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"O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus 

É um mytho brilhante e mudo - O corpo morto de 

Deus Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo, 

Sem existir nos bastou Por não ter vindo foi vindo E nos creou.  

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. 

Em baixo, a vida, metade De nada, morre... Todo começo é involuntário, 

Deus é o agente. O herói a si assiste, vário 

E inconsciente. À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. 

“Que farei eu com esta espada?” Ergueste-a, e fez-se..." (Fernando Pessoa) 

 

 

Impertinente

P r e l ú d i o

 

 

       "Diante do encarecido pedido feito a mim por Otacílio Melgaço, amigo inestimável desde quando nos conhecemos em Buenos Aires nos meados dos anos 90, pouco restou para assumir eu a postura cândida entretanto incômoda de quem declina por correr o iminente risco de ter sua ‘suspeição’ – por si mesmo – ventilada. Como poderia textualizar confortavelmente um relato, resenha ou mesmo exegese de ‘Desiderium’ (sua primeira produção discográfica voltada para a Música Popular Brasileira) sendo que a estima que consagra nossa fraternidade nublaria a distanciada lucidez analítica que tanto me é exigida, clamada, invocada? Optei, então, pelo supremo e fruível desconforto que perenemente paira por sobre as (decapitáveis?) cabeças dos, em potencial, ‘inadiáveis suspeitos’.

Subversiva suspeição,

bem-vinda,

seja o pão nosso de cada

        d i a  a  d i a

        s o l  a  s o l

            renovar

        Desvendo, anti-ético?, um segredo metodologicamente concepcional: a mim disfarçarei de ‘bricoleur’ para, quiçá rearquitetando literária torre de babel,  desembocar em almejada unicidade temática.

        Em segundo lugar, minhas ‘contrações’ vernaculares são umbilicais à gritante modéstia do que aventuro ensaiar mediante ‘desiderato’ ensejo.

        E, finalmente, procurarei assumir – por picardia, espairecimento-de-espírito ou estimosa homenagem, nem eu mesmo saberia – uma postura mimética à própria estilística lexical do señor Melgaço. Tira la piedra y esconde la mano. Creio que meu fraternal ‘indiciador’ desaprovaria o que, mefistofamélico, revelo... porém nosso compromisso era de que, escriturasse o que escriturasse, ‘Serpenteamentos à Sesta de um Fauno’ permaneceria intocável, ‘incensurável’! Otacílio Melgaço se dedica também e profusamente à literatura (inclusive dramaturgia), assim como a outras manifestações artísticas às quais um mero e impertinente ‘prelúdio literário’ (toda sinestesia será permitida!) não abarcaria. Minha memória é seara, mesmo passadas algumas primaveras, de seu curta-metragem ‘Le Guide des Perplexes’, aventura airosa na tentativa de condensar referências bergmanianas e filosofia se-mí(s)tica. Travamos nosso inaugural contato exatamente na época em que sua primeira peça teatral – ainda inédita no Brasil? –  era transplantada para a língua alemã pelo renomado tradutor da obra de João Guimarães Rosa, Curt Meyer-Clason. Somente depois soube que se dedicava, heterodoxo, ao magistério musical e – derradeiramente – a compor, interpretar e instrumentalizar ‘Desiderium’. Conforme nosso pitoresco ‘histórico’, ter tal produção discográfica como proposto itinerário abordável é – para mim – como chegar à ponta (neste caso, surrealmente submersa) de um imagético e enigmático iceberg.

...à

s e s t a

d e

u m

F a u n o

 

“Entre todos os modos de expressão e de excitação, existe um que se impõe com um poder desmedido: ele domina, deprecia todos os outros(?), age sobre todo o nosso universo nervoso, superexcita-o, penetra-o, submete-o às flutuações mais caprichosas, acalma-o, destrói-o, prodigaliza-lhe as surpresas, as carícias, as inspirações e as tempestades; é dono de nossas existências, de nossos estremecimentos, de nossos pensamentos: esse poder é a Música, e ocorre que a música mais poderosa é soberana no exato momento em que  vivemos um estado nascente comprometido com o nosso destino ...

Música, ser diabólico e sagrado ao mesmo tempo. Culto, ensino, tóxico; realiza, como o faz uma função litúrgica aliás, a fusão de toda uma platéia onde cada membro recebe a totalidade do sortilégio, pois um milhar de seres reunidos que, pelas mesmas causas, fecham os olhos, sofrem os mesmos arrebatamentos, sentem-se sós consigo mesmos e, no entanto, identificados através de sua emoção íntima com tantos próximos que se tornaram realmente seus semelhantes, formam a condição religiosa (re-ligar) por excelência, a unidade sentimental de uma pluralidade viva.

         O maestro sobe à estante. Poderíamos dizer que ao altar, toma o poder supremo, e , na realidade, ele o toma, ele promulga leis, manifesta o poder dos próprios “deuses” da Música. A batuta é levantada: todas as respirações estão suspensas, todos os corações esperam...”.  

        Das escritoras brasileiras, a mais perenemente lisérgica – Clarice Lispector – perto de um selvagem e sonoroso coração. A fortiori rememoro suas ‘Notas sobre a dança hindu’.

       “O dançarino faz gestos hieráticos, quadrados, e pára. É que parar por vários instantes também faz parte. É a dança do estatelamento: os movimentos param as coisas. O dançarino passa de uma imobilidade a outra, dando-me tempo para a estupefação. E muitas vezes sua imobilidade súbita é a ressonância do salto anterior: o ar parado ainda contém todo o tremor do gesto. Ele agora está inteiramente parado. Existir se torna sagrado como se nós fôssemos apenas os executantes da vida.

          Esta é a dança do homem, que tem a ciência dos números e das alturas, e a quem uma veemência maior é permitida.

        Quanto à mulher hindu, ela não se espanta nem me espanta. Seus movimentos são tão continuados e envolventes como a imobilidade corredia de um rio. Tem as curvas longas das mulheres antigas. As cadeiras daquela ali são largas demais e reduzem as possibilidades de seu pensamento. São mulheres sem crueldade. E na dança muda renovam o primitivo sentido da graça. Mesmo a sensualidade é ainda a mesma graça, apenas um pouco mais intensa.

         A platéia mal tolera, tão monótona é esta dança já determinada há séculos. E também porque é iniludível o nosso mal-estar diante do Oriente: é um outro modo de saber a vida, o deles. E depois há o outro mal-estar: sente-se que eles não acreditam em nós. Há então certos movimentos dos dançarinos que desanimam todo o Ocidente. Eles acreditam em máscaras, acreditam num amor maior: são coisas antigas, serenas demais.

         O interminável programa que folheio anuncia agora que três mulheres dançarão ‘mostrando todo o encanto feminino’. Que decepção. As três mulheres que aparecem mal se movimentam. Procurava-se o ‘encanto feminino’, e vêem-se três mulheres se movendo tranqüilas, como se isso bastasse. E o pior é que de repente basta. Como se nos dissessem: eis aqui a fruta mais rara, e nos mostrassem a laranja de todos os dias. Surpreendida vejo que a laranja é rara entre as mais raras.

         Minha tendência a só ambicionar a saciedade espanta-se com o pouco que eles nos dão. Gordos e brancos, nós nos instaláramos nas poltronas, à espera das oferendas dos Reis Magos. Mas eles nos devolvem à nossa pobreza de saciados, tomando como tácito que a fome é simples. Dançam então sem malícia, expondo as costas a nossos dardos. A essa altura já temos vergonha de revelar-lhes que possuímos muito mais – não aquilo, é verdade, porém muito mais. Com um sorriso encabulado procuramos fazer as honras desse banquete de pobre, fingindo agradecidos que estamos comendo faisão. Com mal-estar, deixamos que nos descalcem e nos banhem com óleos. O que eles fazem sorridentes, límpidos, sem humildade. Será que o hábito antigo nos mandaria em seguida untar-lhes os pés escuros? Sinto que assim deveria ser. Mas o que me ofende é que eles nem sequer o esperam de nós.

         A dança é tão calma que pouco a pouco aprofunda as horas. O programa não terminará jamais? Amarrada pelo fato de já estar no teatro, eles me torturam sem pressa, mostrando pouco a pouco como pés nus têm a mesma inteligência indicativa das mãos, como a pele escura é mais certa, mostrando como é que se vivia atrás de uma Bíblia tão grande que até ímpia ela também é – fascinando-me com a repetição exaustiva da mesma verdade. Até que, de tanto olhar, compreendo especiarias, galeões, perfume de canela, e a importância dos rios se revela: as cidades se constróem ao lado de águas. O címbalo tem um som que passarei a chamar de ‘peregrino’. Os espíritos puros só podem ser invocados com címbalos. Em torno dos tornozelos e dos pulsos os guizos revelam em leve som as intenções mais delicadas do corpo.

          O programa impresso explica pacientemente o que sucederá no palco, eles não confiam na simples visão de nossos olhos. O programa fala do próximo número e diz, entre parênteses, que duas moças entrarão em cena jogando bola. Procuro em vão ao menos um gesto que simboliza a existência imaginária de uma bola. Até que eles me desarmam: sabem brincar sem brinquedo.

         Mas os nomes dos dançarinos são doces e maduros, fazem bem à boca. Mrinalini, Usha, Anirudda, Arjuna. Suavidades um pouco acres, estranhamente reconhecíveis: já comi ou não comi dessas frutas? Só se foi enquanto eu, Eva, entediada experimentava das árvores.

         Os músicos ficam sentados no próprio palco, sobre as pernas cruzadas yogamente. A música é um monólogo plangente, soa como o vento quando se tem um pouco de medo do vento. É uma melopéia invariável que foi transplantada de espaços maiores para o tamanho do teatro, assim como um animal de campo que dá voltas pacientes na jaula. O canto é leve, parece inventado apenas na garganta. E lentamente vai me adormecendo na cadeira, lentamente me hipnotizando em serpente”.

          O paralelismo entre o universo musical melgaçiano e a hierofântica parolagem de Clarice é, para mim, inevitável. Inolvidável. Inelutável. ‘Desiderium’ é um disco Oriental! Como reagir perante a proposta (ou desafio?) que nos faz? ‘Brincar sem brinquedo’... Hipnótico serpenteamento!

          João Guimarães Rosa, uma figura fundamental na vida de Otacílio, vereditava: “O Sertão está em toda parte”. Ao descrever o conceito que faço de Orientalidade, inverteria a ditosa, mística frase: ‘Toda parte está no Sertão’. Apossarmo-nos deste reverso é a ‘chave’ da compreensão do que aqui estou, esfogueada e escrupulosamente, a reiterar.

       Proponho aos benevolentes leitores um, em princípio, dulcíssimo enigma. Farei, a título de associativas ‘panoramicidades’ de minha argumentação, duas analogias (para com ‘Desiderium’) que acabam por ‘prontuariar’ vários espectros da mesma ‘chave’ à qual me refiro. Ojalá desvendá-lo se torne um ato menos adivinhatório, mais sagaz. Deixarei, como não haveria de ser de outra forma e sem mínimo remorso, a decupagem cognitiva do ‘exercício-de-seus-olhares’ – invocando semiótico emblema – a exclusivo cargo, essencial nadería, de si mesmos.

       A primeira aborda a História. A segunda, a Filosofia.

 

I

 

Absolutamente não é com idéias

que se fazem os versos...

É com palavras.

Mallarmé

 

  Se o sentido profundo das discussões especulativas e das polêmicas fosse pesquisado, perseguido nos corações por uma análise encarniçada, não há dúvida de que encontraríamos na raiz de nossas opiniões e de nossas teses favoritas não sei que princípio de decisões implacáveis, não sei que obscura e cega vontade de ter razão pelo extermínio do adversário... As convicções são ingênuas e secretamente assassinas.

Veja: pela aproximação de citações e de fórmulas precisas, como espíritos diferentes, partindo dos mesmos dados, exercendo suas virtudes críticas e seus talentos de organização imaginativa sobre os mesmos documentos – e aliás animados por um desejo idêntico de encontrar a ‘verdade’ (imagino) –, dividem-se, entretanto, opõem-se, repelem-se quase tão ferozmente quanto facções políticas, os historiadores...

Tornam-se, meio consciente, meio inconscientemente demasiado sensíveis a certos fatos ou a certos traços - e perfeitamente insensíveis a outros que atrapalham ou arruínam suas teses; nem o grau de cultura desses espíritos, sem a solidez ou a plenitude de seu saber, nem mesmo sua lealdade, nem sua profundidade parecem ter a menor influência sobre o que podemos denominar sua força de dissenção histórica.

Tantas certezas quanto pessoas, tantas leituras de textos quanto olhares... Cada historiador de uma época trágica nos mostra uma cabeça cortada que é o objeto de suas preferências... Evidências de que é impossível se separar o observador do objeto observado, e a história do historiador.

Entretanto há, em todos os livros de história, certas proposições com as quais os atores, testemunhas, historiadores concordam. São acasos felizes, verdadeiros acidentes; e seu conjunto - exceções notáveis - constitui a parte incontestável do conhecimento do passado.

Creio que, mesmo levando em consideração tais coincidências de consentimentos definitórios, não é possível uma definição da inteireza factual histórica...

É preciso escolher, convencionar não apenas a existência como também a importância de cada fato; isso é vital! Os homens só podem crer no que lhes parece menos afetado pelo humano, e consideram este acordo como muito improvável para eliminar suas personalidades, instintos, interesses, visão singular, fontes de erro e forças de falsificação.

A decisão sobre a importância do que será retirado do infinito pelo julgamento de sua utilidade posterior - relativa - introduz de novo na obra histórica exatamente aquilo que deveria ser eliminado. Valor subjetivo, filosoficamente falando. A importância está para o nosso discernimento assim como o valor dos testemunhos... Saiba que também estou fazendo as minhas convenções de importância...

A história, aliás, exige e implica muitos outros preconceitos. Veja a Cronologia. Lembro-me do velho sofisma: Post hoc, ergo propter hoc... A sequência dos milésimos tem o grande e restrito valor da ordem alfabética, a sucessão de acontecimentos ou simultaneidade só tem sentido em cada caso particular e nos limites em que esses acontecimentos possam, na opinião de alguém, agir ou repercutir uns sobre os outros... Avalio: a antiga Alexandria, em seu momento de grande brilho, estaria 3 ou 4 mil anos à frente de cabanas e casebres cujos habitantes são nossos contemporâneos...

Todas essas convenções são inevitáveis. Minha crítica é a negligência que não as torna explícitas, conscientes, sensíveis - tais convenções -, ao espírito. Lamento que não se tenha feito com a história o que as ciências exatas fizeram consigo mesmas quando revisaram seus fundamentos, pesquisaram com o maior cuidado seus axiomas, enumeraram seus postulados...

Talvez seja porque a história é principalmente Musa, e porque preferimos que o seja. Eu não tenho mais o que dizer, reverencio as Musas.

O Passado é algo totalmente mental. Imagens e crenças. Observe que usamos uma espécie de processo contraditório para imaginar as diversas figuras das diferentes épocas: por um lado, precisamos da liberdade de nossa faculdade de simular, de viver outras vidas além da nossa; por outro, é preciso impedir essa liberdade para levar-se em conta os documentos; e nós nos obrigamos a ordenar, a organizar o que aconteceu através de nossas forças, nossas formas de pensamento e de atenção, que são coisas essencialmente atuais.

Todas as vezes que a história se apodera de quem pensa historicamente, que se deixa seduzir para reviver a aventura humana de alguma época passada; o seu interesse é totalmente sustentado pelo sentimento de que as coisas poderiam ter sido completamente diferentes, poderiam ter acontecido de uma outra forma. A todo momento, se supõe um outro momento seguinte que não aquele que aconteceu: a todo presente imaginário e que se coloca, imagina um outro futuro que não aquele que se realizou.

Se, se, se... Sempre se...Tal pequena conjunção está repleta de sentido. Nela reside o segredo da ligação mais íntima de nossa vida com a história. Comunica, ao estudo do passado, a ansiedade e os mecanismos de espera que definem o presente. Dá à história a força dos romances e dos contos...

‘Se’ abstrairmos tal elemento animado, descobriremos que sua substância mesma; a história...pura, aquela composta apenas de fatos, desses fatos incontestados dos quais já falei; seria completamente insignificante, pois os fatos, por si, não têm significado!

Algumas vezes dizem: Isso é um fato! Inclinem-se diante do fato. É a mesma coisa que dizer: Creiam. Creiam, pois aqui o homem não interveio, e são as próprias coisas que falam. É um fato.

Sim. Mas o que fazer com um fato? Nada me parece tanto com um fato quanto os oráculos de Pítia, ou então os sonhos reais que os Josés, Daniéis, na Bíblia, explicam aos monarcas espantados. Na história, como em qualquer outra matéria, o que é positivo fica ambíguo. O que é real presta-se a uma infinidade de interpretações.

Por isso um De Maistre e um Michelet são igualmente possíveis... Talvez por isso assemelham-se a oráculos, adivinhos, profetas, dos quais tomam a envergadura e pedem emprestada a sublimidade da linguagem; enquanto conferem ao que aconteceu toda a profundidade expressiva que, na verdade, só pertence ao futuro.

Rever e prever, recuperar e pressentir...

O eterno presente é como o batimento entre hipóteses simétricas, uma que supõe o passado, outra que propõe o futuro. Talvez o melhor método para se ter uma idéia do valor e do uso da história consiste em tomar, como modelo de conhecimento, acontecimentos realizados, sua experiência própria, e em colher no presente o modelo de nossa curiosidade pelo passado.

O que vimos com os próprio olhos, o que fomos, fizemos, eis o que deve nos fornecer o questionário deduzido de nossa própria vida, que proporemos em seguida à história para que preencha, e ao qual ele deverá se esforçar em responder quando a interrogarmos sobre épocas em que não vivemos. Todas as abstrações e noções contidas nos livros são inúteis se não lhes fornecerem o meio de reencontrá-las a partir do indivíduo!

Considerando-se a Si mesmo historicamente - sub specie Historiae -, somos levados a um certo problema... Se a história não se reduz a um divertimento do espírito é porque esperamos retirar ensinamentos dela. Achamos que podemos deduzir do conhecimento do passado alguma presciência do futuro.

Tente transferir então essa pretensão para a sua própria história, e, tente comparar o que se passou com o que pode esperar do ‘vir-acontecer’, o acontecimento com a previsão...

Alguém no final do séc.XIX (raciocinando-se da época a conjuntura) poderia supor - quanto ao séc.XX - o que aconteceria na sua primeira metade? É por isso que me absterei de profetizar...

Entremos no futuro de marcha à ré! Eis a mais segura e importante lição da história, pois a história é a ciência (?) das coisas que não se repetem. As coisas que se repetem, as experiências que podem ser refeitas, as observações que se superpõem pertencem à Física, e até certo ponto, à Biologia, etc.

O Deus da religião-história se já não morreu, nunca existiu...entretanto o passado pode prevenir o homem contra imprevistos...sem a pretensão de criar e desafiar acontecimentos, entrevejo eu.

Hoje vivemos um estado tão complexo historicamente que não acredito que alguém possa se vangloriar de poder compreendê-lo! Noções do que poderia ser uma vida civilizada - considerações sólidas -, a desestabilidade das relações internacionais, novas ordens econômicas globalizadas, tudo...tudo o que poderia nos dar alguma confiança quanto ao amanhã está totalmente comprometido...

Leio e ouço de muitos historiadores somente palavras vagas, profecias contraditórias, garantias curiosamente débeis...

 O que sei é que nunca a humanidade reuniu tanto poder e desordem, preocupação, irresponsabilidade, conhecimentos e incertezas... A inquietude e a futilidade dividem nossos dias...

Cabe a cada um de nós: abordar a existência. Repensar para retomar... Devemos contar conosco, armar nosso espírito; não somente nos instruir...! Isso é apenas possuir o que nem sonhamos em utilizar, em anexar ao pensamento. Existem conhecimentos como existem palavras...

A vida moderna tende a poupar-nos o esforço intelectual... Substitui a imaginação pelas imagens, o raciocínio pelos símbolos e pela escrita ou por mecanismos; e, freqüentemente, por nada. Nos oferece facilidades, meios curtos para se atingir objetivos sem ter percorrido o caminho. Isso é ótimo: mas muito perigoso.

Há uma diminuição geral dos valores e dos esforços na ordem do espírito...

Por último: temo que a história não dê muita margem à previsão; mas associada à independência do espírito, ela pode nos ajudar a ver melhor”.

 

II

 

“A grande idéia de Minnelli (Vicente Minnelli – diretor cinematográfico norte-americano, 1902-1986) sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis.”

Gilles Deleuze

 

A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de ‘refletir-sobre’, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria razão para existir. Se existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo. É uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, em um belo dia: ‘Ei, vou inventar um conceito!’, assim como um pintor não se diz: ‘Ei, vou pintar um quadro!’...

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalho pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir... Um erudito nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso – e felizmente – que existe a filosofia.

Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza da criação. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Num primeiro sentido a comunicação seria a transmissão de uma informação. Uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, a justo título, ‘comunicados’. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação: à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle.

Michel Foucault analisara dois tipos de sociedades bastante próximas de nós: as de soberania e as disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para a disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A disciplinar definia-se pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais... Ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova e já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se (segundo o termo proposto por William Burroughs) de sociedades de controle. Aqui, aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o tratamento aos domicílios?  Sim, esse é sem dúvida o futuro. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e ‘livremente’, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. 

O que a obra de arte tem a ver com isso? Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Ela só se torna eficaz e efetiva quando é – e ela o é por natureza ou se torna – um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. Logo, não há relação entre obra de arte e comunicação. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. Não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. Porém qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo para relacionar-se minimamente com a arte? Não sei. André Malraux desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é boa. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa entre a repartição do profano e do sagrado. Esse ato na música culmina num grito. Assim como há um grito em Woyzeck, há um em Bach: ‘Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!’. Tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente ele resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob de uma luta entre os homens. Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte? A mais estreita possível e, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: ‘Pois bem, falta o povo...’. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. ‘Falta o povo’ quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e o povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe”.  

*    

         “Escrevo para meu prazer, não para a eternidade”.  Ao ler a frase de Ingmar Bergman, me pergunto até que ponto a eternidade exerce um indissociável matriarcado em relação, abarcando ampla acepção, ao prazer. “Um deus vem ao mundo e se aloja numa pessoa. Primeiro é apenas uma voz, um conhecimento, ou ainda uma ordem que pesa sobre essa pessoa. Ameaçador ou suplicante, repelente, mas também excitante. Ele se faz notar cada vez mais até a pessoa sentir sua força, até aprender a amá-lo, a fazer sacrifícios por ele, levando-a a uma devoção extrema, a um vazio total. Uma vez atingido esse vazio, o deus se apodera dessa pessoa, realizando seus atos por meio das mãos dela, após o que a abandona, deixado-a vazia, consumida, sem  possibilidade alguma de continuar a viver neste mundo. O espelho está quebrado mas o que refletem os pedaços? A barcarola é a suavidade da morte? No hallé cosa en que poner los ojos que no fuese recurdo de la murte... O ser humano tem dentro de si sua própria Santidade, que é deste mundo e não tem explicação fora dele...

        Na Grécia antiga o teatro estava indissoluvelmente ligado aos ritos religiosos. Os espectadores reuniam-se muito antes do nascer do sol. Ao raiar da aurora, os sacerdotes entravam em cena fazendo uso de máscaras. O palco, assim como um pequeno altar nele colocado, ficava iluminado pelo sol. O sangue do animal imolado era recolhido num prato enorme. Um sacerdote com uma máscara divina, dourada, mantinha-se escondido atrás de outros sacerdotes. Depois, quando o sol já ia mais alto, num momento preciso, dois dos sacerdotes erguiam o prato a fim de que os espectadores pudessem ver a máscara divina, dourada, refletida no sangue. Uma orquestra de tambores e flautas tocava, e os sacerdotes cantavam. Por fim, o sacerdote oficiante baixava o prato e bebia o sangue”.

         A arte poderia destituir-se  – pensemos em sua perenidade – da “necessidade fundamental do ser humano que é a necessidade de ser, de elaborar a sua identidade singular? Aqui não cabem a manipulação e a fábrica coletiva da subjetividade, mas a liberdade, a criatividade, a ousadia, o risco de trilhar caminhos difíceis, mas mais pessoais”. Como negar todo o contemporâneo vilipêndio do que a nós primordial e humanamente se faz necessário?

        Constato, não sem a importunação de um certo pavor sinérgico a escárnio, como se houvesse atualmente um (quase) axioma globalizante – uma impostura, reafirmo: coletivamente subjetiva, militaresca e inapelavelmente crível:

        “É proibido inclinar-se para o interior”.

(Não me furtaria o direito de exclamar, como somente o haveria de fazer em meu idioma: “La excusa que se esgrime es siempre la vulgaridad de la vasta mayoría del público. Insisto en que esto es absolutamente falso. El público es infinitamente superior a la basura com que se alimenta diariamente. Las masas han sabido siempre donde encontrar auténtica ‘poesía’. El malentendito lo han provocado únicamente esos intermediadores de la cultura que con sus distinguidos aires de grandeza se interponen entre el creador y el público”)

        Do ovo da serpente bergmaniana ao anjo exterminador, Don Luis Buñuel: “Sou revolucionário mas a revolução me aterroriza. Sou anarquista mas me oponho totalmente aos anarquistas. Sou sádico mas uma pessoa absolutamente normal. Como ateu que sou: tudo que não é cristão me é estrangeiro. ‘Never trust the artist, trust the tale’. De vez em quando é saudável blasfemar contra aquilo em que acreditamos. Aquele que profana, acredita... O contrário de uma verdade não é uma mentira mas uma outra verdade”. À iconoclastia inerente à arte ainda resta uma esperança, o último suspiro, espasmódico alento? E ao homem que heroicamente ainda ‘se inclina para’ o próprio sentido destinável ao poliédrico léxico ‘Interior’ (sua eu-profundidade: paridora da possível ‘tribo-da-sensibilidade’ alardada por um pertinente José Saramago)?        

        “Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poder-se-ia, com mais acerto, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada.

        Uma estudante brasileira voltou-me em lágrimas após sua primeira viagem à França: Paris lhe parecera suja, com seus prédios enegrecidos. A brancura e a limpeza eram os únicos critérios à sua disposição para apreciar uma cidade. Mas essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, essa vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplação e de reflexão, e não mais em simples instrumentos da função urbana – as cidades americanas nunca chegam a tal. (...) Para as cidades européias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal”. Por qual sintomática razão, tal explanação (que poderia nos teleaportar em tristes embora não menos oraculares trópicos) de Claude Lévi-Strauss jamais deixaria de assombrar minhas proposições como uma metáfora implacável?

        Pois, inexoravelmente, ‘Desiderium’ – seus oito (ou seriam, após toda audição, em realidade: nove?) prelúdios, suas quatorze canções e infinitos setenta e quatro minutos são cúmplices, reverbero o franco etnólogo, da ‘civilização até culminante avançada idade’ (outra metafóra) ofertando-nos sonoramente “essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, tamanha vida sem idade”. Otacílio Melgaço metamorfoseia cerceante cronologia em “promoção” maturada – desembocando-a em “contemplação” e “reflexão” substancialmente ontológicas. Seu autor não é um mercante cronista, e sim um menestrel. Absolve-se da perfumaria cotidiana (tem horror ao ‘efêmero’) para almejar o Eterno – refúgio das Musas, esteio da Música...

        Tomei singular macrocosmo como ponto dissertativo para retomar o nascedouro de meu intento em ‘Serpenteamentos...’: narrar minha experiência de, ao ouvir a referida e deleitável produção discográfica, assumir uma postura manifestamente explícita – e, neste sítio tecnológico, declaradamente pública – perante tudo a que me remeteu.

        “O objetivo das palavras é transmitir as idéias. Quando estas são apreendidas, as palavras são esquecidas. Onde poderei encontrar um homem que se esqueceu das palavras? Com ele é que gostaria de conversar.” O artista oriundo das Minas Gerais engendra músicas para que com elas possamos travar um longo diálogo por meio de idéias... Há uma epístola que ele me destinou há um par de anos que reflete o que acabo de relatar. Nela, o mesmo mentor de ‘Desiderium’ reproduz um texto de Jorge Luis Borges e o transfigura, com sutileza minimal, ‘rosianamente’... Locomove impregnáveis impressões de meu compatriota para ‘sua’ Cordisburgo. Não sem uma pitada peculiar de ironia (como, por exemplo, na utilização pletorizada que faz das expressões latinas) mesclada à limpidez de seus anseios, diria, para comigo, ‘metonímicos’. Com seu contrariadíssimo consentimento, aqui a transcreverei:  

 

       “A ALMA EXERCITADA PARECE QUE O ENTENDERÁ...”

  Pablo,

...mellizo...

Quando sertanejo, penetro no Oco-do-Tempo... quero registrar aqui uma experiência sub specie aeternitatis que tive noites atrás: ninharia demasiado evanescente e sentimental para pensamentação. Trata-se de uma cena e de suas palavras: ‘cenapalavras’ já anteditas por mim mas não vividas até então com a inteireza da dedicação do meu logo-eu. Passo a narrá-la, com os acidentes de temporalidade e de lugar que a declaram. ...immediata et lucida fruitio rerum infinitarum...

Lembro-me dela assim-assim. Na tarde que precedeu à essa noite, estive em Cordisburgo: localidade (no mais derrepente tão bonita) que não costumo visitar e cuja distância das que percorri depois, já deu um estranho sabor a esse dia. Divina bonitas consummabit malitiam, aeterna vita absorbebit mortem, beatitudo miseriam. Sua noite não tinha destino algum - o desdestino -; como era calma, depois que jantei saí a caminhar e recordar. Não quis dar rumo à essa caminhada; procurei uma latitude máxima de probabilidades para não cansar a expectativa com a antevisão obrigatória de só uma delas. Mal realizei, na tutaméia medida do possível, isso que chamam caminhar ao acaso; aceitei, sem outro prejulgamento consciente o deixar de lado as mais óbvias ruelas e vias mestras, os mais obscuros convites da casualidade. Melgaçiei... Contudo, um tipo de gravitação familiar afastou-me para alguns bairros, de cujo nome quero sempre lembrar e que meu peito reverencia. Não quero dizer com isso ‘o meu bairro’, o âmbito preciso da infancialucinação, mas suas ainda misteriosas imediações: confim que possuí inteiro em palavras e pouco em realidade, vizinho e mitológico a um só tempo... quia voluit. O reverso do conhecido, suas costas, são para mim essas ruas penúltimas, quase tão efetivamente ignoradas como o alicerce soterrado de nossa casa ou nosso invisível esqueleto. A caminhada me deixou numa esquina. Aspirei a noite, numa valiosa entrelinha do pensamento. A visão, por certo nada complicada, parecia sim-plificada por meu cansaço. Sua própria tipicidade a tornava irreal. O tudo, os tudos... A rua era de casas baixas e, embora sua primeira significação tivesse sido de pobreza, a segunda era certamente de felicidade. Era o que há de mais pobre e mais lindo. Nenhuma casa chegava até à rua; a figueira se ensombrecia sobre a oitava; os portõezinhos - mais altos que as linhas alongadas das paredes - pareciam trabalhados com a mesma substância infinita da noite. A calçada era bem mais alta que a rua; a rua era de barro elementar, barro-da-América-ainda-não-conquistada. Ao fundo, o beco, já agreste, se desmoronava em direção ao tempo circular. Palimpsiquice. Aeternitas est merum hodie, est immediata et lucida fruitio rerum infinitarum... Sobre a terra turva e caótica, uma taipa rosada parecia não abrigar luz de lua, mas difundir luz íntima. Não haverá maneira melhor de denominar a ternura que esse rosado.

Fiquei olhando essa simplicidade. Pensei, certamente em voz alta: Isto é o mesmo de alguns anos atrás... Considerei essa data: época recente em outros países, mas já remota neste inconstante lado do mundo... Trans-ladado lado.

Toto coruscat trinitas mysterio fulge... Talvez um pássaro cantasse e senti por ele um carinho pequeno, um carinho do tamanho de um pássaro; mas o mais certo é que nesse já vertiginoso silêncio não houve outro ruído senão o também intemporal dos grilos. O fácil pensamento ‘Estou em mil novecentos e tantos’ deixou de ser umas quantas palavras aproximativas e se aprofundou na realidade. Senti-me morto enquanto senti-me conhecedor abstrato do mundo: temor indefinido imbuído de ciência que é a melhor clareza da metafísica. Jam redit et virgo, redeunt Saturnia regna... Não, não acreditei ter remontado às presumíveis águas do Tempo; antes imaginei-me possuidor do sentido reticente ou ausente da inconcebível palavra eternidade. Só depois consegui definir essa concepção.

Escrevo-a agora assim: essa pura representação de fatos monogêneos - noite em serenidade, paredezinha límpida, cheiro provinciano de madressilva, barro fundamental - não é apenas idêntica à que houve nessa esquina há tantos anos; é, sem semelhanças nem repetições, a mesma. O tempo, se podemos intuir essa identidade, atemperadamente é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje, bastam para desintegrá-lo. Aeternitas a parte ante...

É evidente que o número de tais momentos humanos não é infinito. Os essenciais - os de gozo e sofrimento físicos, os de aproximação do sono, os da audição de uma música, os de muita intensidade ou muito fastio - são ainda mais impessoais. Derivo antecipadamente esta conclusão: a vida é rica demais para ser também mortal. Mas nem ao menos temos a certeza de nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável no sensível, não o é também no intelectual, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão. Claraevidência/Clarividência... Non in tempore sed cum tempore incepit creatio. Fique então no episódio emocional a idéia vislumbrada e na irresolução confessa desta folha o momento verdadeiro de êxtase e a insinuação possível de eternidade de que esta noite não me foi avara... Sagarana-teia.......

Coraçãomente,

Otacílio Melgaço

31 de janeiro de 1998”

 

           Até o presente momento, ao reler insaciable mapa, não tenho a mais resoluta das convicções...: encontro-me diante de palavras ou de idéias; de idéias ou, como suspeito eu – e espero que me faça entender –, ‘de uma partitura musical’?

           “A claridade da aurora foi quase nada em comparação ao sorriso que iluminou aquele rosto perturbado. Alguns dias mais tarde, revi esse mesmo sorriso, apenas mais velado, mais ambíguo: durante a ceia, Polemon, que se ocupava com a quiromancia, quis examinar minha mão, a palma onde uma surpreendente chuva de estrelas assustava a mim próprio. Retirei-a, fechando-a com um gesto suave, quase pudico. Pretendia guardar o segredo dos meus planos e de mim-mesmo”. Uma definição mais tátil – não obstante mais desafiadora – não só das músicas, idéias e palavras perfazedoras da incipiente obra de Otacílio como, óbvia dedução,de seu diáfano portrait...

          Ampliando meu propósito que é margear qualquer pronunciamento, fuero juzgo, a mim ‘convocado’ –  assumo o intuito de singularmente sugerir um ‘desiderioso enveredamento’ sonoro a todos que, agraciáveis por tamanho fôlego, permanecem benevolentes para comigo (um impertinente, desarvorado escrevinhador) – ao tentar angariar uma outra possível ‘pontualidade’ melgaçiana e, por conseguinte, de sua Música. Dmitri Merejkowski em sua ‘biografia romanceada’ de Da Vinci, fantasia o que seria um diálogo entre Leonardo e Niccolo Machiaveli.

 “Vindo do lado do Capitólio e penetrando por sob o Arco, o sol iluminava o desfile triunfal dos imperadores com os seus últimos raios purpurinos através da fumaça azulada e mal cheirosa das cozinhas, semelhante à nuvens de incenso. E o coração de Niccolo contraiu-se, dolorosamente, quando, pela última vez, tendo se voltado para olhar o Fórum, avistou o róseo reflexo do sol-pôsto sobre as três colmas solitárias de mármore branco, diante da igreja de Maria Liberatice. O badalar desalentado e senil dos sinos, a canção vespertina da Ave Maria, pareciam um lamento fúnebre pelo Fórum Romano. Entraram no Coliseu.

- Sim, - disse Niccolo, ao contemplar os gigantescos blocos de pedra que formavam as paredes do anfiteatro, - aqueles que sabiam construir tais edifícios não eram da nossa espécie. É só aqui em Roma que se sente a diferença entre nós e os antigos. Que possibilidade temos nós de rivalizar com eles? Não podemos nem mesmo imaginar que espécie de homens foram!...

- Parece-me - respondeu Leonardo Da Vinci lentamente, como num grande esforço, saindo do seu devaneio, - parece-me, Niccolo, que não tendes razão. Os homens de agora não possuem alma menor que a dos antigos, mas, sim, de natureza diferente...

- Acaso vos referis à resignação cristã?

- Sim, a resignação...

- Talvez, - concordou Machiavelli friamente.

Sentaram-se, para descansar, no degrau inferior, meio arruinado, do anfiteatro.

- Afirmo, - continuou Niccolo, num súbito desabafo, - afirmo que os homens deveriam ou aceitar ou rejeitar Cristo. Não fizemos nem uma coisa, nem outra. Não somos nem cristãos, nem pagãos. Afastamo-nos de uma margem, mas não alcançamos a outra. Para ser justos, não temos força suficiente; quanto a ser maus, o medo não no-lo permite. Não somos brancos nem negros - apenas cinzentos; nem frios nem quentes, - simplesmente mornos. Mentimos tanto a nós mesmos, tornamo-nos tão pusilânimes, tão irresolutos, coxeando de ambas as pernas, entre Cristo e Belial, que agora nem mais sabemos o que queremos, nem para onde vamos. Os antigos, - eles, pelo menos, o sabiam, e faziam tudo até o fim, - não dissimulavam, não ofereciam a face direita, quando a esquerda era esbofeteada. Mas, desde que os homens começaram a acreditar que, para gozar de felicidade no céu, deviam suportar toda a espécie de injustiça na terra, um campo vasto e seguro se abriu para os canalhas. E, na realidade, o que foi, senão essa nova doutrina, que tornou o mundo impotente, e o atirou como uma vítima, às mãos de abomináveis celerados?

A voz tremia-lhe; os seus olhos brilhavam de um ódio quase insano; a fisionomia se lhe havia alterado, como pela ação de um sofrimento insuportável.

Leonardo permanecia em silêncio. Passavam-lhe pela alma pensamentos radiosos, infantis, tão simples que não seria capaz de exprimi-los com palavras: contemplava o céu azul a brilhar entre as fendas das paredes do Coliseu, e pensava que em parte alguma o azul dos céu parece tão alegre e triunfalmente jovem como entre as ruínas das velhas construções.

Não contradisse Machiavelli, sentindo que ele o não compreenderia, pois o que era alegria para ele, Leonardo, era tristeza para Niccolo; o que sabia a mel para um, sabia a fel para o outro, pois o grande ódio é também filho do grande conhecimento. (Assim como o grande amor?)...

Quereis que vos diga uma coisa, Messer Leonardo? - perguntou Machiavelli, desejando rematar a conversa, como era seu hábito, com uma pilhéria. - Somente agora percebi quão enganados estão aqueles que vos julgam herege e ateu. Lembrai-vos das minhas palavras: no dia do Juízo Final, quando eles nos separarem, quando separarem as ovelhas dos bodes, vós estareis, seguramente, entre os humildes cordeirinhos de Cristo, estareis, por certo, no Paraíso, entre os puríssimos Santos!

Mas quanto a vós, Messer Niccolo, - interrompeu-o o artista, a rir, - não escapareis, positivamente, se algum dia eu chegar a entrar no Paraíso. Oh, não, este vosso humilde criado vos agradece! Cedo o meu lugar, de antemão, àqueles que o quiserem. O tédio deste mundo já me é suficiente...

E o seu rosto, subitamente, se iluminou de cordial alegria: - Ouve, meu amigo, a espécie de sonho que tive certa vez: parecia-me que me haviam levado para uma reunião de maltrapilhos famintos e sujos, monges, prostitutas, escravos, aleijados e idiotas e lá se proclamou que aquelas eram as criaturas das quais se havia dito: “Bem-aventurados os pobres de espírito; porque deles é o reino dos céus.” Conduziram-me, depois, a um outro lugar, onde deparei com um grupo de homens de aparência majestosa: homens como os do antigo Senado. Lá estavam chefes militares, imperadores, papas, legisladores, filósofos: Homero, Alexandre o Grande, Platão, Marco Aurélio. Conversaram sobre arte, ciência, política. E disseram-me que aquilo era o inferno, e aquelas as almas penadas, abandonadas por Deus por terem amado a sabedoria do seu tempo, sabedoria era loucura diante do Senhor. E perguntaram-me se eu iria para o céu ou para o inferno. ‘Para o inferno!’ - gritei eu. ‘Naturalmente que para o inferno: para junto dos sábios e dos heróis!’         

- Bem, se a coisa é assim como sonhastes, - observou Leonardo, - é provável, que também eu não fizesse objeção...

- Oh, não: é tarde demais. Agora já não podeis torcer caminho.  Eles vos arrastarão à força. Pelas vossas virtudes cristãs, eles vos recompensarão até mesmo com o próprio Paraíso.

Já havia escurecido quando deixaram o Coliseu”.

  Oferto o timbre de ‘maquiavélico’ a meu (brasileiro e, antes mesmo de brasileiro) mineiro amigo? Ou de ‘davinciano’? De ambos? Tomo a posição de sofista e renego cotejos? Quizá? Perante sua música -  indefectivo - me apercebo em similitudes para com o felino rilkeano. Subverteria o título original do poema, a citar Décio Pignatari, e assumiria “Panteros” mais justa adequação?

 

“Varando a grade, a nada mais se agarra

o olhar tomado dum torpor profundo:

para ela é como se houvesse mil barras

e, atrás dessas mil barras, nenhum mundo.

Seu firme andar de passos gráceis, dentro

dum círculo talvez muito apertado,

é uma dança de força em cujo centro

ergue-se um grande anseio atordoado.

De raro em raro, só, o véu das pupilas

abre-se sem ruído - e deixa entrar

a imagem, que sobe pelas tranqüilas

patas, ao coração, para aí ficar”  

Aos corações...

“...‘Diga-me’, retrucou-lhe Yen Hui, ‘o que se entende por jejum do coração?’

Respondeu-lhe Confúcio: ‘O objetivo do jejum é a unidade interior. Isto significa ouvir, mas não com os ouvidos; ouvir, mas não com o entendimento; ouvir com o espírito, com todo o seu ser. Ouvir apenas com os seus ouvidos é uma coisa. Ouvir com o entendimento é outra. Mas ouvir com o espírito não se limita a qualquer faculdade, aos ouvidos ou à mente. Daí exigir o esvaziamento de todas as faculdades. E quando as faculdades ficam vazias, então todo o ser escuta. Há então uma posse direta do que está ali, diante de você, que nunca poderá ser ouvido com os ouvidos, nem compreendido com a mente. O jejum do coração esvazia as faculdades, liberta-as dos liames e das preocupações. O jejum do coração é a origem da unidade e da liberdade’ ”.

   Haveria delírios tanto quanto, em seus encantamentos, adequados para, munido deles, desfechar minha renitente ‘escrevedura’?

São..., caso queiram ter ciência (seja por mera curiosidade, acaso ou suprema perspicácia!),

...de Chuang Tzu.

...da axial Orientalidade (que tanto nos amedronta quanto nos liberta?). Ou, azeitando ainda mais e melhor a transcriação do que, epilogal, aclamo e conclamo:

...do ‘estar-em-toda-a-parte’ de um Ser-tão.

E, profetizo – ateu que sou,

...da Grande Verdade de suas Veredas Musicais...

Ave! Otacílio Melgaço...

P a b l o   S u a r e z   P a z

Buenos Aires, 28 de maio de 2000 &tc

 

(As citações literárias contidas em ‘Serpenteamentos à Sesta de um Fauno’ obedecem, fronteirizadas sempre por aspas, à ordem autoral seguinte: F.Pessoa, P.Valèry, C. Lispector, J.G. Rosa, S. Mallarmé, P.Valèry, G. Deleuze, I. Bergman, F.Gattari in L. Boff, S. Dalí, L. Buñuel, C. Tzu, C.Lévi-Strauss, J.L. Borges/O. Melgaço, M. Yourcenar, D. Merejkowski, R.M. Rilke, C. Tzu. Para a confecção deste texto, o sr. Pablo Suarez Paz consultou, via internet, arquivos pessoais de Otacílio Melgaço acatando à proposta deste, tal qual um xadrezístico jogo: estabeler e cimentar sinérgicas citações-em-bricolage).

 

 

Fragmentos da lírica 

do cancioneiro melgaciano:

 

Museu-de-tudo e então eu vejo o engenho do mundo que sobejo Semente do dilúvio à deriva invade a memória enlouquecida Minas: cantochão de barro, oca iguaria, hóstia consagrada ao profano que seria útero que encerra áurea era... Cantoria envereda, silencia... Outra terceira almargem romanceira, oratório da imagem traiçoeira. Imagem-nação, sagarana-teia, pecado da ilusão:

Insana ceia (santa, santa...)

Minas: cantochão de

barroca iguaria,

hóstia consagrada ao profano que seria... Útero que encerra Áurea Era... Cantoria envereda, Silencia

In-confidencia a dor de ser vários,

o corpo em carne viva nos calvários e as Minas do silên c i o-da-terra de-cantam

o destino que lhes resta

As Sete Sereias-do-longe se amam de olhos vendados tecendo o atalho-do-onde por deus foi o mar fecundado. Espelho do céu: vão-se as almas das Sete Sereias vendadas

vingança do mar que acalma a nau da esperança que vaga  na foz dessas águas se entranham murmúrios de todas as fontes,

e as Sete Sereias se banham no berço dos belorizontes.  O amor descansa na loucura do ventre-da-foz de si mesmo por ele, elas se aventuram Profund'alma

do seu segredo

A tenda de deus se incendeia: prenúncio da felicidade, reverso que não fantaseia

Sereias das Sete Saudades

Narciso...¿qué lirio te daría? La Luna : blanco de las liras Delirios dormidos te daría ¡Ay Narciso! ¿por qué me

acostumbraste a todas pasíones qué no me enseñaste? La Luna no sabe que quiere de ti 

Narciso... no sé que pasaría sin miedo del canto de las liras El cielo caído te daría

¡Ay Narciso! ¿por qué tu desnudo de viento será lo que nos envolverá de aliento? El tiempo eterno está vivo en mí. Narciso los pétalos de nostalgia tejen el rocío de las liras

Sudario del alma Yo te dejaría

¡Ay Narciso!, la Bruma y La Luna

son puertas que los corazones dejan siempre abiertas... ¿Qué es eso que suena muy lejos de aquí? 

O mercador de Veneza, espelho dos sete naufrágios, celeiro dos seus presságios Por nós louvou: oceano em que a sede se saciou.

Tormenta desta beleza, sinistra cela se encontra, o mercador de Veneza por nós negou: a partida de quem nunca mais voltou. Plangente a correnteza forçosa leva consigo irresistível aviso: "Pecai por nós" - cinza das horas, mudas prosas dessa voz.

e no labirinto intruso olhar - há outra morte, outro lugar Umbral do homem a se encontrar Rosa dos Ventos, d'além mar vestígioVil vida a vagar  Oh! senda reta leva... O mercador de Veneza, benfazejo mouro, bendita palavra que não nos habita: "Rogai por nós" - cinza das horas, mudas prosas dessa voz. Da alma imortal idade, do corpo sepulcro divino, desterro de todo destino Por nós chorou... - consciência do que nunca desvendou Glória à obscena vontade de ser meretriz da verdade Nudez: obscura vaidade Por nós: "Olhai!"  -  relicários de um mercador, o nosso Pai.

e no labirinto intruso olhar: a outra morte  -  outro lugar Umbral do homem a se encontrar Rosa dos Ventos d'além mar, vestígio vil, vida-a-vagar Oh! Senda reta leva... o mercador de Veneza O homem, o profeta que desalma o prazer de ser insano ser-humano mil e uma noites em si mesmo se seu corpo não transcender a prisão de ser o homem e não uma mulher.

Mesmo quando tudo era o eterno contemplando-se a si mesmo nu

- espelho narciso-estrangeiro, nega a palavra 'Deusilêncio' ateu desfaz o homem e o torna mulher Quem pode ofender o espírito do dia vagando em solidões vadias  - fêmea alegria Ora pelo homem, o profeta, o refém dessa magia: ser homem-mulher

Vejo em seus olhos dois corsários Médio-Oriente-se em mim, Jardim-das-delícias floreça! ...teça, então, essa tapeçaria que é, de mim, tão avessa: Homem-Mulher

Sete irmãs, sétimo selo, senda do seu medo, o homem velho canta o seu ser  sendo o avesso-do-avesso-do-avesso Teço o Orquidário, seu verbo teso: o sopro, o ventre de todo o começo: Homemulher.

A grande sombra do desejo se quebrou esculturando o que vejo e o que sou Doce comédia, humana alma sã que o pensamento monumenta no amanhã. Busto d'uma prece vã O bronze da idade despe o pensador Nudez da primavera é o brotar-da-flor...

Medita a jovem mãe: "fundamental cordel" pródigo filho, cantilena desse céu contemplando o seu menestrel. A vida imita o movimento d'arte quando já não quero um beijo do homem que anda esculpindo o que é o eterno

No paraíso perdido Eva se encantou

com o Mistério proibido de quem amou.  A bela armeira  cultua destino em vão Deus modelando vai todo seu coração. Nobre cântaro da paixão  A grande sombra do desejo se quebrou esculturando o que vejo e o que sou. Doce comédia humana, alma sã que o pensamento monumenta no Amanhã

Porte d'enfer, révers, revoir Rodin

Marrakech, cidade-dos-espelhos

Oh! Tempo vai tecendo sua rede no cais Marrakech Oh! Deserto vem e joga essa rede no mar Mar: oriente que desagua no céu-da-boca da mulher amada água sagrada que fecunda a terra lá em Marrakech  Marrakech, cidade-dos-espelhos Oh! Vida desfaz beirada-de-mundo, de-rio Marrakech

sonh'um labirinto-de-espelhos dessa loba-no-cio ´Mar: oriente que desagua no Céu, da boca, da mulher amada Água Sagrada que fecunda a terra lá em Marrakech  Marrakech, cidade-dos-espelhos Semente do mel-dos-lábios, horizonte tão belo Marrakech Cidade viúva-de-Deus, prazenteiro dossel...  

O.M.

 

'Parlando di Dio, 

per credere nella riqueza della 

incompletudine umana,

parlo di me stesso'

 

Eis algumas das poesias e letras decantadas nas 

obras populares brasileiras de autoria d´Melgaço. 

Nenhuma reprodução, total ou parcial,

das mesmas poderá ser feita – em qualquer 

modalidade de divulgação – sem autorização 

prévia e expressa do autor.

 

+
 
Há um excerto – “Marcando a Intertextualidade...” – de um estudo realizado por Cláudia Márcia Vasconcelos da Rocha (UFRJ) ao qual acesso tive há relativamente pouco tempo...e que me parece prestimoso! Sempre que me fazem indagações a respeito do título ‘Desiderium’ – além do que é dito no encarte do disco e sugerido em ‘Serpenteamentos’ – procuro uma renovada perspectiva que seja reinventada e instigantemente elucidativa. Eis aquela que (deixando sua ‘desmetaforização’ a cargo de cada internauta) gostaria de ‘marmorizar’ em nosso ‘Palimpsesto’: “Ser de desejo, ser de mediações, o homem encontra em sua ação o que nele há de divino. Porque deseja – carente, mediato, movente – movido, imitador, o homem se diviniza, pois nasceu com a tendência para compreender e agir. Assim é que se pode dizer que o homem é o agente privilegiado do esforço de mediação e o substituto mais ativo do divino. (...) Pelos nomes do desejo-aspiração perpassa um ímpeto ascencional, plenamente desvelado pela constelação de palavras que gravita em torno do termo latino desiderium, como o vocábulo português ‘desiderato’ que designa o desejado, o objeto do desejo. A espessura semântica de desiderium abriga um vetor temporal que remete ao passado: desiderium é também saudade, nostalgia. Percebe-se, portanto, a existência de um liame subterrâneo radical – atado nas raízes das palavras – entre desejo, altitude e nostalgia, que faz de certo tipo de desejo a aspiração de retorno a altitudes perdidas. Esse desejo é o da recuperação de um paraíso perdido num outrora e num alhures não propriamente de antes, mas do alto: desejo de regresso ao reino da imortalidade e da atemporalidade; ao divino sempre, às alturas. A volta é subida, ascese dialética, reminiscência do sempre, retorno ao mundo das idéias, às causas paradigmáticas e eternas. Não retrocesso ao arcaico, mas escalada em direção ao arquetípico. É justamente para efetivar essa ascese e escapar do labirinto terreno que a alma desenrola o fio da voz e (re)constrói a linguagem. Platão, no Crátilo, mostra a função da alma-sopro, sua presença é causa da vida do corpo, ela o refresca e lhe propicia a faculdade de respirar. Mais adiante, jogando com as palavras soma (corpo) e sema (túmulo, mas também signo), afirma ser o corpo o túmulo-signo que encarcera a alma. Dele é que a alma-voz deve se libertar para remontar ao plano das significações essenciais, as idéias ou essências que habitam no além-do-signo, no além-da-imagem, no além-das-linguagens. Além da margem?Note-se, ainda, desiderium envia a sidérea, a sideral; sidereus é ‘pertencente aos astros’, enquanto ‘siderar’ significa fulminar (por um raio: de Zeus?). Existe, assim, na nostalgia contida em todo anelo, o apelo da pátria distante, permanente horizonte valorativo do real, sempre perseguido e sempre fugidio: aspiração e ideal são sinônimos. O tema é o da nostálgica insatisfação que alimenta várias formas de utopia. O não – lugar da utopia – não é permanente alhures?” Sim... “A margem, enfim, vislumbrada. O embate do desejo do aqui e o desejo do alhures... (...) São caminhos.  Vias possíveis para o encontro e o diálogo com o universal. (...) Posso dizer estarem essas vias em permanente construção/desconstrução/reconstrução. São um duplo e mesmo caminho de ida e volta, de subida e descida que sustenta e alimenta a chama eternamente viva do que está além.” 
 

 

Abaixo

alguns depoimentos a respeito

do enveredamento de O.M.

pelo universo mpbístico:

 

"Escutei sua música em noites memoráveis no jardim de minha casa, confundida com o rumor do vento nas folhagens; outras vezes, ouvi-a deslizar em meu quarto, como um rio sinuoso,

alternativamente obscuro e cintilante.

Como Ragas que são solilóquios e meditações, 

melodias passionais que traçam círculos e triângulos em um espaço mental, 

geometria de sons que transformam 

uma habitação numa fonte, num repuxo ou num remanso. O que aprendi com Desiderium – além do prazer de percorrer essas galerias de ecos e esses jardins de árvores transparentes, 

onde os sons pensam e os pensamentos dançam – 

foi algo que também encontrei na poesia e no pensamento: a intrigante tensão entre o absoluto e o relativo, a unidade e a vacuidade, 

o contínuo ir e vir entre ambos e ambas.  

Manifesta-se o Desejo (seu, meu, nosso, vosso ‘desidério’, Otacílio Melgaço) 

como uma semente que se enterra no Uno, 

despertando-o, ...e um mundo nasce!” 

 

S t e l l a F r e i t a s,

Belo Horizonte / MG

 

 

"Caro Otacílio, estou enviando um pequeno

'vislumbre' do que seu disco provocou em mim.

Abraço. Miguel:

 

Como os círculos que se espalham

quando se atira pedras em um lago

e as ondas repetidas nos levam

à contemplação é o sentimento que tenho quando,

neste instante, acabo de ouvir Desiderium.

O silêncio que se segue é inteiro como a audição.

Narciso, agora fragmento estes

sofisticados 'sonetos de amor'.

Como não deixar de pulsar neste:

'o oceano que a sede saciou...tão perto...tão longe....'

A beleza que acaba por nos descobrir

é um fluxo em que a sedução

do canto (Orfeu e sua lira) espaça o tempo,

altera o sono,  nos leva à fonte escura.

Este canto de sereias é um manancial abundante,

aquece o coração, e tenho certeza

- torna os meus olhos mais brilhantes."

 

 S e b a s t i ã o M i g u e l,

Belo Horizonte / MG

 

 

"Otacílio Melgaço é um 'brincante'!! 

Todos temos o direito de sonhar com 

e conquistar o que deve permanecer em nós..."

 

C l á u d i a S i q u e i r a,

Curitiba / PR

 

 

"Fiquei um pouco com a pulga

atrás da orelha, ou, em outras palavras,

uma pergunta (talvez óbvia pra você)

sobre o teu trabalho tão intrigante,

tão interessante.

Teu escrever é tortuoso, lento,

se move e enrodilha que nem cobra

(gozado que eu pensei  isso

 antes de ter visto o label do cd...),

ele meio hipnotiza a gente.

O seu canto é assim também.

Ficou pra mim a impressão de que as tuas

letras exigem arranjos e climas e sonoridades densos,de cobra, cavernas, malícias,

mistérios, catedrais, etc e tal.

O acompanhamento de violão

parece que despoja, brejeiriza, brasileiriza,

no sentido quase carioca da coisa.

Já os prelúdios das canções, o contrário.

Parece que os prelúdios querem ser

os arranjos das canções.

Tem a ver o que eu tou falando? Abração"

 

M a u r í c i o P e r e i r a

(músico, ex-os mulheres negras)

São Paulo / SP

 

 

" I saw your page thoroughly...

First impression: beautiful,

beautiful graphic design. 

I love these paintings,

they are mystery somehow... 

Because I don't  know portuguese 

I was not able to analyse all written stuff. 

So I focused on graphic & sounds. 

Artwork is really impressive (as I mentioned above). 

Now music. 

Some of the mp3 are so touching... 

"Prelúdio Rosa dos Ventos" 

reminds me Dead Can Dance: 

guitar sounds like Lisa Gerrard's yang t'chi, 

and there is echoed monologue... 

"Solo Rosa dos Ventos" fragment is outstanding 

- this piano part is absolutely amazing! I

love it has this brilliant piano part. Fantastic! 

Each note is like a raindrop 

which echoes in the emptiness... 

Most beautiful melody on whole album... 

Sad that this mp3 is so short... 

"Prelúdio Marrakech" is another nice piece, 

it reminds me Dead can Dance 

- drums and climate of South Africa ... 

There is also "Solo Ay Narciso" with beautiful 

guitar melodies. 

"Prelúdio Oratório" - a very nice guitar 

song with intimate climat. 

"Kiss your Mind" is different: first of all 

it contains english lyrics, 

and drum beat - I like this one. 

It doesn't fit to previous songs,

it's in english, it's happier, it's lighter."

 

A d a m R o g u s k i,

Warsaw / Polônia

 

 

"De noite... noite escura, sem lua,

ouço Desiderium um pouco

menos tímida que da primeira vez...

É mais uma singular e autêntica audição,

ímpar, límpida.

A noite se colore com os sons

que me envolvem e seduzem,

e que buscam em mim o Feminino

em recantos que eu mesma não alcançava.

Dantes, eu resistia -  não estaria pronta.

Essa noite, corro na minha infância,

me enfeito de colares, de grinaldas,

de pulseiras, de cores.

Me rendi.

Agora delicadamente busco

os princípios de todos os princípios:

o de amadurecer... sementar,

perpetuar... expandir...

Desiderium sussurra em mim:

'A flor que és é que eu quero...' "

 

C a r o l i n a L i m a,

Santo Antônio do Jacinto / MG

 

 

"Melgaço é órfico.
Meus cumprimentos ao avatar dos Gerais."

 

C l a r a S c l i a r,

São Paulo / SP

 

 

"Há anos cultivo uma amizade com o 

idealizador de Desiderium. 

Conheço, portanto, parte da sua caminhada

até este desiderato; sendo, pois, suspeito 

para pronunciar-me sobre a matéria. 

Mesmo assim, tentando isentar-me de tal suspeição, expressarei, com palavras breves, 

meu sentimento a respeito deste primeiro CD.  

Embora eu não seja um crítico musical 

– a minha relação com a música é a de um reles ouvinte -, não houve como deixar de me sensibilizar quando da primeira audição de Desiderium. 

A qualidade das músicas, a melodia, as letras, 

tudo tão bem trabalhado e orquestrado, 

esmero irretocável. Iniciando-se

pela apresentação física, 

navegando pelo site e percorrendo 

as inúmeras composições não me é possível 

vislumbrar nenhum só deslize. 

Incontestavelmente esta obra abrirá 

para o autor de Desiderium 

as portas de um futuro 

ainda muito mais promissor. 

Sorte nossa, que poderemos saborear 

outras tantas 

obras da excelência como a que 

ora se nos apresenta.”

 

M a r c e l o V e i g a,

Uberaba / MG

 

 

"O autêntico poeta é um vidente

que vê como real até o impossível!

Poetas são todos aqueles que amam e sentem

as Grandes Verdades e as dizem...

Alguns vão além, as cantam e tocam..."

 

P a u l a M a c i e l,

Rio de Janeiro / RJ 

 

 

"Pasan las modas, mueren los hombres, se
 derrumban los templos, se modifican las
 costumbres, corre el tiempo al galope, y el arte
 permanece. Permanece influyendo de una u outra
 manera en las edades posteriores,

marcando a cada
 instante alguna huella de su fecundo paso,
 indestructible al fin y al cabo, eterno. Eterno
 Melgaço. Y por milagro de ese arte que no se
 machita ni se empaña, que no envejece ni há de
 envejecer, porque proviene del inacabable
 sentimiento, Otacílio alienta las almas."

 

R u f o C h a m b o r e d o n,

Sevilha / Espanha

 

 

"Em Desiderium, para mim, tudo é mistério, 

tudo é complexidade, tudo é transcendental. 

Deixo-me levar pelos cantos – macios -, 

pela poesia, pelos sons. 

Até que em um determinado instante me perco 

e nem escuto mais: silencio. 

‘Silêncio interior cheio de som.’ 

E compreendo que cada canção, 

cada prelúdio é um universo, e, 

em contato com esses mundos, 

me re-conecto ao meu sentir, ao meu ouvir. 

Estamos em um momento muito delicado,

em que a música se transformou em comércio, 

que a poesia se reduziu a um restrito grupo 

de palavras e temas, que o tocar um instrumento 

não ultrapassa o aprendizado de técnicas, 

e que os nossos sentires vem se petrificando,

se endurecendo. 

Desiderium nos toca suavemente, 

lembrando-nos de nós mesmos, 

do nosso corpo, da nossas peles..."

 

J ú l i a O h n o,

São Paulo / SP 

 

 

"There are a number of reasons I like

Otacílio Melgaço.

‘Desiderium’, the best thing that I have heard

since the bossa nova songs, (...) is the main one!”

 

P e t r a C h a u r a s i a,

Londres / Inglaterra

 

 

"Cultivar um jardim que guarda

as quatro estações é uma arte deslumbrante!"

 

C l a r i s s a

&

C i b e l e  K l e i n

Belo Horizonte / MG

 

&

 

"Sempre

caros a mim foram

esta erma colina

e este ermo arbusto

que da vastidão

do horizonte último

o olhar exclui.

Mas sentado

e contemplando

intermináveis espaços

além daqueles

e sobre-humanos

silêncios, e profundíssima

quietude...,

eu 'tanto' em pensamento

me perco

que por pouco o coração

não me estremece.

E como - por entre

tal natureza

o vento ouço sussurrar -

aquele silêncio infinito

vou eu, à esta voz,

comparar.

E inunda-me o eterno,

e as fenecidas estações e

a presente e viva

- e seu soar...

Assim nessa imensidão

meu pensamento se anega

e a mim o naufragar é

doce nesse mar."

 

(Livre tradução de

'O Infinito' 

do italiano

Giacomo Leopardi 

feita por

Otacílio Melgaço)

 

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