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"A gente tem de sair do sertão!

Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro..."

(João Guimarães Rosa)

 

"P r o l o g â n c i a"

 

 

 

 

ou I n t r o d u ç ã o

À R e - S e n h a

Da O b r a de O . M .

 

"Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para cima - me disseram. Mas, de repente chegou neste sertão, viu tudo diverso diferente,  o que nunca tinha visto. Sabença aprendida não adiantou para nada... Serviu algum?"


O escritor mineiro João Guimarães Rosa paroleara, em carta de 25 de novembro de 1963, a Edoardo Bizzarri, então tradutor italiano de

Corpo de Baile:

 

'Sou profundamente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes talvez, como o Riobaldo do Grande Sertão: Veredas, pertenço eu a todas. E especulativo demais. Daí todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio existêncialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neoplatônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou...

Ora, você já notou, decerto, que como eu, os meus livros, em essência, são anti-intelectuais - defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo principalmente.

Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los:

 

  • cenário e realidade sertaneja:

  • 1 ponto

  • enredo:

  • 2 pontos

  • poesia:

  • 3 pontos

  • valor metafísico:

  • 4 pontos

 

Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanha de cinzas.

 

Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer. Sobre esta idéia antiga, os hermetistas árabes e judeus, entre outros, encheram bibliotecas de especulações místicas, na certeza de alcançar o divino pela pronúncia exata de seu nome.

 

No Sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde 'o interior e o exterior não podem mais estar separados'.

Nos meus livros tem importância, pelo menos igual ao sentido da estória, se é que não muito mais: a poética ou poeticidade da forma, tanto a sensação mágica, visual, das palavras, quanto a eficácia sonora delas; e mais as alterações viventes do ritmo, a música subjacente, as fórmulas-esqueletos das frases - transmitindo ao subconsciente vibrações emotivas sutis. Tudo em três planos (como os ensinos das antigas religiões orientais):

 

  • the underlying charm (enchantment)

  • the level-lying common meaning

  • the 'overlying' idea (metaphysic).'

 

Transplantarmos a 'sabença' rosiana à obra e estilística do compositor, multiinstrumentista, arranjador (e cantor) das Minas Gerais

O t a c í l i o  M e l g a ç o

seria um ato infalível a qualquer resenhista digno de assim ser chamado. Se um resenhista é, antes de tudo, um 'descrevedor minucioso': 'os lábios da sabedoria est(ar)ão fechados, exceto aos ouvidos do Entendimento' conforme o egípcio Hermes Trismegisto em O Caibalion.

 

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa só - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem."

 

Divisar o que denominaríamos

"O n i a r t e",

pois de João Guimarães a Otacílio, é um dos traços marcantes do Museu-de-Tudo melgaciano. E é por isso que falar sobre esse oni-artista contemporâneo é o mesmo que não falar exatamente d'ele, ou melhor, é o mesmo que resenhar a própria Arte em seus interenveredantes rizomas.

 

"A gente sabe mais de um homem é o que ele esconde."

 

Miro e vejo que (as imagéticas que rondam  o melgaciano, põem em evidência um pulular de símbolos de proveniências diversas que funcionam como advertências para chamar a atenção para a 'sobre-coisa. Sejam Calder ou Giacometti, Iberê, Escher ou Da Vinci...) Melgaço é um universalista, solidifica uma Obra que, por ser tão assombrosamente telúrica: é onipresentemente cosmopolitista - em mesma profusão. Há exemplos de seus engendros (os encontrarão a seguir) que vão da atmosfericidade do Sertão (Rosiano, ou: Melgaciano) dos Gerais até ao requinte e arrojo da música eletrônica; de peça para ballet com ares nipônicos até ao afro stabat mater; de écrans neo-jazzísticos a ecos de incontáveis etnias.  E assim sempre tem como ponto de partida: o deslimite e seus descolamentos...

 

"Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar."

 

Não tenho total certeza de que no capítulo 'Música Instrumental Brasileira', M.I.B. seja um código adequado a/de denotação entretanto o utilizarei como um mero 'atalho cognitivo'.

"Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido - porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo."

Recorrer aos nomes consagrados que se dedica(ra)m a tal gênero como, citando alguns com os quais há identificação (próxima ou quase) para com Melgaço: Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Heraldo do Monte, Djalma Correia, Ivo Perelman etc seria assumir ares natimusicológicos que aqui me parecem desnecessários. Por sinal, deslocaria com mais robustez meus holofotes a perfis (que houve no Brasil) não tão laureados pela mídia mas portadores de inquestionável inventividade e alvos de intenso flerte melgaciano como é o caso do Grupo Um dos irmãos Nazário.

O mesmo valeria a canibalizadas influências instrumentais internacionais: John McLaughlin, Keith Jarrett, Paul Bley, Miles Davis, Ralph Towner, Jan Garbarek, Pharoah Sanders, Sun Ra, Codona - das mais reconhecidas - e tantas e tantas outras.

Ressalva relevantíssima que faço está voltada a uma certa tendência ou clamor persistentemente imperialista (desculpem-me o termo) do denominado, no universo da música e do jazz internacionais, 'Brazilian jazz' (sic). A Música que tenho como Instrumental Brasileira definitivamente não é uma adaptação nacional do 'jazzismo norte-americano' apesar de infindáveis músicos brasileiros quererem, à la barrigas-de-aluguel, provar o contrário. Não obstante reconhecermos analogias possíveis em termos de alguns de seus elementos estruturais tais como o Fraseado e a Improvisação. Tanto ao citado jazz quanto à música academicista são alguns dos andaimes mas não o imperativo da Instru-mentalidade brasileira - que é, em seu cerne, miscigenante e autodidatista. Explico: o esprit autodidático, por sinal, paira por sobre alguns dos mais criativos instrumentistas nativos como (o fonalquimicamente apelidado: bruxo) Hermeto Pascoal que afirmava: 'Meu professor é meu dom'. Egberto Gismonti, o mais gabaritado contraponto aos (anti)hermetismos pascoais, apesar da notória decantada formação 'clássica', mantém vivo o mesmo afã através de vasta 'sintomatologia' que até mesmo passou por saudosos (a mim) experimentalismos próximos ao'free jazz' . Bem diferentemente do ícone da música instrumental de meu país, a Argentina, que é Astor Piazzolla - um homem apaixonantemente cerebralista, metodificante ao extremo, continuador (levando em conta toda a renovação que representou) de cânones europeus. Fato que, para sua criação, era admiravelmente salutar.

Deixemos a confecção de uma

Cartografia M.-I.-Brasílica

(que culminaria em nosso enfocado: O.M.)

para aqueles dados a aventuras enciclopedistas. Bem-vindas, aliás.

 

"O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior."

 

Ainda, en passant, sobre esse tópico - considerações (entre aspas) de Elisa Mori interpoladas por adendos (em itálico) meus:

'Quando o homem aplicou à música a sua engenhosidade intelectual, ela deixou de ser intuitiva, ganhando status de arte. A multiplicação dessa arte através de ferramentas tecnológicas aproximou-a a objetos de consumo de massa. Simples banalização ou justa democratização, essa sucessão de eventos tornou a música brasileira um produto cultuado interna e globalmente.'

                        A

arte musical de Otacílio Melgaço, reavivando o texto rosiano que inauguraminha Prologância, é intuitiva.

"A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro..."

                        Uma

intuição que está a priori da intelectualidade e a posteriori dela,simultaneamente. E talvez justamente por isso, renega qualquerperspectiva de ser objeto de consumo massivo. O artista permanece 'aurático'.

 

'A Árvore Genealógica da MPB (que engloba a M.I.B., Nota Minha) une as pontas desse conhecimento, na maior parte das vezes, fragmentado. De modo que a leitura mais proveitosa da Árvore é aquela que se faz sincronicamente, ou seja, considerando-se o espaço ao invés do tempo. O que encontramos, neste caso, é muito mais do que uma polifonia; é a co-existência funcional de expressividades artísticas diversas concorrendo para a formação de um contexto.'

                        A Arte contemporânea é sinônimo de Fragmentação. Todavia, Melgaço e seuMuseu-de-Tudo (pois também se dedica à Música Popular Brasileira, MúsicaErudita Contemporânea, Dramaturgia, Fotografia etc) tende àUbiqüidadeConcepcional, isto é, possui o requinte de uma Sincronicidade pluricultu(r)antecomo pedra-de-toque. Sua música é polifônica em vários níveis quepartem do fato de tocar inúmeros instrumentos até à realização de eclipsesfonopoéticos, fonodramáticos, fonofotogramáticos... A contextualização ésua válvula-mestra sinérgico-fragmentária, em outros termos: 'holística', 'absolutista'.

'Indiscutivelmente, a apreciação de uma obra de arte inicia-se de forma passiva. A contemplação imediata relaciona-se diretamente com o subconsciente do espectador.'

Se nos deparamos com a impressão/expressão musical de Otacílio Melgaço, a simultaneidade ativo-passivo é sim uma constatação, um truísmo. Inconsciente, Subconsciente e Consciente (prosseguindo a argumentação psico-analítica de Elisa Mori) adquirindo sinergia como um reflexo da tríplice veiculação inspirativa/expirativa do artista.

'No entanto, esse prazer (ou essa repulsa) pode ser prolongado ou modificado através de uma postura crítica consciente, profissional ou amadora, e livre de rígidas teorizações.'

Ao mesmo tempo, nosso enfocado pre-ocupasse continuamente - em seus lançamentos discográficos, sítios eletrônicos etc - com a Conscientização, eu diria a retomar a glossa, 'holística' de seu público. Hólos: a inteireza intuitiva, racional, corpórea, sensitiva, mental, sensorial, perceptiva e mesmo anímica a se dar entre o musicista e seus 'auscult(u)adores'.

'Apesar do enorme emaranhado de gêneros musicais em que se tornou a Árvore, é possível reconhecermos em cada nova estilização a base de sua expressão sonora.                  Tal como um movimento orgânico, a dança dos gêneros musicais obedece aos princípios de renovação, com o velho cedendo espaço ao novo. Felizmente, nem tudo se perde nessa reciclagem. A música concebida como manifestação do Belo e do ideal da liberdade oferece sua transcendência aos futuros criadores.'

"De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa".

Assim se torna uma prova viva (a música de Melgaço) da seguinte pontificação:

- O.M. é um renascentista contemporâneo, um renovador (demolidor/reconstrutor) pois, ao extinguir fronteiras estilísticas, vê-se essencialmente

- Iconoclástico, isto é, Senhor orgânico de uma expressividade plural e incondicionada que estipula essencialmente um eclipsamento fabuloso entre

- Transcendência e Imanência artísticas.

"Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito - o milmaravilhoso - a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar."

 

Retomemos por outro ângulo o Universo de Guimarães Rosa. Parafraseando Tânia Serra, em monografia A Viagem de Riobaldo Tatarana e reterritorializando-a a propósito nosso:

'Se encararmos o diálogo-monólogo como uma 'confissão' de Melgaço a seu público (suposto analista ou confessor), seria possível falar da música melgaciana como o lado inconsciente do interlocutor/Otacílio, o mundo interior - o 'sertão'. Uma série de pares opostos poderia ser inferida a partir dessa antítese, como: Natureza e Cultura, Caos e Cosmos, Mythos e Logos. De qualquer maneira, a Obra de Melgaço consegue causar catarse a seu ouvidor, e, portanto, cumprir a função iluminadora do mito, exatamente porque propõe a síntese desses pares antagônicos, tornando-se, ele mesmo, mediador num processo que tenta explicar o mundo, dando-lhe equilíbrio e sentido. Assim, é possível falar de um personagem Otacílio Melgaço, representante do último arquétipo do inconsciente coletivo que faltava aparecer para configurar o processo total de individuação: o Selbst. A viagem iniciática, empreendida pela musicalidade de O.M., evidencia, então, em seu nível mítico-simbólico, uma síntese operada entre opostos geralmente não sintetizáveis na cultura ocidental do século XX. É sobretudo como ordenação do mundo, tanto a nível individual quanto coletivo, que os engendros melgacianos identificam-se com o mito e a epopéia. E é na construção de um significado ontológico para este sentido, que é simbólico. Otacílio Melgaço, a quem também poderíamos nos referir como o paradigma do homem moderno que encontrou sua alma, numa referência à hipótese de Jung no ensaio 'Modern Man in Search of a Soul', encontra-a construíndo uma ponte que o liga à tradição, a volta ao começo. É a própria música que fornece ao mesmo tempo tradição e renovação, história e interpretação. Nesse sentido, ela é ideológica, pois o que propõe não deixa de ser uma antítese ao pensamento racionalista ocidental contemporâneo. Mas, o que mais importa neste âmbito, é que a interpretação do mundo, que nos propõe a estilística melgaciana, é a de que é possível efetuar-se uma síntese dos opostos, uma coniunctius oppositorum, e que isso (só) é possível através da Música. A realização dessa síntese, que atravessa diversos estágios durante o processo de individuação de Otacílio e sua Obra e(m) seus ouviventes, ou seja, de sua viagem iniciática, é veiculada pela musicalidade, 'porta para o infinito.'

 

Seria, para mim - resenhista, um desatino tentar espaço-temporalizar O.M. conduzindo-nos através de um discurso encarcerado em 'musicologuês' cifrado e pernóstico ou em pseudocastiço coloquial 'musiquês'. Meu linguajar, aqui, intrincado ou formalista em demasia representa um - às vezes - exaustivo Abre-te Sésamo que os convida, leitores/ouvidores, a me decifrar como prova de fogo para a decifração de Melgaço. Se é um preço alto demais a se pagar, já o foi há muitos parágrafos anteriores - fazendo com que os não dotados de fôlego ou ainda virginais/desavisados ao extremo ou 'blefadores' quanto ao meu Pulp Play assumissem a si mesmos instantaneamente e instantaneamente perecessem à própria vocação à entropia. Toda debandada traduzida como desistência (da exegese) é a mim ululantemente desejável e incitável porque preserva de modo mais arejado a quintessência do Luzidíaco. É quando estamos parafraseando, metaforizando, analogizando, entrelinhando (e tantos gerúndios outros) que mais nos aproximamos de quem ele, O.M., é - e do que concebe. Aos que não compreenderem isso, o merecido ostracismo aleijante da ultravigente claustrofóbica monocordia artístico-cultural global.

 

"A gente só sabe bem aquilo que não entende.
Quem desconfia, fica sábio."

 

Por isso e não só, além daquele decantado machadiano Assis do Cosme Velho; assim como o albino alagoano de Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca; Otacílio Melgaço também merece o brasão de Bruxo. Ou as armas de Louco. 'A loucura fascina - diz Foucault - porque ela é saber', um 'saber difícil, fechado, esotérico'. 'Esse saber, tão inacessível e tão temível, o louco o possui'. O saber aninhado na 'loucura' é algo a que os poetas sempre foram mais sensíveis do que aqueles que a encaram clinicamente, isto é, socialmente...nos diz Leyla Perrone-Moisés. No primeiro prefácio de Tutaméia, profere Guimarães Rosa: 'o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria'. É esse não-senso que a obra poética 'reflete por um triz'. Melgaço é um poeta dos sons, por isso pascoal e anti-hermeticamente bruxo e louco. E por ser bruxo e louco, um poeta, aquele que musicalmente está a 'ouvir as vozes da desrazão', as quais só se manifestam plenamente nas obras artísticas. Se, ainda a citar Leyla, os 'loucos' servem para demonstrar as incertezas do senso comum, os poetas servem para abalar as certezas da ciência e para ampliar o saber do inconsciente. Graças a eles, temos notícias de verdades - e veredas - que estão para além da razão, em alguma terrível ou maravilhosa continuação. Graças a eles, 'entendemos que'.

"Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?".

Na exploração da terceira margem do Ser Tão, ali onde se vislumbra uma bruxa ou louca - certamente poética - Philosophia Perennis, nos defrontamos com a expressão artística desse sonorista mineiro - oriundo de Belo Horizonte. Realizando as devidas transcodificações (Literatura>Música), poderíamos, dando a palavra ao insuperável autor de Grande Sertão: Veredas, ouvi-la reverberando da/na boca de Otacílio Melgaço:

 

'Eu não sei o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstói. No fundo, tudo isto não é importante. É um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas. Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o português, o latim, talvez até o esquimó e o tártaro. Queria a linguagem que se falava antes de Babel. Amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa. Isto é importante, pois sem esse amor pessoal, por assim dizer, não funciona. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Não gosto do transitório, do provisório. Gosto do Eterno. Todo grito, sobre ser, se estraçalhava, estragava, de dentro de algum macio miolo - era a começação de desconhecidas tristezas. Então, experimentei meu estilo. Mas, ainda haveria mais, se possível: além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso? Quer dizer, tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. Ademais, a música derretia o demorado das realidades. O que eu gostaria de poder fazer seria aplicar a minha interpretação de uns versos de Paul Eluard: 'o peixe avança nágua, como um dedo numa luva'. Então rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas. Modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições - no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe. A língua portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria. Está descalça e despenteada. É preciso distendê-la, destorcê-la, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão, exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores. E é preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas horas. A nossa literatura, com poucas exceções, é um valor negativo. Naturalmente palavrosos, piegas, sem imaginação criadora, imitadores, ocos, incultos, apressados, preguiçosos, vaidosos, impacientes, não cuidamos da exatidão. Quem pode, deve preparar-se, armar-se, e lutar contra esse estado de coisas. É uma revolução branca, uma série de golpes de estado. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. Por meu lado, escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. Fiz o caminho. Sem tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixei que o caminho me escolha. Na travessia, só silêncio. O nenhuns-nada. O alegre, mesmo, era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. Nessa estrada,

salvou-me a palavra.'

E salva-nos a música.

O s-om.

...o.m.

Minha conclusão arremata-se a/em si mesma.

De tão dotada de Mistério, de tão 'salvacionista',

de tão simbolicamente 'notívaga':

é

l u z i d í a c a

a Música de

Otacílio Melgaço.

A luz não é para todos,

somente para aqueles que podem

suportar a beleza de seu ofuscamento."

+

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