção reflete uma tendência para a "nova consonância", movimento que retoma elementos

das músicas tonais e modais.

Música eletrônica - O movimento reflete as tendências da música eletrônica européia e americana e ganha vitalidade, apesar das limitações de infra-estrutura e defasagem com relação aos grandes centros de produção musical. Entre seus compositores estão Jorge Antunes (1942), Conrado Silva e Rodolfo Coelho de Souza (1952). Mais recentemente ganha impulso com a implantação de novos estúdios eletrônicos (Stúdio Panaroma-UNESP-FASM e Laboratório de Linguagens Sonoras, em São Paulo) e a multiplicação de estágios de compositores brasileiros em estúdios da Alemanha, França e Estados Unidos. Destacam-se Flo Menezes (1962), Rodolfo Caesar (1950), Paulo Chagas, Paulo Álvares (1960), Augusto Valente, Aquiles Pantaleão (1965)

e José Augusto Mannis (1958).

(Sítio Eletrônico - Conhecimentos Gerais)

 

 

 

 

“Se eu quero ‘a vida enquanto arte’,

corro o risco de cair no estetismo, porque tenho o ar de pretender impor alguma coisa, uma certa idéia de vida. Parece-me que a música – ao menos tal como a encaro – não impõe nada. Nela mesma a música não nos obriga a nada. Ela pode ter como efeito mudar nossa maneira de ver, fazer-nos olhar como sendo arte tudo o que nos cerca. Mas isso não é um fim. Os sons não têm um fim! Eles são, simplesmente. Eles vivem. A música é esta vida dos sons, esta participação dos sons na vida, que pode tornar-se – mas não voluntariamente – uma participação da vida nos sons.”

 

 

J. Cage

 

 

 “Lá fora, os cantos já iam se modulando numa língua baixa, sonora e gutural, com articulações bem marcadas. Só os homens cantam; e seu uníssono, as melodias simples e repetidas cem vezes, a contraposição entre os solos e os conjuntos, o estilo másculo e trágico lembram os coros guerreiros de algum Männerbund germânico. Salvo alguns instrumentos de sopro que fizeram sua aparição em momentos prescritos do ritual, o único acompanhamento das vozes resumia-se aos maracás feitos com uma cabaça cheia de cascalho, sacudidos pelos corifeus. Era uma maravilha escutá-los: ora soltando ou interrompendo as vozes com uma pancada seca; ora enchendo os silêncios com o crepitar dos; ora, enfim, dirigindo os dançarinos por alternâncias de silêncios e ruídos cuja duração, intensidade e qualidade eram tão variadas que um maestro de nossos grandes concertos não saberia melhor indicar seu desejo. Não surpreende que outrora os indígenas e os próprios missionários tenham acreditado, em outras tribos, ouvir os demônios falarem por intermédio dos chocalhos! Aliás, sabe-se que se antigas ilusões a respeito dessas pretensas ‘linguagens tamboriladas’ foram desfeitas, parece provável que, pelo menos entre certos povos, elas se baseiem numa verdadeira codificação de língua, reduzida a alguns contornos significativos simbolicamente expressos.”

 

Sobre os índios bororo,

C. L é v i – S t r a u s s

 

 

"A educação deve, quer no domínio particular da música, quer no da vida afetiva, ocupar-se dos ritmos do ser humano, favorecer a liberdade das suas ações musculares e nervosas, ajudá-lo no triunfar das resistências e das inibições e harmonizar as suas funções corpóreas com as do pensamento.”

 

Dalcroze

 

“Não há música sem ideologia. Os mestres antigos tinham consciente e inconscientemente uma orientação política.”

 

D. Shostakovitch

 

“Conforme a música à qual um povo é acostumado assim é o caráter deste povo.”

 

Platão

 

 “Quando as pessoas tiverem aprendido a amar a música por ela própria, quando a ouvirem com outros ouvidos, o seu prazer será de ordem bem mais elevada e mais potente, o que lhes permitirá, então, apreciar a música num outro plano e poderá ser-lhes revelado o seu valor intrínseco”

 

I. Stravinsky

 

“Quem uma vez compreendeu minha música será livre da miséria em que os outros se arrastam!”

 

L. V. Beethoven

 

 “Existe muita música no mundo, elementar ou elaborada, erudita ou popular, mas somente o silêncio pode restituir ao som seu autêntico vigor – um profundo silêncio observado por todos aqueles que necessitam de música.”

 

Gavazzani

 

“Tem-se falado muito sobre música e tem-se dito tão pouco. Além do mais, creio que as palavras não bastam; se me parecesse o contrário, possivelmente eu não mais faria música. As pessoas queixam-se geralmente da ambigüidade da música. Afirmam ser duvidoso o que se possa pensar sobre ela enquanto se a escuta; em contrapartida, qualquer um compreende as palavras. A mim acontece justamente o contrário. Não só com longos discursos como também com palavras isoladas; estas parecem-me muito mais ambíguas, indefinidas e equívocas se comparadas com a verdadeira música que nos enche a alma de coisas que valem mais que as palavras. O que me transmite uma música de que gosto não constitui para mim idéias indefinidas – para dizê-lo com palavras – mas muito definidas. Se você me perguntasse em que pensei ao escrever isto (uma das Canções sem Palavras) eu diria: somente nesta canção, tal como está.”

 

F. Mendelssohn

 

“As proporções musicais me parecem ser de fato as proporções-base da natureza. Todos os incidentes de nossa vida são materiais dos quais podemos fazer o que quisermos, quem possui muito espírito fará muito de sua vida, cada encontro, cada ocorrência seria, para o indivíduo inteiramente espiritual, o primeiro elo de uma série infinita, o começo de um romance infinito.”

 

Novalis

 

“Nada é mais odioso que a música sem um significado escondido.”

 

F. Chopin

 

“Pretendem os aficcionados compreender de imediato um problema sobre o qual os artistas pensaram durante dias, meses ou anos?”

 

R. Schumann

 

“Gostaria que se chegue, que se chegasse a uma música verdadeiramente livre de motivos, ou formada por um único motivo contínuo, que nada interrompe e jamais retorna. Convenço-me cada vez mais de que a música não é, por sua essência, algo que se possa colar a uma forma rigorosa e tradicional. Ela são cores e tempos ritmados... O resto é uma piada inventada por frios inbecis sobre os lombos dos Mestres, os quais geralmente não fizeram nada a não ser música de época! Só Bach pressentiu a verdade.”

 

C. Debussy

 

“O que gostaria de realizar seria uma música que satisfizesse por ela mesma, uma música que buscasse liberar-se de todo elemento pitoresco e descritivo, e para sempre distanciada de toda localização no espaço. Longe de querer descrever, esforço-me sempre no sentido de afastar do meu espírito a lembrança dos objetos e das formas susceptíveis de serem traduzidas por efeitos musicais. Quero fazer apenas música.”

 

A. Roussel

 

“A música expressa a natureza inconsciente deste e de outros mundos.”

 

A. Schöenberg

 

“A música é uma arte não significante, donde a importância primordial das estruturas propriamente lingüísticas, já que seu vocabulário não poderia assumir uma simples função de transmissão. Não ensinarei a ninguém a dupla função da linguagem, que permite uma comunicação direta, cotidiana, assim como serve de base à elaboração intelectual, ou, mais especialmente, poética; salta aos olhos que o emprego das palavras em um poema difere fundamentalmente da utilização corrente do vocabulário, numa conversação, por exemplo. Em música, ao contrário, a palavra é o pensamento. Que é, então, música? Ao mesmo tempo, uma arte, uma ciência e um artesanato.”

 

P. Boulez

 

“Há essencialmente duas perspectivas segundo as quais a música parece-me poder ser considerada uma linguagem...; elas correspondem diretamente às duas possibilidades de engajamento dessa linguagem a serviço da realidade e da problemática sociais. A música é sobretudo considerada como um veículo de uma mensagem. Todas as suas capacidades descritivas são colocadas a serviço da expressão, tão eloqüente, tão co-movente (e, portanto, pro-vocadora) quanto possível, de uma realidade que lhe é preexistente e que será finalmente a mais importante de apreender. Função duplamente voltada para o passado, para o lado passado do presente (que pode demonstrar uma persistência teimosa), já que é ela que parece ter sido tradicionalmente reconhecida para a música, e porque se trata de fazer ver aquilo que já está ali. Função quase monetária, a música não é aí senão o ‘símbolo’ de outra coisa. Mas há uma outra possibilidade, muito mais voltada para o futuro, para aquilo que não existe mas que poderia (deveria?) existir. Portanto, impossível de ser descrita, sobretudo de maneira exata (porque ainda não temos os meios mentais), sequer de ‘imaginar’; mas possível de experimentar, de suscitar sob forma fictícia pela fato de pôr à prova modelos exemplares. A recente bisca de formas de prática musical nova, com a maior iniciativa de todos os participantes, a espécie de antecipação microssocial de que ela permitiu e permite o atento estudo, parece-me um exemplo notório dessa possibilidade: sem que se tenha explicitamente buscado, ela se mostra algumas vezes capaz de fazer miraculosamente entrever o quadro de uma futura e bem melhor harmonia (por exemplo, de um tempo sem impaciência nem nostalgia).”

 

H. Pousseur  

 

“De todos os modos de expressão e de excitação, existe um que se impõe com um poder desmedido: ele domina, deprecia todos os outros (?), age sobre todo o nosso universo nervoso, superexcita-o, penetra-o, submete-o às flutuações mais caprichosas, acalma-o, destrói-o, prodigaliza-lhe as surpresas, as carícias, as inspirações e as tempestades; é dono de nossas existências, de nossos estremecimentos, de nossos pensamentos: esse poder é a Música, e ocorre que a música mais poderosa é soberana... Ao mesmo tempo diabólica e sagrada. É culto e vício; ensino e tóxico; ela realiza, como o faz uma função litúrgica aliás, a fusão de todo um auditório onde cada membro recebe a totalidade do sortilégio, pois um milhar de seres reunidos que, pelas mesmas causas, fecham os olhos, sofrem os mesmos arrebatamentos, sentem-se sós consigo mesmos e, no entanto, identificados através de sua emoção íntima com tantos próximos que se tornaram realmente seus semelhantes, formam a condição religiosa por excelência, a unidade sentimental de uma pluralidade viva. O maestro subia à estante. Poderíamos dizer que subia ao altar, que tomava o poder supremo; e, na realidade, ele o tomava, ele ia promulgar as leis, manifestar o poder dos próprios deuses da Música. A batuta era levantada: todas as respirações suspensas; todos os corações esperavam... O problema afinal não é mais inútil ou mais ingênuo que discutir o que fez uma bela obra de música ou poesia; e se ela nos nasceu da Musa, ou veio-nos do Acaso, ou se foi o fruto de um longo trabalho? Dizer que alguém a compôs, quer se chame Mozart ou Virgílio, não é dizer muita coisa; isso não vive no espírito, pois o que cria em nós absolutamente não tem nome; trata-se apenas de eliminar de nossa profissão todos os homens menos um, em cujo mistério íntimo encerra-se o enigma intacto. O som de nossa voz garante-nos muito mais do que esse firme propósito interno que ela pretende sonoramente que formemos. O timbre do violoncelo, sozinho, exerce em muitas pessoas um verdadeiro domínio visceral. Há palavras cuja freqüência em um autor revela-nos estarem dotadas de ressonância de uma qualidade completamente diferente nele e, em conseqüência, de uma força positivamente criadora, que normalmente não possuem. Esse é o exemplo dessas avaliações pessoais, desses grandes valores-para-um-só, que certamente desempenham um lindo papel em uma produção do espírito onde a singularidade é um elemento de primeira importância. Há uma contínua ou conservada ligação entre um ritmo e uma sintaxe, entre o som e o sentido. Reconheço em mim todos os objetos possíveis do mundo comum. Todos os objetos possíveis do mundo comum, externo ou interno, os seres, acontecimentos, sentimentos e atos, permanecendo o que são normalmente quanto às aparências, encontram-se de repente em uma relação indefinível, mas maravilhosamente ajustada ao gosto de nossa sensibilidade geral. Isso significa que as coisas e esses seres conhecidos - ou melhor, as idéias que os representam - transformam-se em algum tipo de valor. Eles se chamam entre si, associam-se de forma completamente diferente da dos meios normais; acham-se (permitam-me esta expressão) musicalizados, tendo se tornado ressonantes um pelo outro e como que harmonicamente correspondentes. O universo poético assim definido apresenta grandes analogias com o que podemos supor do universo do sonho. Compreender consiste na substituição mais ou menos rápida de um sistema de sonorização, de durações e de sinais por algo totalmente diferente que é, em suma, uma modificação ou uma reorganização interna da pessoa a quem se fala. E eis a comprovação: é que a pessoa que não compreendeu repete, ou pede que lhe repitam palavras. Permitam-me fortalecer a noção de universo poético lembrando um noção parecida, a de universo musical. Peço-lhes um pequeno sacrifício: o de reduzir por um instante a faculdade do ouvir. Um simples sentido, como o da audição, oferecerá tudo aquilo de que precisamos para nossa definição, dispensando-nos de entrar em todas as dificuldades e sutilezas às quais nos levariam a estrutura convencional da linguagem comum e suas complicações históricas. Vivemos, através do ouvido, no mundo dos ruídos. É um conjunto geralmente incoerente e alimentado irregularmente por todos os incidentes mecânicos que podem ser interpretados por esse  ouvido, à sua maneira. Mas o próprio ouvido destaca desse caos um outro conjunto de ruídos particularmente observáveis e simples - ou seja, bem reconhecíveis por nosso sentido e que lhe servem de referência. São elementos que mantêm relações entre si, tão sensíveis quanto esses mesmos elementos. O intervalo entre dois desses ruídos privilegiados é tão nítido quanto cada um deles. São os sons, e essas unidades sonoras estão aptas a formar combinações claras, implicações sucessivas ou simultâneas, encadeamentos e cruzamentos que podem ser denominados inteligíveis: é por isso que na música existem possibilidades abstratas. Assim, o músico se encontra em posse de um sistema perfeito de meios bem definidos, que fazem com que sensações correspondam exatamente a atos. Resulta de tudo isso que a música formou um campo próprio absolutamente seu. O mundo da arte musical, mundo dos sons, está bem separado do mundo dos ruídos. Enquanto um ruído se limita a estimular em nós um acontecimento isolado qualquer - um cachorro, uma porta, um carro...-, um som produzido evoca, por si só, o universo musical. Nesta sala em que estou falando, onde vocês ouvem o ruído de minha voz, se um diapasão ou um instrumento bem afinado começasse a vibrar, imediatamente, assim que fossem afetados por esse ruído excepcional e puro que não pode ser confundido com os outros, vocês teriam a sensação de um começo, o começo de um mundo; uma atmosfera diferente seria imediatamente criada, uma nova ordem seria anunciada, e vocês mesmos se organizariam inconscientemente para acolhê-la. O universo musical, portanto, estava em vocês, com as suas razões e proporções - como, em um líquido saturado de sal, um universo cristalino espera o choque molecular de um minúsculo cristal para manifestar-se. Ei-la: a idéia cristalina de tal sistema. E eis o que contraprova a experiência: se, em uma sala de concerto, enquanto a sinfonia soa e domina, acontece de cair uma cadeira, de uma pessoa tossir, de uma porta se fechar, imediatamente temos a impressão de alguma ruptura. Alguma coisa indefinível, da natureza de um encanto ou de um cálice de Veneza, foi quebrada ou rachada. As fórmulas mágicas são freqüentemente privadas de sentido... Agem em nós como um acorde musical. Uma idéia de algum Eu maravilhosamente superior ao Mim!  Quero contar-lhes uma história real: tinha saído de casa para descansar de algum trabalho enfadonho através da caminhada e dos olhares variados que ela atrai. Enquanto ia pela rua em que moro, fui tomado, de repente, por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressão de um funcionamento estranho. Como se alguém estivesse usando minha máquina de viver. Um outro ritmo veio então reforçar o primeiro, combinando-se com ele; e estabeleceram-se não sei que relações transversais entre essas duas leis. Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e não sei que canto que eu murmurava, ou melhor, que se murmurava através de mim. Essa composição se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdades rítmicas comuns e utilizáveis. Nesse momento, a sensação de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa, quase inquietante. Não sou músico; ignoro totalmente a técnica musical; e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes, de uma complicação com a qual nenhum poeta sonhou algum dia. Dizia-me então que havia erro de pessoa, que essa graça enganava-se de cabeça, já que eu nada podia fazer com esse dom - que, em um músico, teria sem dúvida tomado valor, forma e duração, enquanto essas partes, que se misturavam e desligavam-se, ofereciam-me inutilmente uma produção, cuja continuação culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignorância. Depois de vinte minutos, o encanto se desvaneceu bruscamente; deixando-me, na margem do Sena, tão perplexo quanto a pata da Fábula que viu sair um cisne do ovo que havia chocado. Depois que o cisne voou, minha surpresa se transformou em reflexão. Eu sabia que a caminhada freqüentemente me entretém em uma viva emissão de idéias e que ocorre uma certa reciprocidade entre meu passo e meus pensamentos, com meus pensamentos modificando meu passo; com meu passo excitando meus pensamentos - o que, afinal, é notável mas compreensível. Ocorre, sem dúvida, um harmonização de nossos diversos ‘tempos de reação’, e é interessante supor que exista uma modificação recíproca possível entre um regime de ação, que é puramente muscular, e uma produção variada de imagens, de julgamentos e raciocínios. Mas, neste caso, aconteceu que meu movimento de caminhada se propagou para a minha consciência através de um sistema de ritmos bastante engenhoso ao invés de provocar em mim esse nascimento de imagens, de palavras internas e de atos visuais que denominamos idéias. Quanto às idéias, são coisas de uma espécie que me é familiar; são coisas que sei observar, provocar, manobrar... Mas não posso dizer o mesmo de meus ritmos inesperados. Construir ‘existe’ entre um projeto ou uma visão determinada e os materiais escolhidos. Substitui-se uma ordem inicial por uma outra, quaisquer que sejam os objetos ordenados. São pedras, cores, palavras, conceitos, homens etc.; sua natureza particular não muda as condições gerais dessa espécie de música onde ela desempenha ainda apenas o papel de timbre, se continuarmos a metáfora. O autor, na imensa maioria dos casos, é incapaz de se dar conta, ele próprio, dos caminhos tomados e de que ele é detentor de um poder cujos mecanismos ignora... Quer evoquemos a linguagem e sua melodia primitiva, a separação das palavras e da música, a arborescência de cada uma, a invenção dos verbos, da escrita, a complexidade figurada das frases que se torna possível, a intervenção tão curiosa das palavras abstratas; e, por outro lado, o sistema dos sons que se abrandam, que se estendem da voz às ressonâncias dos materiais, que se aprofundam através da harmonia, que variam através do uso dos timbres... Toda essa vitalidade multiforme pode ser apreciada sob a relação ornamental. (O ornamento, resposta ao vácuo, compensação do possível, completo de algum modo, anula uma liberdade?) Poesia.
Deveríamos estudá-la primeiro como pura sonoridade, lê-la e relê-la como uma espécie de música; introduzir o sentido e as intenções na dicção somente quando o sistema dos sons que deve, sob pena de supressão, ser oferecido por um poema, estiver bem apreendido... Leonardo da Vinci: “O ar está repleto de infinitas linhas retas e radiosas, entrecruzadas e tecidas sem que uma nunca se sirva do percurso de uma outra, e elas representam para cada objeto a verdadeira FORMA de sua razão - de sua explicação.” Hoje, linhas de universo, mas não se pode mais vê-las pois somente as trajetórias sugeridas pelas melodias podem nos dar alguma idéia ou intuição de trajetória espaço-tempo... Talvez ouvi-las?" 

 

 

P.V.

 

 

A p ê n d i c e

 

"– Esses grandes criadores, por exemplo, esses Byron, Muset, Poe, Leopardi, Kleist, Gogol – não ouso citar nomes maiores, mas penso neles –, tal como são e têm de ser: criaturas do momento, sensuais, absurdos, quíntuplos, levianos e repentinos no confiar e no desconfiar; tendo almas em que habitualmente se deve esconder uma ruptura; muitas vezes vingando-se, com suas obras, de uma mancha interior; tantas vezes buscando, com seus vôos, esquecimento face a uma memória demasiado fiel, idealistas dos arreadores do pântano – que tortura são esses grandes artistas, e os chamados homens superiores em geral, para aquele que uma vez os decifrou... Somos todos advogados da mediocridade... É compreensível que eles precisamente sejam alvo, por parte da mulher, que é clarividente no mundo do sofrer e também ansiosa de ajudar e salvar, infelizmente muito além de suas forças, dessas erupções de ilimitada compaixão, que a multidão, sobretudo a multidão que venera, acumula de interpretações curiosas e autocomplacentes... Tal compaixão normalmente se ilude a respeito de sua força: a mulher quer acreditar que o amor tudo pode – é a sua peculiar superstição. Oh, o conhecedor do coração percebe quão pobre, desamparado, presunçoso e canhestro é inclusive o melhor e mais profundo amor – como ele antes destrói do que salva..." 

"– O nojo e a altivez espirituais de todo homem que sofreu profundamente – a hierarquia é quase que determinada pelo grau de sofrimento a que se pode chegar –, a arrepiante certeza de que é impregnado e tingido, de mediante seu sofrimento saber mais do que os mais inteligentes e sábios poderiam saber, de ter estado e ser versado em tantos mundos distantes e horríveis, dos quais “vocês nada sabem”..., esta silenciosa altivez espiritual, este orgulho do eleito do conhecimento, do “iniciado”, do quase-sacrificado, tem como necessárias todas as artes do disfarce, para proteger-se do contato com mãos importunas e compassivas e, sobretudo, de todo aquele que não lhe é igual na dor. O sofrimento profundo enobrece; coloca à parte. – Uma das mais sutis formas de disfarce é o epicurismo, e uma certa ostensiva bravura do gosto, que não toma a sério o sofrimento e se põe em guarda contra tudo que é triste e profundo. Há “homens joviais” que se utilizam da jovialidade porque graças a ela são mal-entendidos – eles querem ser mal-entendidos. Há “espíritos científicos” que recorrem à ciência porque esta lhes dá uma aparência jovial, e porque a cientificidade leva a concluir que o homem é superficial – eles querem induzir a uma conclusão errada... Há espíritos livres e insolentes, que gostariam de negar e ocultar que no fundo são corações destroçados, incuráveis – é o caso de Hamlet: então a doidice mesma pode ser a máscara para um saber desventurado e certo em demasia. –"

"Solitário então, e gravemente desconfiado de mim mesmo, tomei, não sem ira, partido contra mim e a favor de tudo o que me fazia mal e era duro: assim achei novamente o caminho para esse valente pessimismo que é o oposto de toda mendacidade idealista, e também, como quer me parecer, o caminho para mim – para minha tarefa... Esse oculto e soberano Algo, para o qual durante muito tempo não temos nome, até ele se revelar enfim como nossa tarefa – esse tirano em nós toma uma represália terrível contra toda tentativa que fazemos de nos esquivar ou fugir, contra toda resignação prematura, toda equiparação aos que não são nossos iguais, toda atividade, ainda que respeitável, que nos desvie do principal – e mesmo toda virtude que nos proteja contra a dureza da responsabilidade mais nossa. A cada vez a resposta é doença, quando queremos duvidar do direito à nossa tarefa, quando começamos a tornar as coisas mais fáceis para nós de algum modo. Estranho e horrível ao mesmo tempo! Os nossos alívios são o que temos de expiar mais duramente! E se quisermos depois voltar à saúde, não nos restará escolha: teremos de carregar um fardo mais pesado do que jamais carregamos antes..."

"Quanto mais um psicólogo, um nato, inevitável psicólogo e leitor de almas, voltar a atenção para os casos e seres mais elevados, maior será o perigo de ele sufocar de compaixão. Ele necessita de dureza e serenidade, mais que qualquer outro homem. Pois a corrupção, a ruína dos homens mais elevados constitui a regra: é horrível ter sempre antes os olhos uma tal regra. A múltipla tortura do psicólogo que divisou essa ruína, que descobriu uma vez e depois quase sempre, através da história inteira, essa “incurabilidade” interior do homem elevado, esse eterno “Tarde demais!” em todo sentido – pode vir a ser a causa de ele próprio se corromper... Em quase todo psicólogo se notará uma inclinação reveladora para lidar com gente cotidiana e regrada: nisto se mostra que ele sempre requer uma cura, que precisa de uma espécie de fuga e esquecimento, para longe de tudo o que lhe puseram na consciência as suas percepções e incisões, o seu ofício. O medo da própria memória lhe é bem característico. Ele facilmente emudece ante o juízo dos outros, escuta com rosto impassível como veneram, amam, admiram, transfiguram, ali onde ele viu – ou mesmo esconde seu silêncio, ao concordar expressamente com alguma opinião-de-fachada. Talvez o paradoxo da sua situação seja tão horrível que justamente ali, onde ele aprendeu a grande compaixão junto ao grande desprezo, os “homens cultos” aprendem a grande veneração... E quem sabe não ocorreu precisamente isso em todos os grandes casos – que se adorasse um deus, e o deus fosse um pobre animal de sacrifício... O êxito sempre foi o maior mentiroso – e também a obra, o ato é um êxito... O grande estadista, o conquistador, o descobridor está disfarçado, escondido em suas criações, até um ponto irreconhecível; a obra, a do artista, do filósofo, só ela inventa quem que criou, quem a teria criado... Os “grandes homens”, tal como são venerados, são pequenas ficções ruins, feitas posteriormente – no mundo dos valores históricos a moeda falsa domina..."

"Freqüentemente me perguntei se não tenho um débito mais profundo com os anos mais difíceis de minha vida do que com outros quaisquer. Minha natureza íntima me ensina que tudo necessário, visto do alto e no sentido de uma grande economia, é também vantajoso em si – deve-se não apenas suportá-lo, deve-se amá-lo... Amor fati [amor ao destino]: eis minha natureza íntima. – Quanto a minha longa enfermidade, não lhe devo indizivelmente mais do que a minha saúde? Devo-lhe uma mais elevada saúde , uma que é fortalecida por tudo o que não a destrói! – Devo-lhe também minha filosofia... Apenas a grande dor é o extremo liberador do espírito, enquanto mestre da grande suspeita , que de todo U faz um X, um autêntico e verdadeiro X, isto é, a antepenúltima letra... Apenas a grande dor, a longa, a lenta dor, em que somos queimados com madeira verde, por assim dizer, a dor que não tem pressa – obriga a nós filósofos, a alcançar nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda benevolência, tudo o que encobre, que é brando, mediano, tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que uma tal dor “aperfeiçoe”: mas sei que nos aprofunda... Seja que aprendemos a lhe opor nosso orgulho, nosso escárnio, nossa força de vontade, fazendo como o índio que, embora supliciado, obtém desforra de seu torturador mediante o veneno de sua língua; seja que ante a dor nos retiramos para o Nada, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se, apagar-se: desses longos e perigosos exercícios de autodomínio retornamos outra pessoa, com algumas interrogações a mais – sobretudo com a vontade de doravante questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente do que até hoje foi questionado nesta Terra. A confiança na vida se foi; a vida mesma tornou-se um problema. – Mas não se creia que isso torne alguém necessariamente sombrio, uma coruja agourenta. Mesmo o amor à vida é ainda possível – apenas se ama diferente... É o amor a uma mulher da qual se duvida..." 

"Eis o mais estranho: temos depois um outro gosto – um segundo gosto. Desses abismos, também do abismo da grande suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais joviais, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que antes. Moral: não se é impunemente o espírito mais profundo de todos os milênios – mas também não sem recompensa... Darei agora uma amostra.
Oh, como lhe repugna agora a fruição, a grosseira, surda, parda fruição tal como a entendem os fruidores, nossos “homens cultos”, nossos ricos e governantes! Com que malícia escutamos agora o barulho de grande feira com que o homem “culto” e citadino se deixar violentar pela arte, livros e música até sentir “prazeres espirituais”, não sem ajudar de bebidas espirituais! Como agora nos fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora, e todas as suas aspirações ao excelso, elevado, empolado! Não, se nós, convalescentes, ainda precisamos de uma arte, é de uma outra arte – uma ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial, que como uma pura flama lampeje num céu limpo! Sobretudo: uma arte para artistas, somente para artistas ! Nós nos entendemos melhor, depois quanto ao que primeiramente se requer para isso, a serenidade, toda serenidade, meus amigos!... Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós sabedores: oh, como hoje aprendemos a bem esquecer, a bem não-saber, como artistas!... E no tocante a nosso futuro: dificilmente nos acharão nas trilhas daqueles jovens egípcios que à noite tornam inseguros os templos, abraçam estátuas e querem expor à luz, desvelar, descobrir, tudo absolutamente que por boas razões é escondido. Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de “verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade – nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu ... Hoje é, para nós uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e “saber” tudo. Tout comprendre – c’est tout mépriser [Tudo compreender – é tudo desprezar]... “É verdade que Deus está em toda parte?”, perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” – um sinal para filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de colorida incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões? Talvez, o seu nome, para falar grego, seja Baubo?... Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência ! Esses gregos eram superficiais – por profundidade... E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso – gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso – artistas ?..."

(F. Nietzsche, "Como me libertei de Wagner", Nietzsche contra Wagner)

 

 

      I N T R O

 

"Música contemporânea é a música dos séculos XX e XXI, feita após o movimento impressionista e os vários nacionalismos.

 

Pode-se dizer ainda que músicas contemporâneas são aquelas cujo compositor se encontra ainda vivo na época do locutor.

 

Não há uma tendência uniforme na música contemporânea. Contudo, menciona-se duas escolas: a da Música de Vanguarda, que compreende sobretudo o experimentalismo; e as tendências neoclássicas e neo-românticas (chamadas "conservadoras"), representadas por compositores como Arvo Pärt e Krzysztof Penderecki, que representam uma reação ao experimentalismo, voltando a adotar a linguagem tonal.

 

Embora na questão ainda haja grande preconceito, como ocorre quando do nascimento de novas tendências artísticas, também podem-se destacar a música eletrônica, criada na Alemanha da década de 1950 e responsável pela geração de novíssimos e curiosos sons, surgidos eletronicamente ou manipulados através de outros instrumentos ou objetos, que são incorporados à música e explorados em larga escala. A música contemporânea valorizava especialmente a inovação e a criatividade.

 

Considera-se que o período contemporâneo na música se inicia com a música impressionista (1910 - 1920), dominada por compositores franceses.

Entre as várias linguagens de música contemporânea, destacam-se a música eletrônica (aquela que é criada ou modificada através do uso de equipamentos e instrumentos eletrónicos, tais como sintetizadores, gravadores digitais, computadores ousoftwares de composição); e a música aleatória, que, como o nome diz, fica sob a responsabilidade do músico executante, o qual, em alguns casos, só precisa obedecer à ideia mais geral que inspirará a música, um sentimento ou um acontecimento histórico, o que requer, porém, imensa habilidade musical, imaginação e criatividade. 

 

Alguns de seus Movimentos:

Modernista;

Eletrônico;

Computadorístico;

Espectral;

Pós-Modernista;

Poliestilístico (Ecleticista);

Historicista;

Neo-Romântico;

Neo-Simplificista;

Neo-Complexista;

Minimalista e Pós-Minimalista." (WP)

Teoria Das Músicas Electrônicas 

Como Obra Aberta E Percepção Estética

 

Para descobrir formas sonoras verdadeiramente novas, importa utilizar sistemas de produção sonora fundamentalmente distintos dos da massa orquestral, onde exercem a sua função: por exemplo, o cravo, a harpa judaica, a guimbarda, a ocarina, etc. Mas também é sabido que estes instrumentos não podem adaptar-se àdinâmica da orquestra; por isso nunca se tentou utillizá-los, a despeito da marcada originalidade dos sons que produzem e que, infelizmente, pertencem a outra gama de níveis dinâmicos. Este exemplo é típico da relação que une os produtos duma arte aos meios técnicos que lhe dão origem."

 Moles, Abraham - "Les Musiques expérimentales" in Samuel, Claude- Panorama da arte musical Contemporânea, pág. 521 (sublinhados meus)

 

Música Electrónica

 

            "Os meios electrónicos não permitem "fazer música", no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos electrónicos o tentam, representam apenas música de substituição ... A nova produção sonora exige antes novas ideias criadoras de composição, e estas só podem provir do próprio som: da "matéria sonora" ... Hoje (o compositor) já não tem só que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades, com meios, quartos ou oitavos de tom, mas sim com frequências eléctricas de cerca de cinquenta a quinze mil vibrações por segundo, com mais de quarenta intensidades exactamente medidas e com uma imensidade de durações (centímetros de fita sonora) que saem do quadro habitual da notação."

H. Eimert, La Musique eléctronique in Samuel, Claude- Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 523. 

            "A exemplo do pintor, o músico passa agora a produzir a obra executando-a, o que neste caso, equivale a realizá-la em sons; a obra nasce no decurso da sua sonorização. O papel dos aparelhos electroacústicos já não é, portanto, o dos instrumentos: compõe-se para estes, tendo em conta as respectivas particularidades; mas compõe-se com aqueles, pois a sua função é de fabrico... Manejar os aparelhos electroacústicos não desumaniza o músico, não mecaniza a música, antes humaniza os aparelhos."

Schloezer, Boris de e Marina Seriabine - Problèmes de la musique moderne. in Samuel, Claude - Panorana da Arte Musical Contemporânea, pág. 523. 

            "Totalidade e continuidade definem o universo sonoro da música electrónica. Esse poder de fazer evoluir qualitativamente a matéria, de maneira contínua, o músico já não o limitará aos fenómenos sonoros de elaboração estritamente electrónica, se éque não o estende aos sons instrumentais e à voz: assim, pode atingir novas regiões de expansão e de diferenciação da matéria instrumental ou vocal, ligadas a novas formas."

Boncourechliere, André - Musique Électronique in Samuel, Claude- Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 524.

 

Música Concreta

 

            "Onde reside a invenção? Quando se produziu? Respondo sem hesitar: quando cheguei ao som dos sinos. Separar o som do ataque constituía o acto gerador. Toda a música concreta está contida, em germe, nessa acção propriamente criadora, exercida sobre a matéria sonora. Não tenho qualquer recordação especial do instante em que essa tomada de som se realizou...

            Basta, por exemplo, ter gravado algumas rotações duma lata de conservas vazia. A partir dessa gravação, é possível trabalhar durante horas, e já se não trata de lata de conservas, de tal modo o som fica transposto, irreconhecível. Com efeito, duma caixa de fósforos podem sair melodia, harmonia, bateria... A matéria sonora possui, em si mesma, uma inesgotável fecundidade. É um poder que lembra o do átomo, com reservatórios de energia escondidos ns partículas e capazes de surgimento, desde que se descubra

a cisão nuclear."

Schaeffer, Pierre - À la recherche d'une musique concrète in Samuel, Claude -

Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 524.

 

            "O elemento mais revolucionário da música concreta não consiste em ter revelado novos aparelhos, nem mesmo novos sons, mas sim em ter revelado ao ouvido musical possibilidades potenciais, muitas vezes evidentes, de que o ouvido não tinha tomado consciência, e que ainda menos sonhara utilizar."

Schaeffer, Pierre - Vers une musique expérimentale, in Samuel, Claude - Panorama da

Arte Musical Contemporânea, pág. 524-525.

 

            "A música concreta beneficiou, desde o princípio, duma curiosidade por vezes justificada. O interesse puramente técnico que então despertava degradou-se a pouco e pouco, por determinados motivos, e pode ter-se a certeza de que o seu papel não se reveste hoje de importância alguma e de que as obras por ela suscitadas não são para fixar ... Possuem apenas os respectivos títulos, para se apresentarem à posteridade; desprovidas de qualquer intenção criadora, limitam-se a ser pouco engenhosas ou pouco variadas montagens, contando sempre com os mesmos efeitos, onde a locomotiva e a electricidade fazem de vedetas: nada é função dum método algo coerente. Trabalho de amadores em peregrinação, a música concreta nem sequer pode, no domínio do gadget, fazer concorrência aos fabricantes de "efeitos sonoros" que trabalham na indústria cinematográfica americana."

Boulez, Pierre - "Encyclopédie de la Musique, in Samuel, Claude - Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág.525.

 

            "La poétique de l'oeuvre "ouverte" tend, dit Pousseur, àfavoriser chez l'interprète "des actes de liberté consciente", àfaire de lui le centre actif d'un reseau inépuisable de relations parmi lesquelles il élabore sa propre forme, sans être déterminé par une nécessité dérivant de l'organisation même de l'oeuvre. On pourrait objecter (en se reportant au premier sens, au sens large, du mot "ouverture") que toute oeuvre tradicionelle, encore que matériellement achevée, exige de son interprète une réponse personelle et créatrice: il ne peut la comprendre sans la réinventer en collaboration avec l'auteur."

Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 18.

 

            "Dès lors, l'oeuvre est "ouverte" au sens où l'est un débat: on attend, on souhaite une solution mais elle doit naître d'une prise de conscience du public. L'"ouverture" devient instrument de pédagogie révolutionnaire."

Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 25.

 

            "O facto específico que sugeriu a presente comunicação consistiu no aparecimento, nestes últimos tempos, e em sectores diferentes, de obras cuja "indefinitude", cuja abertura, o fruidor pode realizar sob o aspecto produtivo. Trata-se, pois, de obras que se apresentam ao fruidor não completamente realizadas ou ultimadas, em relação às quais a fruição consiste no acabamento produtivo da obra: acabamento produtivo em que se esgota também o próprio acto de interpretação, porque o modo de acabamento manifesta a visão particular que o fruidor tem da obra."

Eco, Humberto - A Definição de Arte, págs. 156-157.

 

             "Trata-se, portanto, de compreender a obra como um organismo aberto; organismo, porque dotado de uma formatividade originária própria que não pode deixar de condicionar as escolhas efectuadas de entre uma gama de possibilidades; aberto, justamente porque a forma não obriga o fruidor a seguir uma direcção necessária, mas apresenta-se-lhe

como campo de possibilidades."

Eco, Umberto - A Definição de Arte, pág. 172.

 

2 - O problema da obra aberta na música contemporânea

            A nossa investigação vai partir do conceito de obra aberta tal qual o apresenta Umberto Eco nas obras Oeuvre Ouverte e A Definição de Arte. Eco considera que as composições de música instrumental caracterizam-se pela liberdade que concedem ao intérprete. Este não tem só, como na música tradicional, a faculdade de interpretar segundo a sua própria sensibilidade as indicações do compositor: trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num acto de improvisação criadora, ou seja: o intérprete de uma composição de música contemporânea não é o executante de uma obra totalmente pré-determinada em que toca da mesma maneira as vezes que for preciso, mas é como o compositor, um criador. A improvisação torna-se desta maneira fundamental na determinação duma estética para a música contemporânea. Mas podemos perguntar: que composições obedecem a este esquema? Umberto Eco responde dando-nos alguns exemplos, aos quais outros poderíamos acrescentar(1). Portanto, o que se está a querer dizer é que as obras musicais contemporâneas, não constituem mensagens acabadas e definitivas, formas determinadas uma vez por todas. Não estamos mais perante obras que pedem para ser repensadas numa direcção estrutural já dada, mas perante obras "abertas" oeuvres ouvertes, que o intérprete concluiu no momento em que assume a mediação.(2) Eco vai explicitamente afirmar: "... toda a obra de arte, mesmo que seja forma acabada e "close" na sua perfeição de organismo exactamente calibrado, é "ouverte" pelo menos no que ela pode ser interpretada de diferentes maneiras sem que a sua irreductível singularidade seja alterada. Fruir duma obra de arte passa por dar-lhe uma interpretação, uma execução, a fazê-la reviver numa perspectiva original."(3) Em cada obra o compositor prevê um resultado diferente para cada execução da obra, deixando-a dependente da escolha do intérprete. De facto, a partitura tem um aspecto um tanto ou quanto invulgar, como uma grande folha contida numa moldura, feita propositadamente, sobre a qual surgem grupos de notas, como frases musicais nitidamente separadas umas das outras.(4)

            Na obra A Definição de Arte Umberto Eco levanta um aspecto importante da relação música contemporânea-público: "enquanto certas experiências de obra aberta a uma fruição vaga exprimiam ainda uma sensibilidade de tipo decadente e um desejo de fazer da arte um instrumento de comunicação teoricamente privilegiado, os últimos exemplos de obra aberta a um complemento produtivo exprimiam uma evolução radical da sensibilidade estética."(5)

 

3 - Música para o século XX

            As teorias de música no nosso século são revistas (o neo-classismo), reformadas a (o realismo) ou revolucionadas (dodecafonismo). É precisamente sobre este último sistema musical que irei falar.(6)

            O dodecafonismo começa por reflectir sobre os elementos primários da música: as notas. Os tratamentos descritivos destas formas primárias são tidos como unidades puras, de funções acústicas criteriosamente determinadas.

            O som complexo é combinado em estruturas abertas (complexo de sons complexos). O silêncio do dodecafonismo é um combinatório racional, o ruído inclui-se como valor minimal da textura sonora, mas mantém-se a noção de oitava de tonalidade.(7) Com o serialismo declara-se o fim da oitava. O som é um elemento acústico puro, dá-se a unicidade do material e da forma. A composição estende-se a todos os elementos sonoros da estrutura musical. A arte musical torna-se físico-científica, a teoria da música é a prática, o instrumento delimita na sua mais global especificidade a composição e o compositor domina a totalidade da matéria.

            A independência com que se estuda a unidade sonora permite ao compositor a experimentação matemática das diversas conjunturas sonoras.(8)

            Este hiper-racionalismo evidencia o avanço tecnológico do homem e é contemporâneo do pensamento electrónico. Perigosamente tecnocrata, anti-lírica, plena de referências a um tempo cósmico que as massas na maioria esmagadora estão longe de conceber ou viver, a música serial nasce e cresce em pequenos grupúsculos cuja inteligência científica não permite o menor contacto com a classe popular submetida como está ao terror do empirismo.

 

4 - Do Serial à Metamúsica

            A música serial (que pode incluir a música electrónica) trabalha, neste campo particular com micro-estruturas e sons sinusoidais implica uma concepção de espaço e tempo absolutamente nova, utiliza material instrumental radicalmente inédito e exprime a mentalidade cibernética.

            Mais acessível, porque exigindo uma disponibilidade máxima, dada a sua total originalidade, a música electrónica põe fim à noção de intérprete e desencadeia teorias abstratas do probabilismo e do acaso que a cibernética tão cientificamente situou na galáxia do pensamento humano.

            Paralelamente, e aproveitando a nova tecnologia, surge a música concreta que procura restituir o som natural à sociedade humana que dia após dia se perde na floresta de máquinas, se degrada no inferno da burocracia e se aliena na sua própria natureza - a intenção não corresponde ao resultado. Seria, porém, um fim pessimista querer deixar este retrato da música dos nossos dias. A música levantou uma hiper-complexa indústria, exigiu uma infindável série de dispositivos sociais, apoderou-se duma ultra-sofisticada tecnologia e apresenta-se ao consumidor e ao músico na polivalência dos seus estilos.

            Referindo as mais variadas terminologias, escolas, conceitos, recorrendo às mais insólitas bases psicológicas que vão do hiper-racionalismo ao hiper-intuicionismo, historiando todos os tipos musicais hoje susceptíveis de actualização desde a música oriental antiga à música medieval, inventariando desconhecidas formas de música etnográfica (dispersa e perdida nos confins do planeta), a indústria musical, melhor: a arte musical, abriu-se no esplendor da sua magnitude, na totalidade dos seus imensos valores, na longevidade da sua história. A metamúsica surge como a primeira revolução verdadeiramente universal da história da música.(9)

 

5 - Economia Musical e Praxis

            A música é uma variação colectiva do imaginário. Como tal liberta o trabalho da ligação das formas, para lá da individualidade. A obra é uma recolecção da vida dos povos, pois que os signos foram produzidos por um esforço colectivo.

            As forças produtivas dos grupos, das culturas e das civilizações modificaram, sempre, as condições de produção de música e é pela liberdade da música que se antecipa a realização da sociedade livre.

            Entendamos neste sentido a música como transgressão expressiva, produção original e específica de ilusão.

            Original porque invenção e criatividade permanente, específica porque substancialmente limitada ao mundo da acústica. Seria ignorância e pressuposto da alienação acrítica pensar que mesmo os grandes génios da música (Bach, Beethoven, Debussy ou Stockhausen ...)(10) puderam criar fora das condições materiais e ideológicas da sua época.

            

5.1 - Aparelho ideológico da Música

            Na sequência deste trabalho e dentro da organização duma tipologia musical que se quer coerente quero falar naquela massa bruta de produção sonora que se chama música ligeira, comercial e/ou de consumo.

            Não é despropositada a minha intenção pois que focarei a música ligeira na dupla perspectiva da crítica musical e da crítica económica musical.

            A música ligeira é uma emanação anti-estética da indústria capitalista da música e é, sobretudo, um discurso estruturado da mais-valia musical da música de massas e/ou da música erudita.

            Mais-valia musical da produção autêntica de música porque utiliza e rouba todos os resultados do trabalho que a história geral da música conseguiu atingir; isto quer no plano estético teórico quer no âmbito técnico-instrumental.

            Convém agora introduzir aqui a noção que eu dou ao sistema da indústria musical do aparelho ideológico da música(11).

            Entendo por aparelho ideológico de música toda a engrenagem tecno-burocrática de que a indústria musical se reveste para produção de determinada mercadoria musical. Esta mercadoria tem um nítido conteúdo ideológico e movimenta forças económicas definíveis. A música ligeira serve como melhor exemplo deste aparelho ideológico de música ao nível da sociedade capitalista. O termo aparelho ideológico musical não se refere, como erradamente se pensaria, apenas à indústria capitalista musical mas a toda a espécie de produção artística musical, já que, toda a música veicula uma ideologia. O aparelho ideológico musical a que a música ligeira pertence pode ser analisado sob várias perspectivas. O que aqui interessa, penso, que é enunciar sumários sintomas da ideologia capitalista que são detectáveis na música ligeira. Ao fim e ao cabo a única forma de politicamente analisar a música é passar do seu sistema semântico para a sua funcionalidade social.

            

5.2 - A Música Ligeira

            Entendo a música ligeira como subproduto inestético da arte musical que inelutavelmente canaliza a ideologia pequeno burguesa da economia capitalista.

            A música ligeira alimenta-se da força de trabalho da arte musical, na medida em que a sua semântica se organiza a partir de extirpações, decalques, plágios da produção musical verdadeira.

            O termo verdade aqui posto em conflito com a falsificação que pretendemos imputar à música ligeira é, dentro de um critério de dialéctica materialista(12), a coincidência existente entre o trabalho e a produção, a coerência entre o conteúdo e a forma, a fidelidade entre a actualização e a história. A moral da música ligeira(13) é a mais que perfeita emolduração da ética pequeno burguesa. No sentido em que a música ligeira veicula (através do "poema" escolhido ou através da prática instrumental) a necessária ideia da áurea mediocritas camufladora da injustiça social ou da perfeição do belo.

            O "poema" (de natureza literária baixíssima, paupérrima, ignóbil) é primário e o significante musical é subjugado para uma função secundária. O significado literário sobrepõe-se desta forma ao significante musical a ponto de o relevo e a força desta música ligeira estar na ideologia do "poema" (na maioria dos casos). Nenhuma outra arte desceu tanto (pela mentira, pela alienação, pela mediocridade) como a música ligeira. Os problemas das relações sociais e humanas são trocados pela melodia fútil e/ou pelo poema laudatório da paz pequeno burguesa, o erotismo da música é atraiçoado pelo pornográfico símbolo do amor idealista, a complexidade semântica do sensível, conditio sino qua non da participação e da autenticidade, é imitada por uma entorpecente facilidade de produção estética ou técnica.

            O aparelho ideológico da música ligeira é a mais brutal das alienações. Arrasta a humanidade nos lamaçais da subcultura, impede os povos de se promoverem esteticamente, separa o quotidiano do revolucionário.

            Embora vá lesar muitos teóricos politiqueiros, incluo na música ligeira e no seu abominável aparelho ideológico aquela dita música "contestatária" ou "revolucionária" que se apoia sobre a mesma semântica musical (apologia da melodia fácil) e a oculta, a essa miséria e a essa mediocridade, com a fachada dum poema de cariz esquerdista ou panfletário.

            Aqui o aparelho ideológico musical serve de demagogia e utiliza-se da estrutura estética pequeno burguesa sem nela provocar qualquer subversão ou alteração - desta forma aliena-se de qualquer proposta revolucionária. Pode servir, e serve o reformismo; mas jamais pode ser considerada como música revolucionária, como música verdadeira, como música que transpareça a evolução do homem para a liberdade e para o engrandecimento cultural.

            Só resta denunciar que a música ligeira é uma ofensa à dignidade humana, representa a privação do belo, afunda as massas no sistema ideológico, aliena o homem da necessária força do trabalho sensível que a arte musical solicita. Numa palavra: negaremos lucidamente a música ligeira, a indústria capitalista que a permite, a mentira cultural que a reforça, a bárbara traição que desumaniza a cultura revolucionária. Não é de assombrar que na sociedade capitalista a música ligeira ocupe noventa por cento do aparelho ideológico musical porque neste regime político-económico e cultural sempre vigoraram o negativo, o repressivo, o reaccionário e o medíocre.

           

5.3 - A Música Erudita

            Não há a menor dúvida em afirmar que a ideologia da música erudita de vanguarda atinge o estádio mais evoluído da cultura humana, pela incomensurável complexidade ou grandiosidade estética e técnica das suas produções. Mas o aparelho ideológico musical que movimenta está perigosamente comprometido com a superestrutura cultural burguesa. Música elitista, resultando da mais alta especialização da divisão de trabalho do sistema dominante, do desenvolvimento desenfreado da tecnocracia, da selectividade cruel que a actual aristocracia científica exige. Música do admirável mundo novo com recursos intelectuais impressionantes, manipulando tecnologias fabulosas, exigindo do auditor o investimento total da própria sensibilidade e da própria razão.

            A beleza da música não reside porém na complexidade (nem apenas no lirismo); pode o simples ser extremamente belo - este é um lugar comum da estética, portanto serão injustificáveis certos subsídios, que o povo suporta, tão exagerados por vezes, e a manutenção abusiva de tertúlias hiper-racionalistas e cibernocratas.

            Um paralelismo com o problema de moral económico-político que a investigação astronáutica suscita, não será impróprio, mutatis mutandis.

            O aparelho ideológico musical da produção clássica (que não incluiu compositores vivos, pois são todos do passado) tem uma topologia social quase coincidente com a da música contemporânea mas estende-se, na sociedade de consumo, a uma camada burguesa senil ou senilizada, presumida e hipócrita, decadente e abjecta. Este estrato social que todos conhecem tão bem das salas de concertos e dos clubes elitistas não corresponde na totalidade e o quase supramencionado objectiva a diferença abissal que vai entre o amador de musica erudita e o farsante auditor. Este último não pode suportar a força revolucionária semântica da música contemporânea (electroacústica, serial ou concreta) pela simples razão que, da música clássica, apenas consome o convencional e a superfície, ignorando sempre aquilo que ela tem de inteligente, magnífico, enorme.

 

6 - Vanguarda Versus Retaguarda

            Edgard Varése afirmou certo dia: "não há uma vanguarda, há pessoas atrasadas". As fundamentais diferenciações entre a música clássica e a música de vanguarda residem essencialmente sobre dois aspectos - a instrumentação e o processo de criação sonora, e é sobre estas duas axiais estruturantes que iremos perspectivar o nosso trabalho.

            Podemos então constatar uma diferente interpretação do executante: deixada pelo compositor a possibilidade infinita de conjugar os dados fundamentais do texto a música torna-se sujeita à versatilidade do intérprete, rica em variações, liberta enfim da ditadura escrita.

            Entramos no campo do aleatório em que a responsabilidade do compositor concerne apenas à latitude dos resultados sonoros, à vontulariedade do auditor. Reconhece-se pois ao intérprete a expressão da própria personalidade o enriquecimento da obra com a sua iniciativa, ao contrário de ser um leitor mecânico da prescrição musical. Há certas obras, que dão livre arbítrio ao executor de coordenar a estrutura com apelos gestuais, sinais diversos que guiam a peça no espaço e no tempo, horizontal e verticalmente.

            O músico de vanguarda é ele próprio o tradutor duma situação individual-colectiva que condiciona o momento da criação e não apenas um recriador de alteridades sócio-temporais como será um intérprete de Bach. Falamos da função do intérprete mas podemos citar, dentro do campo da música acústica, certas obras de Stockhausen, por exemplo, que preconizam a abolição do intérprete, condicionando o som a vozes, ruídos, vibrações, que o próprio público produz e são imediatamente sintetizadas em computadores programados.

            À maneira da música do Bali é a própria manifestação institiva do público que coordena o acontecimento musical. Em Nova Iorque, o público da J.C.O.A. tem ao seu dispor uma gama infinita de instrumentos outrora reservados aos músicos e, pode desta forma executar os seus números, criar o sua música.

            O papel do compositor não está de modo algum infravalorizado, ele é o responsável pelo evento sonoro, pela estruturação probabilíctica das fases musicais, pela possibilidade, pela possibilidade dos conjuntos sintáxicos. O léxico é estabelecido pelo compositor e a execução fica implicitamente subordinada às suas regras musicais, escritas ou sugeridas.

            

6.1 - A Panóplia instrumental

            O que podemos constatar é uma reabilitação de instrumentos tidos outrora como secundários (seja o trombone, seja o clarinete baixo) numa consequente ilustração de sonoridades específicas; mais: Pierre Boulez formula textos reservados para determinada espécie de instrumentos que serão executados em outros de tipo diverso (ex.: uma peça de contrabaixo que é executada a fortiori por uma trompa). Quando Pascal se referia ao pavor do silêncio dos espaços infinitos a música do seu tempo era barroca: anti-silêncio, ornamento, excesso de acontecimentos sonoros. Hoje os espaços infinitos e o seu silêncio não nos horrorizam, antes nos seduzem como estupefacientes. É o tempo, hoje, da música que trabalha os silêncios, que vive da exiguidade, do mais simplesmente belo, do subtilmente significativo, do cosmicamente imaginativo.

            A panóplia instrumental foi engrandecida por vastas inovações mesmo dentro do campo acústico e os naipes de percussão beneficiaram de um extenso número de figuras inéditas que certo anticonvencionalismo autorizou.

            Não menos importante foi a aquisição de instrumentos orientais e africanos o que veio obrigar a uma revisão orientadora de novas fórmulas de escrita, de conjugações manifestamente policentristas a que um crescente espírito comunitário e colectivizante não esteve alheio.

            O mesmo tipo cénico da criação artística oriental se imprimiu nos espectáculos de vanguarda onde a coreografia e o jogo de volumes se inscrevem como elementos integrativos da composição. As pequenas peças instrumentais folclóricas que na música clássica adornavam composições massivas, de maneira epidérmica, assumiram planos relevantes na actual música de vanguarda num processo evolutivo que vem de Bartok e Villa-Lobos. Vistas generalizadamente as duas perspectivas da música de vanguarda facilmente nos apercebemos da viragem cultural que estas formas simbolizam: que a música é inseparável do individuo social, que o músico está comprometido com a sua função de transformador da cultura decadente.

            A música ao separar-se das dimensões regionais, alimentando preocupações planetárias, é a abolição irreversível de fronteiras, a descoberta do mundo e dos seus problemas. A música de hoje não é feita para distrair ou mecanizar mas para por questões, inquietar e desfazer as estruturas injustas. Arte para viver o tempo e jamais para passar o tempo.

            Vamos agora observar a importante estética musicológica de alguns compositores-musicológicos cujas teorias e cuja influência na música viva, de hoje, se tornou fulcral. Consideremos portanto seis musicólogos compositores de música erudita e vejamos qual a intervenção histórica destes no imenso panorama da música contemporânea. São eles, Pierre Boulez (para a música serial), Xenakis (para a música estocástica), Herbert Eimert (na música electrónica), Pierre Schaeffer (na música concreta), John Cage (na música experimental) e Karlheinz Stockhausen na metamúsica.

            

6.2 - Boulez e o Dodecafonismo

            O dodecafonismo como já o dissemos nasceu de Berg, Webern e Schonberg. O serialismo desenvolveu-se na dita escola post-weberniana e teve como principais cultores um Bruno Maderna, um K. Stockhausen ou um Boulez entre outros.

            Mas falaremos deste último dadas a relevante bibliografia que dele e sobre ele possuímos, a intransigente posição de formalista, a deslumbrante colecção de obras em cada qual expressou com a máxima clarividência o seu mundo musicológico. Boulez é extremamente difícil de analisar por quem apenas possui rudimentos de musicologia serialista(14) e pela principal razão de que o formalismo bouleziano consiste numa elevada reflexão sobre a musicografia clássica.

            Boulez pensa a música da história ocidental e actualiza-a numa concepção arquitectural de estruturas autónomas e imutáveis.

            Boulez continua o pensamento de Stravinsky mas o seu formalismo organiza-se através de acontecimentos ou séries estruturais de mobilidade para-científica. Distingue Boulez novas noções de espaço sonoro e divide-as em dois grandes grupos: os espaços homogéneos, formulados com objectos sonoros de natureza idêntica e os espaços não homogéneos, constituídos de objectos dessemelhantes.

            A técnica serial, na actualidade, procura organizar numa escala fixa de valores estas antigas relações espaciais. A série implica um tratamento detalhado do pormenor e conduz, desta forma, a uma espécie de puntilismo musical em que o silêncio é criteriosamente elaborado e em que se exige uma organização integral dos sons.

            A sua musicologia é severa e implicitamente austera adversária da improvisação. Boulez nega qualquer valor estético à improvisação. O problema dos valores, que constantemente sobressai na sua obra musicológica, coloca-nos perante uma nova perspectiva de ética musical, que não será a ética conservadora e académica dos formalistas do princípio do século, mas sim uma ética cibernocrática, consequência da nova tecnologia.

            O serialismo vingou na música do após guerra e tornou-se a espinha dorsal do magnífico corpo estético da arte contemporânea e garantiu a imensa possibilidade de renovação das formas antigas(15). Ilustres cultores são os seguintes entre outros: Jolivet, Ligeti, Pousseur, Kagel, Luigi Nono, Heuze, E. Nunes, todos eles igualmente musicólogos destacados.

            

6.3 - Xenakis e a Cibernomúsica

            Verifique-se que não estamos a querer suturar a obra musical destes compositores nem tão pouco descrever conquistas fundamentais de obras específicas mas sim traduzir literariamente conceitos musicológicos e considerações abstractas duma globalidade de criação cujo significado é de particular interesse para esclarecer certas tipologias musicais.

            Na generalidade qualquer um destes músicos (Stockhausen, Berio, Boulez, Xenakis ... entre outros ...) abordaram os mais diversos estilos musicais e prosseguiram as grandes invenções dos mestres Charles Ives, Edgard Varése, Olivier Maessian que são considerados os pioneiros da música de vanguarda. Passemos portanto à situação da musicologia de Xenakis.(16)

            A música estocástica considera os sons estatisticamente independentes e estuda-os através do cálculo das possibilidades. As massas sonoras são autonomizadas no conceito estatístico, as noções de espaço revolucionadas e a música estocástica pode ser definida como a tradução em música da entropia multidirecional. As flutuações da matéria sonora são determinadas pelo controle do acaso. A estratégia do jogo, a teoria dos jogos, a teoria do conjunto tudo isto está implícito na música de Xenakis. O uso da teoria da informação é decisiva para a realização de tão ambiciosos campos criativos.

            Para os músicos a musicografia de Xenakis é pobre, os arquitectos afirmam ser uma teoria arquitectónica limitada a tópicos herdados do seu mestre Le Corbusier(17) e para os matemáticos, Xenakis é um pensador vulgar. Mas o que acontece é que este gigantesco vulto da música contemporânea soube aliar múltiplas formas de conhecimento num ciclópico sistema epistemológico. As propostas de Xenakis são um pouco estas: para o artista a música sai da sua esfera privada e integra-se na harmonia ecológica.

            Manifesta-se contra a noção de periodicidade, a música é um permanente devir, insusceptível de retroacção. As formas luminodinâmicas executadas relativisticamente com raios sonoros microtemporais foram já realizadas e é preocupação musicológica da obra aberta de Xenakis. Grandes cultores da musicologia que se debruçam sobre o uso ordenador são: o polaco Penderecky, os franceses Barrault e Phillipot (da dita música algoritmica), Berio e os compositores do Estudo de Tecnologia de Milão, Ligeti, Babbitt e outros.

            

6.4 - Eimert, O profeta da música Electrónica

            Outro mundo maravilhoso e incompreendido é o da música electrónica. Sendo inicialmente uma forma experimental de controle de sons esta música assume formas altamente sofisticadas e expressamente definidas na musicologia de Eimert. Para o compositor alemão a ambiguidade rítmica dos sons electrónicos pressupôs e permitiu o seu desenvolvimento formal. Os factores do som (altura, intensidade e duração) actuam com valor próprio e contra os índices da periocidade simétrica. A música electrónica é uma arte minimal, constroi o próprio organismo sonoro desde o mínimo componente controlável até à forma total. o autor não indica, aqui, a forma mas sim a matéria musical. Os sons da música electrónica já estão devidamente seriados na estética de Eimert: os sons naturais (reconhecíveis) e uma nova espécie de sons: os sinusoidais. Estes sons sinusoidais consistem na matéria sonora mais simples e obtêm-se com geradores electrónicos de frequências. A seriação é conseguida a partir de misturas de sons - a música electrónica é, para Eimert, a representação de sons reais a sua metáfora sinestésica. O electrónico, em música, é o serial, organiza-se do som isolado ao mais complexo. Eimert insurge-se contra a psicologização patético-burguesa da música e diz-nos que a verdade da música é a sua percepção acústica e não dos procedimentos.

            O carácter cósmico da música electrónica, segundo Eimert, distancia o mundo sideral do âmbito subjectivo. Os expoentes da música electrónica são, desde a notável escola de Colónia, Due Ferrari, Nono, Stockhausen, Pierre Henri, Merton Subotnik, Ivo Mabec, Boulez etc..., e os grandes centros mundiais donde emana vastíssima obra musicológica localizam-se em Paris, Tóquio, Varsóvia, Utreque, Estocolmo e Nova Iorque.

            

6.5 - Schaeffer e a Música Concreta

            Intimamente relacionada, de passado comum, com a música electrónica está a música concreta que embora muita gente as confunda, se destacou hoje num ponto de vista formal. Não há dúvida que o seu grande teórico é Pierre Schaeffer. Começa por nos dizer que a música institui um instrumento novo: o microfone. A técnica é a tomada de sons, o fazer sons. A magia desta técnica é a mistura, a acoplação e a acumulação de sons.

            O potenciómetro é o modulador de formas (ele é que transforma as matrizes sonoras) os correctores e as filtros dão a transmutação da matéria sonora. As reverberações artificiais que consistem em impulsões isoladas criam o novo organismo desta música concreta. As transposições de matérias sonoras edificam o que ele chama de "fonógeno universal". As fontes da música concreta são os sons puros, sem espectro harmónico, sopros naturais, batimentos originais.

            Schaeffer formula então um inaudito tratado de objectos musicais concretos que consiste num catálogo/inventário de sons naturais próprios à transposição material e aos métodos desta transposição.

            A música concreta é, como a electrónica, uma música de laboratório e a banda magnética substitui os intérpretes e as orquestras. Os nomes que demos para a musicologia electrónica são os mesmos, ou quase, os da musicologia concretista. De evidência que grande parte das experiências da nova poesia concreta são simultaneamente criações de música e artes plásticas.

           

6.6 - Cage e a Revolução Experimentalista

            Até aqui, e neste relato sobre a musicologia contemporânea congeminada pelos próprios músicos, descrevi certo modus operandi das músicas mais formalizadas, esperando que a posteriori se possa fazer certos juízos. Mas a música não se altera simplesmente a partir da elaboração das suas matérias e da evolução das suas formas. Não só os musicólogos (não-músicos) nos mostraram este facto mas também um grande número de músicos de vanguarda se propuseram revolucionar a estética musical partindo de reflexões exteriores à música e utilizando os materiais sonoros de maneira desrespeitosa para a tradição académica, destruindo a torre de marfim em que a música intoleravelmente se ia fechando. Foi o que aconteceu ao teatro com as noções do Living-theatre, à poesia com Maiakovsky, às artes plásticas com Marcel Duchamp, ao cinema com Jodard, ao bailado com Isadora Duncan, à literatura com Erzra Pound, James Joice, William Burroughs ...

            Eric Satie, os negros do jazz New-Orleans, abordaram já no início do século esta irreverente formulação de estética musical. Mas nos dias de hoje John Cage, para o após guerra e Karlheinz Stockhausen para a mais viva vanguarda são mentores exemplares duma nova perspectiva de criar a música. Ambos são figuras polémicas e controversas e vamos então tentar definir a sua radical situação no nosso mundo musical.

            Cage é um revolucionário. Inspirado pela libertinagem de Varése, pela ousadia de Charles Ives, pela demência teosófica de Seriabine em primeiro lugar desvincula os instrumentos acústicos da tonalidade clássica - o que representa uma revolta anarquista contra a ideologia dominante da História da música: o sistema tonal e mais: o sistema serial que a tecnologia e o pensamento informático impuseram contra a tonalidade. A subversão de Cage, é pois, e essencialmente contra o cibernantropo, o homem unidimensional da sociedade electrónica.

            Para Cage o som musical é tão digno como o ruído, o objecto cultural é, logo, uma chamada imediata para a natureza. O compositor até Cage ordenava o discurso e agora passa a ser um mero artesão de sonoridades.

            A funk-music de Cage é organizada por sons parasitários e/ou desprezíveis. Cage revolta-se contra o colectivismo autoritário (dos partidos de direita e de esquerda) que favorecem demagogicamente o produto cultural medíocre e acessível. Abre um debate: vai contra a falsa hipocrisia de músicos e artistas que dizem dar a sua música ao público. Daniel Charles, o musicólogo anarquista que melhor divulgou e compreendeu a musicologia de Cage e dos experimentalistas, corrobora esta posição dizendo que a obra só é aberta ao público quando este teoricamente conhecer o que se vai passar na criação musical. O esoterismo da musicografia dominante é

brutalmente contestado.

            Cage está atento às diversas metodologias da criação musical planetária e vai buscar à India uma nova noção. Não lhe interessa na sua definição de intérprete apenas a representação teatral mas também o acto e prática do próprio actor.

            O intérprete fica, na música experimental, liberto de autoritarismo da composição e entregue à sua própria concepção da música. Desmassificado o conceito de música, o experimentalismo desequilibra a ordem dominante.

            Rebela-se contra as ordens sócio-políticas, as inibições do formalismo, os pudores obscuros da moral, a escravatura inconsciente aos media e às ideologias. A música experimental é provocação, excitação, insolência, acto do instante, simultaniedade vivida, anti-memória.

            Vai destruir as noções de consumo e arquétipo, basilares do neo-capitalismo, arrasa o estereotipo que marcou profundamente as nossas ideias, músculos, sistema nervoso. O insólito substitui o belo. É a música experimental eminentemente lúdica, satisfação imediata do prazer. A música de Cage é projecção miocinética da última personalidade, é informe, verdadeiramente anarquista. Como não implica pré-conceitos ela é aleatória, fruto do acaso, lagos da vertigem.

            A teoria da improvisação total é decisiva no experimentalismo de Cage e foi sempre uma significação distintiva, da música formalista que permanentemente se opõe a qualquer relação imprevista do acto de criar.

            As músicas ditas "repetitivas" americanas que impulsionaram o rock planante vêm do Oriente e triunfam na nova sociedade em palpitação cardíaca improvisada.

            

6.7 - A Metamúsica em Stockhausen

            Como se deve ter depreendido o que distingue a música experimental da música formalista é que esta em relação à música tonal clássica é uma rotura semântica (os sentidos gramaticais são revolucionados) e naquela processa-se uma clivagem semiológica (os símbolos são de diversa natureza). Não confundir que há música electrónica ou concreta experimentais. O que as diferencia é a relação entre os seus signos discursivos.

            Portanto voltamos à ancestral oposição entre empiristas e racionalistas, sensualistas e intelectualistas que hoje toma o nome de experimentalistas por um lado e serialistas e cientistas por outro. Chegamos então à altura de definir o conceito de metamúsica que centralizamos à volta da genial figura de Karlheinz Stockhausen.

            A metamúsica sobredetermina a problemática ambígua do espiritual/corporal. Os signos da metamúsica existem há muito tempo na história do homem, desde tempos imemoriais, correlativos, à experiência e à tentativa de imposição de formas novas. É, numa síntese, a realização metafísica de ritos.

            Stockhausen: homem decisivo nos remos da música contemporânea. As suas obras de música electrónica, de música concreta, de música electroacústica, de música dodecafónica, de música serial, de música experimental, são obras-primas de rara e privilegiada situação no panorama

da história da música.

            Mas o hiper-cerebralismo deste génio criador incansável e inesgotável em progresso estético volta-se para uma nova fase a que se dá o nome de metamúsica. Esta nova fase é corrosivamente vilipendiada pela crítica, pelos músicos, pelo público (numa palavra: pela musicologia geral).

            Dissemos sem receio: metamúsica. E lembramo-nos de Bachelard que dizia ser a metafísica a ilustração dum novo conceito.

            Há uma enorme corrente de pensamento que se liga à investigação cósmica, aos mistérios da ciência e da natureza, à própria formulação de hipótese de existência de outras formas de pensamento não-humanas, à experiência psicadélica que mobilize uma energia interior desconhecida - e esta corrente, em franco progresso não deixa, por isso, de ser excluída duma reflexão materialista.

            A metafísica (não identificada com teologia) renasce da incapacidade da ciência em explicar a existência e a liberdade. A metafísica é uma ilustração da Arte - todos os músicos de todas as culturas arquitecturam a noção de música dentro de conceitos imaginários. Isso aconteceu desde a música mágica ritual à musica religiosa até à actual metamúsica.(18)

            Repare-se no que diz Gaston Bachelard: "quando se atinge a perfeita abstração devem-se ilustrar os esquemas racionais com o imaginário filosófico." Este imaginário filosófico é o riquíssimo substracto da metamúsica. Stockhausen atingiu a perfeita abstração racional e voltou-se para outros problemas que a vulgaridade do pensamento dominante brutalmente sempre procurou ignorar: o enigma, o recital secreto de conjuntos sonoros formados por termos misteriosos.

            A metamúsica é uma perda provisória do sentido da música dominante, um horizonte de reapropriação circular (o eterno retorno) do sentido próprio. O sentido da música reconstrói-se a partir da consciência do músico, que é o centro

de toda a significação.

            Ao signo profundo da forma musical junta-se o signo sublime do poético, construindo um mundo essencial que ultrapassa o imediatamente significativo do matemático e da ciência positivista. Heidegger diz que "o acto verdadeiramente transformador consiste em fazer ver qualquer coisa no seu ser-conjunto, fazer ver qualquer coisa com qualquer coisa". A forma na metamúsica é um processo de aprofundar abismos insondáveis do conteúdo e portanto numa emersão efectiva deste. A visão do mundo, em Stockhausen, é beatífica, o som glorificado.

 

 7 - Da Música como Arte

 

            Perguntamos: o que foi que distinguiu a música do homem com os deslumbrantes sistemas de produção sonora natural? Precisamente: a música não tem utilidade em si, não implica forçosamente conotações afectivas simultâneas (ou seja: não exprime a simultaniedade, mas antes se organiza numa reprodutividade futura).

            Porque a música é uma arte - a sua função é eminentemente estética. Funciona dentro de critérios estéticos (as noções de belo) traduz a possibilidade de repetir as suas formas independentemente da situação afectiva ou utilitária. O que a música tem de "cultura" é o seu lado estético. Opinará um leitor sensível e intransigente: mas não há beleza no canto das aves, não haverá aí um sentido estético? O que esse leitor privilegiado pelo seu ouvido (e pode ser ele um camponês correctamente especializado na misteriosa linguagem das aves) conota como estético reduz-se a uma já complexa interiorização racional e sensorial de múltiplas linguagens acústicas que historicamente (na sua experiência vivencial) arquivou na memória auditiva e sistematizou através da inteligência.

            É o homem que estetiza o canto das aves e não o canto das aves que é intrinsecamente estético. E relembro a inspiração que o canto natural das aves tão proliferamente se encontra na história da música, desde as primitivas flautas indonésias à macro-estrutura serial da música de Olivier Messiaen.

            A música é recriação colectiva do imaginário, intersubjectividade em que o homem antecipa o repouso eterno da pulsão da morte.

            Todo o ruído foi/é susceptível de ser ouvido musicalmente pelo homem.

            Tudo isto é trabalho histórico - antropologia musical - a fazer, logo retrospectivo, mas também revolucionário e vanguardista nos seus conceitos,

logo prospectivo.

            Sobre a Arte só a Arte pode falar, e aí entendo - só posso entender - a musicologia como

uma experiência poética.

 

O Problema 

Da Obra Aberta 

Na Música Contemporânea

 

 "Dès lors, l'oeuvre est "ouverte" au sens où l'est un débat: on attend, on souhaite une solution mais elle doit naître d'une prise de conscience du public. L'ouverture deviant instrument de pédagogie révolutionaire"

Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, Éditions du Seuil, Paris, 1965, pág. 25.

 

"L'Art est toujours affirmatif"
H. Marcuse

 

  A nossa investigação vai partir do conceito de obra aberta tal qual o apresenta Umberto Eco nos livros Oeuvre Ouverte e A Definição de Arte. Eco considera que as composições de música instrumental caracterizam-se pela liberdade que concedem ao intérprete. Este não tem só, como na música tradicional, a faculdade de interpretar, segundo a sua própria sensibilidade, as indicações do compositor: trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num acto de improvisação criadora, ou seja, o intérprete de uma composição de música contemporânea não é o executante de uma obra totalmente pré-determinada em que toca da mesma maneira as vezes que for preciso, mas é, como o compositor, um criador. A improvisação torna-se desta maneira fundamental na determinação de uma estética para a música contemporânea. Mas podemos perguntar: que composições obedecem a este esquema? Umberto Eco responde dando-nos alguns exemplos, aos quais outros poderíamos acrescentar.(1)

            Portanto, o que se está a querer dizer é que as obras musicais contemporâneas não constituem mensagens acabadas e

definitivas, formas determinadas uma vez por todas. Não estamos mais perante obras que pedem para ser repensadas numa direcção estrutural já dada, mas perante obras "abertas", oeuvres ouvertes, que o intérprete concluiu no momento em que assume a mediação.(2) Eco vai explicitamente afirmar: "(...) toda a obra de arte, mesmo que seja forma acabada e "close", na sua perfeição de organismo exactamente calibrado, é "ouverte" pelo menos no que ela pode ser interpretada de diferentes maneiras sem que a sua irredutível singularidade seja alterada. Fruir duma obra de arte passa por dar-lhe uma interpretação, uma execução a fazê-la reviver numa perspectiva original".(3)

            Em cada obra o compositor prevê um resultado diferente para cada execução da obra, deixando-a dependente  da escolha do intérprete. De facto, a partitura tem um aspecto um tanto ou quanto invulgar, como uma grande folha contida numa moldura, feita propositadamente, sobre a qual surgem grupos de notas, como frases musicais nitidamente separadas umas das outras.(4)

            Na obra A Definição de Arte, Umberto Eco levanta um aspecto importante da relação música contemporânea-público: "enquanto certas experiências de obra aberta a uma fruição vaga exprimiam ainda uma sensibilidade de tipo decadente e um desejo de fazer da arte um instrumento de comunicação teoricamente privilegiado, os últimos exemplos de obra aberta a um complemento produtivo exprimem uma evolução radical da sensibilidade estética."(5)

            Os meios electrónicos não permitem "fazer música", no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos electrónicos o tentam, representam apenas música de substituição ... A nova produção sonora exige antes novas ideias criadoras de composição, e estas só podem provir do próprio som: da "matéria sonora"... Hoje, o compositor já não tem só que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades, com meios, quartos ou oitavos de tom, mas sim com frequências eléctricas de cerca de cinquenta a quinze mil vibrações por segundo, com mais de quarenta intensidades exactamente medidas e com uma imensidade de durações (centímetros de fita sonora) que saem do quadro habitual da notação.

            A exemplo do pintor, o músico passa agora a produzir a obra executando-a, o que neste caso, equivale a realizá-la em sons; a obra nasce no decurso da sua sonorização. O papel dos aparelhos electroacústicos já não é, portanto, o dos instrumentos: compõe-se para estes, tendo em conta as respectivas particularidades; mas compõe-se com aqueles, pois a sua função é de fabrico... "Manejar os aparelhos electroacústicos não desumaniza o músico, não mecaniza a música, antes humaniza os aparelhos."(6) Totalidade e continuidade definem o universo sonoro da música electrónica. Esse poder de fazer evoluir qualitativamente a matéria, de maneira contínua, o músico já não o limitará aos fenómenos sonoros de elaboração estritamente electrónica, se é que não o estende aos sons instrumentais e à voz: assim, pode atingir novas regiões de expansão e de diferenciação da matéria instrumental ou vocal, ligadas a novas formas.

            Para terminar, uma última citação de Umberto Eco sobre a obra aberta: "Trata-se, portanto, de compreender a obra como um organismo aberto; organismo, porque dotado de uma formatividade originária própria que não pode deixar de condicionar as escolhas efectuadas de entre uma gama de possibilidades; aberto, justamente porque a forma não obriga o fruidor a seguir uma direcção necessária, mas apresenta-se-lhe como campo de possibilidades."(7)(8)

 

Notas:

(1) Por exemplo, o Klavierstuck XI de Karlheinz Stockhausen, a Sequenza pour flûte seule de Luciano Berio, Scombi de Henri Pousseur e ainda a Troisième Sonate pour Piano de Pierre Boulez. Estes quatro nomes não estão aqui por acaso. Trata-se de quatro compositores contemporâneos que fizeram progredir a música contemporânea nos seus respectivos países: Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica e França.

(2) Eco tem a preocupação de nos tentar evitar um equívoco. Diz ele: "Il convient d'eliminer tout de suite une équivoque: l'intervention de cet interprète qu'est l'executant (le musicien qui joue une partition ou l'acteur que récite un texte) ne peut évidemment se confondre avec l'intervention de cet autre interprète qu'est le consommateur (celui qui regarde um tableau, lit en silence um poème ou écoute une oeuvre musicale que d'autres exécutent). Cependant, au niveau de l'analyse esthétique, les deux opérations peuvent être considerées comme des modalités différentes d'une même attitude interprétative: la "lecture", la "contemplation", la "jouissance" d'une oeuvre d'art représentent une forme individuelle et traite d'"exécution". La notion de processus interprétatif englobe l'ensemble de ces comportements". Ver L'Oeuvre Ouverte, pág. 38.

(3) Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 17.

(4) Stockhausen diz-nos o seguinte a propósito desta questão: "O intérprete olhará a folha sem intenções preconcebidas, ao acaso, e começará por seguir a parte do primeiro grupo que o seu olhar encontrar: ele próprio escolherá a velocidade, o nível dinâmico e o tipo de entrada em que este grupo deve ser articulado. Terminado o primeiro grupo, o intérprete lerá as indicações de velocidade, de dinâmica e de entrada, assinaladas no fim; depois, olhará, ao acaso, um outro grupo e tocá-lo-á de acordo com as tais três indicações...Cada grupo pode ser ligado a qualquer dos outros dezoito, de forma que poderá ser executado em cada uma das seis velocidades, das seis intensidades e das seis formas de entrada."

      Mostra-se aqui que é óbvio que a causalidade das escolhas torna possível uma infinidade de execuções diferentes, pois muitos grupos poderão não aparecer nunca no decurso de outras execuções, e outros aparecem mais do que uma vez na mesma. Todavia, uma coisa que não podemos esquecer. Os grupos são aqueles e não outros; o autor, ao estabelecê-los, orientou e determinou implicitamente a liberdade do intérprete.

(5) Umberto Eco ainda vai acrescentar dizendo que "Neste contexto, até fenómenos como os musicais, até agora ligados à relação apresentação-contemplação típica da sala de concertos, implicava uma fruição activa, uma co-formação, que, ao mesmo tempo, consiste numa educação do gosto, numa renovação da sensibilidade perceptiva. Se uma das razões da falta de educação estética do público (e, portanto, da clivagem entre arte militante e gosto corrente) está no sentimento da inércia estilística, no facto do fruidor ser levado a fruir apenas os estímulos que satisfazem o seu sentido das probabilidades formais (por forma a apreciar apenas melodias iguais às que já ouviu, linhas e relações o mais óbvias possível, histórias com um final habitualmente "feliz"), deve admitir-se que a obra aberta de tipo novo também pode constituir, em circunstâncias sociologicamente possíveis, uma contribuição à educação estética do público comum." Eco, Umberto - A Definição da Arte, pág. 159.

(6) Schloezer, Boris de e Seriabine, Marina - Problèmes de la musique moderne, com um prefácio de Xenakis, Ed. Minuit, Paris, 1959, pág. 24.

(7) Eco, Umberto - A Definição de Arte, pág. 172.

(8) Uma música nova tem necessidade de signos novos. A passagem da notação Gregoriana, à nossa escritura tradicional, depois a evolução desta, até à notação da música vanguardista, prova-nos bem o que acabo de dizer. Os problemas que se põem aos compositores da segunda metade do século XX são de duas espécies: Certos autores querem escrever com precisão as suas partituras. Querem dispor de um modo de escrita claro e inequívoco. Utilizam a notação tradicional à qual acrescentam signos novos, ou na qual certos signos são transformados. Os intérpretes devem aprender estes novos códigos, que variam algumas vezes de compositor para compositor.

      Outros autores rejeitam completamente a notação tradicional. As partituras consistem em gráficos, em desenhos, em fotos, que os intérpretes realizam em toda a liberdade ou tendo em conta as indicações do autor. O olho inspira a orelha. Esta notação é perfeita se o intérprete é capaz de improvisar e por conseguinte participar na criação da obra tanto ou mais que o compositor. A imensa diversidade de obras tem por consequência diferentes tipos de notação musical.

 

A Repetição 

Como Infra-Estrutura 

Do Devir Musical

 

"O minimalismo consiste em transformar

o quotidiano em arte."

 

Foi no dia 21 de Janeiro que teve início o ciclo de conferências ilustradas musicalmente levado a cabo pela Biblioteca da Escola Secundária Ibn Mucana. O primeiro encontro teve como objectivo o de dar a conhecer a música minimal repetitiva através de alguns dos seus principais cultores. Teve a duração duma aula lectiva e contou com a presença de 40 a 50 pessoas.

            Os anos após guerra, marcados por profundas mudanças sociais e de comportamento, tiveram um enorme impacto nos meios artísticos e culturais, quer na Europa, quer nos Estados Unidos. A experimentação, a inovação e a procura, por parte dos compositores e outros artistas, de uma linguagem marcadamente pessoal, levou ao aparecimento de uma diversidade de caleidoscópio de estilos musicais.

            A partir da segunda metade da década de 50, várias correntes se desenvolveram quer de carácter mais estruturalista, quer mais experimental. Um dos movimentos que se viria a revelar dos mais importantes no panorama musical dos Estados Unidos, tendo influenciado igualmente certos compositores europeus, foi o minimalismo. Este termo, utilizado inicialmente em relação às obras de vários artistas plásticos, passou a ser aplicado a certo tipo de composições musicais caracterizadas pela economia na utilização do material sonoro (melódico, rítmico ou tímbrico).

            O background musical deste movimento é bastante variado. As influências provêm, por um lado, de certo tipo de música contemporânea, na qual se começou a notar uma tendência para o isolamento de notas, concedendo-lhes uma importância primordial ao nível microcósmico sonoro; por outro lado, alguns compositores, manifestaram uma outra tendência, consistindo no prolongamento de notas de intensidade sonora reduzida, cuja actividade se desenvolve

num ritmo extramente lento.

            O interesse em culturas não ocidentais, por parte dos compositores e do público em geral, foi igualmente importante no aparecimento e desenvolvimento deste novo estilo de música. O minimalismo constitui também uma reacção contra a crescente  complexidade da música de vanguarda e um desejo por parte dos novos compositores de estabelecerem um contacto com uma audiência mais larga, para a qual as elaborações técnicas e composicionais do serialismo por exemplo, se apresentam praticamente incompreensíveis

a nível auditivo.

            Embora na última vintena de anos a composição de estilo minimal tenha sido aceite e praticada por muitos compositores, é na obra de La Monte Young (1935- ), Terry Riley (1935 -),  Steve Reich (1936 - ) e Philip Glass (1937 -) que podemos encontrar definidos com maior precisão os modelos teóricos e os conceitos fundamentais relacionados com a estática deste  novo estilo. Embora certos aspectos superficiais de algumas das obras destes compositores possam por vezes apresentar semelhanças, os processos estruturais de composição e as motivações de carácter estético são bastante diferentes mais isso é uma outra história que não cabe aqui analisar.

 

(Excertos da obra de Francisco Trindade)

 

+

Notas:

 

(1) Por exemplo o Klavierstuck XI de Karlheinz Stockhausen, a Sequenza pour flûte seule de Luciano Berio, Scombi de Henri Pousseur e ainda a Troisième Sonate pour Piano de Pierre Boulez. Estes quatro nomes não estão aqui por acaso. Trata-se de quatro compositores contemporâneos que fizeram progredir a música contemporânea nos seus respectivos países: Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica e França.

 

(2) Eco tem a preocupação de nos tentar evitar um equívoco. Diz ele: "Il convient d'eliminer tout de suite une équivoque: l'intervention de cet interprète qu'est l'executant (le musicien qui joue une partition ou l'acteur que récite un texte) ne peut évidemment se confondre avec l'intervention de cet autre interprète qu'est le consommateur (celui qui regarde um tableau, lit en silence um poème ou écoute une oeuvre musicale que d'autres exécutent). Cependant, au niveau de l'analyse esthétique, les deux opérations peuvent être considerées comme des modalités différentes d'une même attitude interprétative: la "lecture", la "contemplation", la "jouissance" d'une oeuvre d'art représentent une forme individuelle et traite d'"exécution". La notion de processus interprétatif englobe l'ensemble de ces comportements". Ver L'Oeuvre Ouverte, pág. 38.

 

(3) Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 17.

 

(4) Stockhausen diz-nos o seguinte a propósito desta questão: "O intérprete olhará a folha sem intenções preconcebidas, ao acaso, e começará por seguir a parte do primeiro grupo que o seu olhar encontrar: ele próprio escolherá a velocidade, o nível dinâmico e o tipo de entrada em que este grupo deve ser articulado. Terminado o primeiro grupo, o intérprete lerá as indicações de velocidade, de dinâmica e de entrada, assinaladas no fim; depois, olhará, ao acaso, um outro grupo e tocá-lo-á de acordo com as tais três indicações...Cada grupo pode ser ligado a qualquer dos outros dezoito, de forma que poderá ser executado em cada uma das seis velocidades, das seis intensidades e das seis formas de entrada."

      Mostra-se aqui que é óbvio que a causalidade das escolhas torna possível uma infinidade de execuções diferentes, pois muitos grupos poderão não aparecer nunca no decurso de outras execuções, e outros aparecem mais do que uma vez na mesma. Todavia, uma coisa que não podemos esquecer. Os grupos são aqueles e não outros; o autor, ao estabelecê-los, orientou e determinou implicitamente a liberdade do intérprete.

 

(5) Umberto Eco ainda vai acrescentar dizendo que: "Neste contexto, até fenómenos como os musicais, até agora ligados àrelação apresentação-contemplação típica da sala de concertos, implicava uma fruição activa, uma co-formação, que, ao mesmo tempo, consiste numa educação do gosto, numa renovação da sensibilidade perceptiva. Se uma das razões da falta de educação estética do público (e, portanto, da clivagem entre arte militante e gosto corrente) está no sentimento da inércia estilística, no facto do fruidor ser levado a fruir apenas os estímulos que satisfazem o seu sentido das probabilidades formais (por forma a apreciar apenas melodias iguais às que já ouviu, linhas e relações o mais óbvias possível, histórias com um final habitualmente "feliz"), deve admitir-se que a obra aberta de tipo novo também pode constituir, em circunstâncias sociologicamente possíveis, uma contribuição à educação estética do público comum."

      Eco, Umberto - A Definição da Arte, pág. 159.

 

(6) Sem mais explicações, penso que se compreenderá porque éque o dodecafonismo é o sistema musical de que na nossa análise tomaremos como ponto de partida. Os grandes mentores deste sistema foram no princípio do século Schoenberg, Berg e Weberg.

 

(7) A propósito do silêncio na música e da sua importância lembramos que John Cage tem uma posição bem vincada. Diz-nos o seguinte: "O que me interessa, é de longe, em relação a toda a coisa que acontece, é como é que seria se nada acontecesse. Neste momento, quero que as coisas que acontecem não apaguem o espírito que se encontrava já sem o que foi, acontecesse. Quando digo, em relação a esta coisa "sem o que foi acontecesse" é o que chamo o silêncio, quer dizer um estado de coisas livre de intenção, porque - por exemplo - temos sempre sons; e não dispomos de nenhum silêncio no mundo. Estamos num mundo de sons. Chamamos silêncio quando não experimentamos conexão directa com as intenções que produzem os sons. Dizemos que é um mundo silencioso, quando em virtude da nossa abstenção de intenção, não nos parece que haja muitos sons. Quando nos parece haver muito, dizemos que há ruído. Mas entre um silêncio silencioso e um silêncio pleno de ruídos, não há diferença realmente essencial. O que vai do silêncio ao ruído, é o estado de não-intenção, e éeste estado que me interessa".

      Cage, John in Charles, Daniel - "Alla ricerca del silenzio perduto" - notes sur le "train de John Cage" 26-28 Juin 1978, págs. 78-79.

 

(8) O exemplo mais bem acabado é o do compositor Iannis Xenakis, grego de naturalidade mas vivendo em Paris que numa dupla formação de músico e de arquitecto permitiu unir a matemática à música. Xenakis utiliza nas suas composições a teoria das probabilidades e é desta maneira um fiel discípulo de Pitágoras e da sua escola.

 

(9) É arriscado fazer uma declaração destas, mas éconscientemente que o fazemos e assumimos por isso o risco.

 

(10)Só para não citar outros, todos os outros do nosso ponto de vista.

 

(11)Logo económica, como não podia deixar de ser.

 

(12)Dialéctica materialista e não materialismo dialéctico... Não se trata dum jogo de palavras mas da única dialéctica que aceitamos, como a dialéctica de Proudhon e de Bakunine, dialécticas na origem dos movimentos libertários..

 

(13)Parte importante do aparelho ideológico musical.

 

(14)Como é o meu caso.

 

(15)Consultar as obras de Boulez.

 

(16)Na obra de Claude Samuel - Panorama da Arte Musical Contemporânea mencionada na Bibliografia, há um artigo inédito de Xenakis sobre a música estocástica.

 

(17)Discípulo de Le Courbusier, Xenakis foi com ele quem planeou o pavilhão de exposições de Bruxelas, e como se isso não chegasse, compôs uma composição "Metastasis" que utilizando regras matemáticas, traduz em música a geometria implícita no pavilhão.

 

(18)Compreende-se que não vamos desenvolver este aspecto, que é interessante mas que não cabe dentro do âmbito deste trabalho.

(F.T.)

 

- A p ê n d i c e -

 

"O fato de que quem filosofa - sobretudo quando se ocupa da dinâmica da formação e da realização do ser humano - dedique especial atenção a meditar sobre a essência da música, não é casual nem movido por "interesses musicais" pessoais. Essa atenção especial remete, antes, a uma grande tradição que remonta quase à origem dos tempos, a Platão, a Pitágoras e às doutrinas de sabedoria do Extremo Oriente.

E isto não se deve somente ao fato de a filosofia ter por objeto coisas "espantosas" (para as quais, como afirmam Aristóteles e Tomás de Aquino, deve especificamente voltar-se quem filosofa) - não é somente porque a música é mirandum, uma das coisas mais maravilhosas e misteriosas do mundo. Não é só, tampouco, pelo fato de que "musicar" é uma atividade da qual se poderia dizer que é um oculto filosofar - um Exercitium Metaphysices Occultum - da alma que, sem saber, filosofava, como diz Schopenhauer na sua profunda discussão para o estabelecimento de uma metafísica da música.

O que a música sempre traz - e este é o fato mais decisivo - ao campo de visão do filósofo é a sua proximidade da existência humana, uma característica específica que torna a música necessariamente objeto essencial para todos os que refletem sobre a realização humana.

A pergunta que especialmente fascina o filósofo que medita sobre a essência da música, é: o que propriamente percebemos quando ouvimos música? Pois, sem dúvida, trata-se de mais (e de outra coisa) que os sons resultantes do roçar as cordas do violino, soprar a flauta ou percutir o teclado – isto tudo ouvem também os mais insensíveis. O que é, então, o que propriamente percebemos, quando ouvimos música de forma adequada?

Para as outras artes essa mesma indagação propõe-se mais facilmente – ainda que a pergunta: "O que é que propriamente vemos quando contemplamos o Rasenstück de Dürer?" também não seja fácil de responder, pois certamente não é o céspede que se apresenta à vista, na natureza ou numa foto – não é este "objeto" que nós propriamente vemos, quando observamos um quadro de forma adequada. O que realmente percebemos quando ouvimos um poema, quando apreendemos a poesia de um poema? Certamente é mais (e é outra coisa) do que o que foi "objetivamente" proferido (isto tem sido identificado na poética como uma impureza, mas é uma "impureza" sem dúvida necessária).

Estas perguntas são, pois, igualmente difíceis de responder. Agora, porém, a pergunta: o que se capta quando se escuta música de "maneira musical"? Será que se trata de um objeto, como nas artes plásticas ou na poesia - onde sempre algo precisa ser representado, algo precisa ser dito (algo objetivo)? A questão não remte a um objeto neste sentido, mesmo quando até grandes músicos muitas vezes pensem que remeta. Não, não é uma "Cena junto ao riacho" ou uma "Tempestade" ou uma "Sociedade alegre dos camponeses" o que propriamente se capta quando se ouve a sexta sinfonia de Beethoven. E o que ocorre com a "Canção" (Gesang)? Não ficaria - pelo menos neste caso - por conta do texto proferido, o que propriamente percebemos quando uma ária ou um recitativo são cantados? Certamente, ouvimos as palavras. Mas percebemos – quando a música é autenticamente grande e quando a ouvimos de maneira certa – um sentido secretíssimo, acima das palavras, um sentido que não percebemos quando somente palavras ouvimos. Este "sentido oculto" não se encontra ao se ler, como algo falado.

O que é, então, que percebemos com a música ? A música «não fala de coisas, mas ascende "ao bem e ao mal" (Wohl und Wehe)» - como diz a sentença schopenhaueriana que condensa o que foi dito de diferentes formas através dos séculos. Não seria exato dizer que essa sentença expressa o que foi pensado pela grande tradição de pensamento, mas, sim, que ela abre uma via, que permite penetrar no núcleo desse pensamento. "Wohl und Wehe" é algo que se insere no âmbito da vontade, do querer, do bonum , do bem, entendido como sentido intrínseco da vontade: "querer" expressa aqui o bem.

Ao afirmar isto, precisamos estar atentos para equívocos de natureza moralista. O que queremos dizer é que o ser do homem é dinâmico; o homem não é simplesmente "existente". O homem "é" de tal maneira, que ele é um vir-a-ser – não simplesmente um ente que fisicamente cresce, amadurece, que gradualmente tende para a morte; mas também como ser espiritual está permanentemente em movimento. Ele próprio "acontece"; está "a caminho". E aquilo, em direção ao qual ele está a caminho (no qual ele "é": e de maneira alguma pode deixar de ser: o homem – consciente ou inconscientemente; quer queira quer não – está intrinsecamente a caminho, "sem ainda" ter chegado). A meta deste ser-a-caminho (Unterwegssein), para onde este movimento o impele, é o bem. Mesmo quando o homem faz o mal, o faz buscando um bem.

Quanto a para onde se dirige este insaciável movimento interior, esta inquietação irreprimível que é a última força vital deste ser fático, pode-se também dizer (e a grande tradição da sabedoria ocidental o disse!) que onde este ímpeto quer chegar é à felicidade; sobretudo no seu querer consciente, mas mesmo no mais profundo núcleo da vontade, queremos a felicidade: a isso queremos nos elevar!

Ao falarmos da vontade, incluímos o próprio processo de desenvolvimento, no qual – nos passos infinitamente ajustáveis do ritmo interior, em mil desvios reais ou aparentes – nos aproximamos da meta, sem nunca a alcançarmos. Ambos, meta e caminho, não são exprimíveis em palavras. Agostinho dizia «'Bem' – tu escutas esta palavra e respiras fundo, tu a ouves e suspiras». E ele afirma que o homem não pode exprimir em palavras o sentido mais profundo, a riqueza que se esconde na noção de ‘bem’, assim como sua completa realização: "Dizer, não se pode; calar, também não... Mas o que fazer, se não é possível falar e não dá para calar? Exultai! Jubilate! Levantai a voz sem palavras da vossa profunda felicidade!". Esta "voz sem palavras" (ou uma de suas formas) é: a música! Contudo, ela não é só a voz da felicidade, mas também a voz sem palavras da infelicidade, da carência pela ausência, da frustração, da tristeza, do desespero (a meta não é alcançável sem mais, pois pode ser íngreme e também pode ser dada por perdida!)". No desenrolar mais profundo da realização do ser, mesmo onde a linguagem não se expressa, encontra-se esse impulso natural (também do espírito!). "Daí se segue", diz Kierkergaard "que a música se acha relacionada à fala, tanto precedendo, como sucedendo, manifestando-se como primeiro e como último". A música produz um âmbito de silêncio; nela, a alma entra ‘nua’, por assim dizer, sem a "veste" da oralidade "que se enrasca em todos os espinhos" (Paul Claudel).

A essência da música, dizia, foi vista de muitas maneiras na tradição ocidental: como um discurso sem palavras do "bem e do mal"; como um manifestar-se sem palavras daquele processo da mais íntima auto-realização; como o devir da pessoa moral; como o querer em todas as suas formas; como o amor. Foi isto talvez que Platão quis dizer com a frase: a música "imita o movimento da alma"; e Aristóteles: a música é ordenada ao ético e semelhante a ele. Na sua esteira, acham-se as exposições de Kierkergaard, de Schopenhauer e de Nietsche – quando dizem que a música "expressa continuamente o imediato através do seu imediatismo", ou: de todas as artes, somente a música representa propriamente a vontade (Schopenhauer); ou: na música, soa "a natureza transformada em amor" (Nietsche, interpretando Wagner).

Ocorre então – apesar de tudo, pode-se dizer – que o processo de realização existencial interior do homem (que na música - como, por assim dizer, em sua "matéria" -, atinge sua expressão), que ambos - música e processo - também têm em comum isto: decorrem no tempo.

Mas "a música" não é um fazer impessoal objetivo; ela é "feita" completamente por compositores individuais e isto significa também que se podem distinguir milhares de formas diferentes de tais realizações interiores como criações musicais e (já que o devir interior da pessoa moral não é uma realização natural inabalável, mas uma realização que se dá sob a ameaça de incontáveis riscos e perturbações) também milhares de formas de falsificação, de distorção, de confusão. Pode-se representar musicalmente: a presunção banal que se satisfaz com a fácil obtenção dos bens mais vulgares; a negação da orientação fundamental do homem; o desespero da possibilidade de que a realização interna do homem possua um fim em si, ou que ele possa ser atingido. Pode também, como no "Doutor Fausto" de Thomas Mann, dar-se a música dos niilistas, cujo princípio é a paródia e realiza-se com o "auxílio do diabo e do fogo infernal na caldeira".

Precisamente este perigo ao se fazer música, estas possibilidades de degeneração já haviam sido observadas pelos antigos muito claramente, sobretudo por Platão e Aristóteles, que procuraram obstruí-las. Assim, a proximidade da existência humana como característica distintiva da música, não significa somente que os acontecimentos básicos da existência - tanto autênticos como inautênticos, justos ou injustos - estejam relacionados ao músico criador e sua obra: colocá-los em música. Não significa, tampouco, somente que exista música autêntica e grande, e inautêntica e banal e, como acontece do "outro lado", do lado do ouvinte, uma relação, por assim dizer, neutra, de captar ou não captar, de aplaudir, de concordar ou não concordar.

Não, a tal proximidade da existência humana significa muito mais: significa que a música expressa imediatamente o imediato dos processos humanos existenciais e o ouvinte, neste nível profundo, no qual a auto-realização acontece, é atingido e convocado. Nesta profundidade, para muito além de qualquer enunciado formulável, vibra imediatamente a mesma corda que também é tangida na música ouvida.

Aqui, vem à tona como e quanto a música tem que ver com a formação ou também com a frustração da realização humana – ambas antes de qualquer esforço consciente de formação, ensino e educação. Torna-se evidente também, a necessidade de uma preocupação com estes processos muito imediatos de influência – como a tiveram Platão e Aristóteles, enquanto nós mal podemos entender como esses grandes gregos, nos seus escritos éticos, ou mesmo nos políticos, trataram de música.

A música é, diz Platão, não somente um "meio para formação do caráter", mas também um meio para a "reta configuração das disposições da lei". "Vê-se a questão", assim diz no diálogo sobre o estado, "como uma mera questão de deleite, como se não pudesse causar dano algum"; o decisivo seria então o prazer do ouvinte; pouco importando se "moralmente presta para alguma coisa ou não", isto é, tanto faz que uma pessoa seja interiormente dirigida de modo reto ou não. Esta opinião é chamada, com grande seriedade, de mentirosa no trabalho de velhice de Platão, As Leis. Não é possível transformar a música sem que as mais importantes leis da vida do estado sejam afetadas. Isto foi ensinado - diz Platão - já por um famoso teórico da música entre os gregos (Damon) e ele está convencido de que é verdade. Evidentemente, não queria referir-se ao lado "jurídico" da constituição do estado, mas ao lado, sem dúvida real, da constituição interna da coisa pública, tendo em vista a realização do bem. Assim, reflete muito séria e pormenorizadamente sobre que formas musicais e mesmo que instrumentos devam ser banidos da comunidade; a Idade Média também conheceu até a época de Bach instrumentos "indecorosos". Os casos concreto não são aqui de maior importância; naturalmente há neles muito de específico da época. O que é decisivo, porém, é ver (e aplicar!) a conexão intrínseca que existe entre a música ouvida e tocada por um povo de um lado e, de outro, a existência interna deste povo – hoje não diferente do que no tempo de Platão!

Certamente nós pertencemos àqueles que, como diz Platão, enxergam todo o campo musical como uma "mera recreação" - enquanto, na verdade, a música efetivamente tocada e ouvida - junto com o ethos da existência humana interior - cai numa desestruturação calamitosa, quanto menos a pessoa se preocupa com sua realização autêntica. E os fatos constantemente encontrados mostram que nunca uma autêntica instância da possibilidade da ordenação da música omite o conteúdo de uma viva ordenação interior do homem.

Quem, então, dirige o olhar para a realidade empírica da vida comum e medita sobre como a mediocridade da alegria barata da música de "entretenimento" tornou-se um fenômeno geral e público, vê a correspondência fiel - no âmbito da existência interior - de sua banalidade de auto-enganar-se e apresentar o bem como já alcançado: "a gente vai tocando", no fundo "está tudo em ordem".

O mesmo se dá em quem considera o espaço que os ritmos de uma música primitiva de ruído, uma música "para escravos" (como diz Aristóteles) vai conquistando e exigindo - na medida em que ambas as formas (a música das "alegres melodias baratas" e a do ruído surdo) se legitimam como música de entretenimento, isto é um meio de preencher o vazio e a monotonia da existência. E mais: há aí um ciclo vicioso entre o vazio existencial e a banalização da música, um clamando pelo outro e ascendendo como acontecimentos públicos e gerais.

Nessa mesma linha, deve-se meditar também sobre a procura e o gozo de uma música possivelmente de nível incomparavelmente elevado como um meio de encantamento, de evasão da realidade, como uma espécie de pseudo-salvação, como um deslumbramento "de fora para dentro" (como disse Rilke) e que há música, mesmo grande música, que pode nos propiciar isto.

Quem finalmente reflete sobre o fato de que a paródia da criação, a música niilista do desespero de grandes virtuoses, não existe somente em romances como «Doutor Fausto», de maneira que foi possível dizer, com toda a seriedade, que a história da música ocidental seria a «história do desvirtuamento das almas»; quem, assustado, medita nisto tudo, tendo como base o fato de que na música, a existência interior se desvela em sua nudez e se mostra (e precisa mostrar-se) sem simulação; enquanto ela - a existência interior - recebe em troca, da mesma música, impulsos diretos, tanto construtivos como destrutivos; quem vê isto e pondera estes fatos, experimenta a sensação especial e nova de felicidade que dá a música de Johann Sebastian Bach (também ela, precisamente ela e ainda ela).

Certamente isto não acontece em nós assim sem mais, por si só: depende de nós percebermos o caráter desta música; experimentarmos este caráter na imediação de nossa alma, como resposta a cordas que vibram por sintonia – num energia nova, clara, fresca, da existência interior; na rejeição de meras realidades aparentes, na sóbria vigilância do olhar que, no gozo de harmonias arrebatadoras, não se afasta da realidade da vida atual . E no voltar-se perseverante, inabalável, esperançoso para o "Bem", bem sereno, cheio de graça, ao qual a música de Bach glorifica com sua "voz sem palavras" e sua bem-aventurada alegria sonante."

Josef Pieper
(Trad.: Sivar Hoepner Ferreira,
 de "Über die Musik" -  in Nur der Liebende singt, Schwabenvlg)

"As obras que vem sendo compostas desde as primeiras décadas do século a maioria dos ouvintes de música clássica desconhece.  A maioria dos ouvintes de música clássica desconhece a música do próprio tempo. É comum ouvir opiniões do tipo "isso não é música" ou similares, e essas opiniões vêm se repetindo desde as primeiras décadas do século, indiferentes às muitas mudanças de estilos de composição desde aquela época até hoje.
As últimas quatro ou cinco gerações constituem, na verdade, um estágio inédito na história da recepção musical do Ocidente: a "nossa" música, aquela que se ouve diariamente e faz parte da nossa vida, é a música do passado, um século ou mais para trás, e a música que está sendo escrita hoje fica para a platéia do futuro, se houver.
Num sentido estrito, pode-se aceitar o clichê de que a música contemporânea "não é música": não é mais a música escrita segundo os princípios que regeram a composição do fim da Renascença ao fim do romantismo. Não é tonal; não tem melodias (ou não como se está acostumado), não segue a lógica dos gêneros musicais estabelecidos.
Isso não quer dizer que não seja música, mas sim que o seu interesse foi deslocado para outros elementos e atende a uma outra lógica.
Desde o dodecafonismo de Arnold Schoemberg e o serialismo de seu discípulo Anton Webern, nas décadas de 1910-30, a música vem se metamorfoseando de modo instigante e com resultados tão convincentes quanto os de qualquer período, para quem tiver ouvidos para ouvir. Nos últimos anos, a composição tem incorporado com sucesso especial os computadores e instrumental eletrônico, muitas vezes em aliança com músicos ao vivo.
Mas o grau de inovação da música contemporânea (que exige um considerável esforço inicial do ouvinte para aprender novas linguagens), aliado ao desenvolvimento extraordinário dos meios de reprodução sonora (que deixam todo o repertório antigo ao alcance da mão) e da indústria de concertos (sempre voltada para um público mais tradicional), acabaram resultando num grande abismo entre os compositores e o público de hoje.
A situação é insólita. Como se leitores de literatura não lessem nenhum autor do nosso século, e apreciadores de artes visuais se recusassem a ver quadros contemporâneos. No caso dessas outras artes, a tendência é geralmente oposta: cultiva-se mais o atual do que o antigo. Mas não há perspectiva de reverter a curto prazo esse divórcio entre platéia e músicos contemporâneos, o que é uma pena.
Mesmo assim, nomes como Olivier Messiaen, Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez, Luciano Berio ou Giorgy Ligeti já se integraram ao cânone da composição, ombro a ombro com os mestres do passado. Acompanhar a obra dos compositores que estão inventando a música do nosso tempo é um prazer especial, que não deve ser ignorado por ninguém."

(A.N.)

 

bottom of page