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Via correio eletrônico, indagações feitas a Otacílio Melgaço ficam aqui cordialmente registradas e redargüidas.

 

P r e â m b u l o

 

I - Recebemos inúmeros comentários e dúvidas que giram em torno de aproximados ou idênticos temas, logo, adotamos a reformulação de tais abordagens - ao redigitá-las - para que possam atingir homogeneidade consensualmente perspectivista e estilística;

II - Como um número expressivo de internautas opta por permanecer incógnito ou cordialmente refuta a ribalta virtual, preferimos, em respeito a, não revelar quaisquer nomes, ´apelidos´ e/ou correios eletrônicos;

III - Otacílio Melgaço pontua e contrapontua suas réplicas por meio de aforismas rosianos em homenagem

ao escritor cordisburguense;

IV - Grande parte do conteúdo abaixo diz respeito a ´Desiderium´, Obra melgaciana dedicada à

Música Popular Brasileira.

 

“Qual é sua formação musical?”

=Errática, autodidaticamente errática...

 

“Para satisfazer minha curiosidade: há algum modo de ‘metodificar’ seu processo de composição?”

 

=Absolutamente...não. Intuo padecer de partos que, avessamente, desembocam em Uterinidade minha.

 

“Fale um pouco sobre seu papel de arranjador.”

 

=Chesterton, um apontamento interessante de Chesterton aqui calha: “Há dois meios de estar em casa – um, permanecendo nela; outro – partindo para a distância a fim de contemplá-la, voltar a ela”. Arranjar, para mim, seria como viabilizar ambos e simultâneos meios.

 

“Primeiro existia um Otacílio Melgaço cantor e o instrumentista se desenvolveu depois ou seria o inverso ou tudo ao mesmo tempo ou...? É sui generis um vocalista se dedicar, compenetrado, a vários instrumentos ou um multi-instrumentista se voltar, com esmero, para o cantar.”

 

=O ‘hieros gamos’ se dá, a priori, com os sons... Ainda descoisificados... Em um estágio placentário, indecodificável. O instrumentista haveria de pronunciar tal ‘Abre-te Sésamo!’. A palavra, em manjedoura-voz, tornou-se um advento, triadicamente mágico... Reincidindo crísticas figuras de linguagem, uma renatalina anunciação de um ‘eu-profundo’ que, d’outra feita, permaneceria abissal em mim.

 

“Você como poeta e letrista se diferencia bastante do ‘lugar comum’ que toma conta de grande parcela da música popular brasileira há muito tempo. O fato de se dedicar à Literatura foi imprescindível para esse ‘pulo do gato’?”

 

=Talvez... Charadista, ‘afianço que, no escutar’, ...nos escutares... os sons a ser não-desnudados da palavra, ‘em roda de mim o tonto houve’ e há... ‘O mundo todo me’ desconstrói, ‘numa grande’...honraria...

 

“Você se sente fazendo parte de alguma ‘escola’ da MPB?”

 

=Todos nós, na genética engenharia do Cancioneiro-Brasil, demandamos Travessia. Contudo meu ex-centrismo nunca permitiria ‘escolaridades’. Fato de obstacularizada visualização sonorosa visto que a iconoclastia é manifesta em partiturais entrelinhas, em Silêncios que são ‘a gente mesmo demais’... Não impunemente se desbrava esta ‘selva selvaggia’...

 

“Otacílio Melgaço compararia suas interpretações com as de 

João Gilberto?”

 

=Em raras circunstâncias... Sendo ‘Desiderium’ incipiente prole de minha carreira, seu minimalismo vocálico-violonístico poderia sugerir aliançares a visões imediatistas ou superficiais. Digo que admiro João pela ‘metafísica’ de sua música e, posto assim, univitelinos seríamos. Em cool jazz e bossa nova: ‘less is more’...e, no Espaço-Tempo entre o que ausencio e presencio, manifesto a mim... Todavia, desde menorzim, o Oriente – alter-ego melgaciano, nisso, já me (de)tinha como ‘neófito’.

 

“Ter tido uma experiência com o Cinema como diretor e roteirista trouxe novas perspectivas a seu perfil musical?”

 

=Tudo, em mim, é sinergia. Indo a meu esmo...

 

“Por mais que eu tente, sinto que é impossível encaixar ‘Desiderium’ em qualquer rótulo! Supor que é música popular brasileira e ponto final seria simplista demais. Para que tipo de público suas canções estão voltadas?”

=Impossível angariar descrição. Oxalá o capaz de ‘solver e coagular’...

 

“‘Desiderium’ não é um disco ‘comercial’ que tem hits que são seu carro-chefe e que, muitas vezes, resumem (toda a mesmice de) um trabalho. Você chegou a considerar a possibilidade, como muitos acabam fazendo, de produzir um disco mais facilmente assimilável pela mídia e pelo público em geral?”

 

=Nunca me importei com quaisquer alteriores maquilagens impingidas ao ‘assimilável’. ‘Desiderium’ é uma obra acessibilíssima posto que de complexa absorção... Impossível, para mim, seria, por uma verticidade – pirotecnizar, por outra – lobotomizá-la.

 

“Leio, a partir das considerações que estão em ‘Serpenteamentos’, algo como ‘Desiderium é um disco Oriental!’. Que análise faz desse paralelo intrigante?”

 

=Parece-me que Pablo Suarez Paz, o autor da (proposta por mim) ‘bricolagem textuária’, contextualiza a afirmação a partir das irresistíveis selvagerias cordiais de Clarice (Lispector). Irrestrita é minha concordância, a ‘concepção arquitetônica’ de meu primeiro disco pertence ao Orient Eternel...

 

“Você é o compositor, cantor, instrumentista, arranjador, produtor de todas as canções de ‘Desiderium’. A que isso se deve?”

 

=À terceira margem de minha ‘eu-profundidade’, desiderioso orlar...

 

“Quando percebem esse seu caráter de multi-artista (basta darmos uma olhada na página ‘Links’ de seu site!), como é a reação das pessoas?”

 

=Ah... La transparence intérieure...

 

“Fico impressionada com o tratamento estético de ‘Desiderium’! O que o levou a Gustav Klimt? Como concebeu a diagramação? Foge completamente dos estereótipos da MPB...”

 

=Klimt, ‘vilhamara’... Klimt traz-me concretudes: dissolvendo-me... Klimt ‘são outras distâncias’... Klimt e ‘Desiderium’ eram ‘coisas que paravam já à beira de um grande sono’...

 

“No rótulo do disco vejo uma figura que parece um dragão e uma serpente entrelaçados. Tem um significado ‘secreto’?”

 

=Pleiteava sentidos heráldicos ao rótulo. O Uroboro, tal qual o caduceu de Mercúrio, arrebatou-me... Como sabe, do grego oura: cauda, boros: devoradora. Serpente a morder a própria cauda... Contudo minha profunda querência levava-me a requintes desconfigurativos, remodeláveis, imanentemente marginais. Renovada simbolicidade imantadora d’outros vértices metafísicos ’inda mais condizentes com ‘Desiderium’. En to pan...

 

“O disco traz referências a inúmeros artistas – escritores, cineastas, outros músicos, Rodin etc – direta e indiretamente. Isso tornaria ‘Desiderium’ inacessível a muitos, tornando-o elitista, de difícil apreensão e compreensão?”

 

=Não... Em definitivo. Continentes e conteúdos seus são Eclissi, Inter-Mezzo... Um disco para n’ele se airar...

 

“O texto do argentino Pablo Paz na página ‘Serpenteamentos’ do seu buritidosgerais é atípico se pensarmos no veículo que é a Internet. Seu conteúdo, proporção, ‘interdisciplinaridade’ nunca seriam usados por outro artista ligado à música popular brasileira como apresentação de um trabalho ou mesmo resenha. Quais objetivos esperava cumprir?”

 

=Em alguns aspectos, a Internet torna-se uma babélica torre. Muitos de seus viandantes são abordados por/em inúmeros ‘idiomáticos elos’ todavia a respectiva potencialidade tradutora (que lhes deveria ser inerente) parece efervescentemente liliputiana. A superficialidade que ronda um ‘Ultracinético Tempo’, esse Totem contemporâneo...muito contribui para. ‘Serpenteamentos’ vai, kamikaseante, de encontro a... Diaballein.

 

“No panorama musical brasileiro atual, segundo você, onde ‘Desiderium’ se ‘encaixaria’?”

 

=Não tenho certeza se poderia ser conciliável ao ‘atual’ contido na pergunta... Se ‘encaixaria’ num auditivo ‘wu wei’???, n’outros paradigmas do exercício-de-ouviver a música...

 

“A presença de conceitos como ‘Deus’, ‘Alma’, ‘Morte/Vida’, ‘Eternidade’ etc é extremamente constante ao longo de seu disco. Seus temas sempre incitam a que tiremos os ‘pés do chão’ ou mergulhemos numa viagem para dentro de nós mesmos, nos autoconheçamos. Você não acha que pode estar indo em demasia contra a corrente monocórdia da música feita no Brasil? Não se sente ‘um estranho no ninho’ inserido no Grande Circo que é o ‘business’ em que a arte se transformou?”

 

=‘Business’ ou ‘buzziness’?! ‘Parlando di Dio, per credere nella riqueza della incompletudine umana, parlo di me stesso...’ é a frase engendrada por mim (Otacílio refere-se à décima quarta faixa do disco) a preludiar leopardiana infinitude. Agigantando a aguçada perspectiva portenha de Pablo Suarez Paz em ‘Serpenteamentos’: se sei, sei de mim como trovador, menestrel...e não cronista. Verso o Homo Ludens, não o Sapiens... Creio ser Haroldo de Campos (ironia memorial minha?) a afirmar categoricamente que devemos “ter como ponto de partida: o Infinito”... Reancoramos em Giacomo? Sim/Não. Horroriza-me o efêmero... Agouro, ‘condenado a’, onimanifestáveis Transcendências... Porém, sempre aportado no homem-humano. Rosa culmina seus magmáticos poemas sagrando ‘Consciência Cósmica’ que, agora e aqui, adaptaria assim se assim adagiasse: “Já não preciso de rir. Os dedos longos do medo largaram minha fronte. E as vagas do prazer me arrastam para o centro do redemoinho da grande força, que agora flui, feroz, dentro e fora de mim... Já não tenho medo de escalar os cimos onde o ar limpo e fino pesa para fora, e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos, e deitar-me na lama, o pensamento opiado... Deixo que o inevitável dance, ao meu redor, a dança das espadas de todos os momentos. E deveria rir, se me restasse o riso, das tormentas que pouparão as furnas de minha alma...”

 

“Seu trabalho de mixagem do disco é artesanal, isso é facilmente perceptível. Foi premeditado? Você quis evitar o som pasteurizado da maioria dos discos ‘comerciais’ ou  foi mera coincidência?”

 

=‘Mixagem’ – ou ‘mistura’ como floreamente se lê nos encartes de discos lusitanos – é, para mim, ‘anticalibanato’. Quero dizer, um ‘dar batalha’ que (sendo, em princípio, transfigurante) se transplanta em pas-de-deux, ‘afeto combatente’.

 

“Seu disco de estréia – ‘Desiderium’ – tem 74 minutos de duração! Há um sentido, uma mensagem por detrás disso? Você não ficou com receio das pessoas não terem ‘fôlego’ para tanto?”

 

=O Tempo e, microcosmicamente o Tempo em ‘Desiderium’ é “a vida da morte: imperfeição. Mágico de todas as (renascentes) traições”... Por tal desrazão, h(aver)á de ser “matéria de entendimento”...

 

“Sempre que ouço a décima sétima faixa do disco – ‘Oratório’, fico estarrecida com o que revela de Minas Gerais. Para mim, é o um hino à mineiridade! Acho que poucas vezes na vida pude ‘ser possuída’ (não existiria uma expressão mais pura e adequada) por um artista que tão perfeitamente escreveu ou ‘musicou’ o ‘ser mineiro’! Poderia dizer algo a respeito?”

 

=Em paráfrase ao Tao,

era não definida mas perfeita,

nascida antes do Céu e da Terra,

sem palavra e sem limite,

independente inalterável,

atirando-se em toda parte sem cansaço...

Em suma, a Mãe-do-Mundo...

Não sabendo seu nome, chamo-a Minas Gerais...

 

“Me parece que ‘Desiderium’ está à disposição em poucas lojas, livrarias e ‘cafés’ de Belo Horizonte/MG. Qual o motivo para essa opção ‘acanhada’ de distribuição?”

 

=Se a ‘artesanatividade’ da obra fabula onipresenças, como ceifar o umbilical cordão?

 

“Você acha que as pessoas têm a tendência de rotular seu disco como bossa novista?”

 

=‘Desiderium’ abarcaria a Bossa Nova, anima e animus, no contrário não creio. ‘O gênio é punhal de que não se vê o cabo’...

 

“Atualmente com quais artistas – no Brasil –‘Desiderium’ se comunicaria?”

 

=Conjecturo e desalumio... 

 

“Que músicos você admira e, em especial, quais foram pedras de toque nesse seu trabalho?”

 

=Infindos... Para não me tornar indecodificável, dos mais reconhecíveis: de Brasileiro Jobim a Cocteau Twins. De Miles Davis aos Pífanos de Caruaru. De Cartola a Keith Jarret. De Caymmi a McLaughlin. Nélson Cavaquinho a Björk, Smetak a Manuel De Falla. De João a Sakamoto, Pharoah Sanders a Clementina de meu Jesus....c r i s t i m... 

 

“‘Tão perto, tão longe’ nos remete ao cinema de W. Wenders. ‘Orquidário’ faz menção a Ingmar Bergman. Como acontece essa ‘tradução’ de uma inspiração que vem do predominantemente visual para o musical?”

 

=Pura e simples e sinestesicamente...  

 

“É difícil ao ouvir ‘Desiderium’ nos abstrair das letras das músicas que, no final das contas, são cimentadas de forma inusitada e inovadora. No momento de criação, música e letra nascem juntas?”

 

=Reitero... Os sons são genesíacos..., cios-e-sais da Terra. A palavra (poética ou letristicamente) dá destinação a dadivozo aboio, Axis Mundi.

 

“Acho ‘Kiss your Mind’, por um lado, uma faixa que aponta para um outro sentido do que o disco tem. Mas, ao mesmo tempo, se repararmos na sua construção melódica e harmônica, pertence a ‘Desiderium’ como qualquer outra canção. Como foi para você compor essa música? Às vezes ouço artistas brasileiros tentando se aventurar pelo Inglês – seja tomando o caminho do samba, bossa, blues, rock, techno ou... – e amargando resultados. ‘Kiss your Mind’ não soa ‘fake’ e é um Acid Jazz que poderia ter sido feito na Grã-Bretanha, Nova York ou qualquer outro lugar parabolizado, ‘genuino’. Como conseguiu???”

 

=Coincidentia Oppositorum! 

 

“Quando me debruço sobre o espanhol de obras-primas como ‘Oracíon’ ou ‘Narciso’ fico tentada a perguntar como um compositor brasileiro pôde atingir de maneira tão impecável o ‘espírito’ de um idioma que não é o seu. Ao não escrever em português, primeiro trabalha a ‘última flor do lácio’ e depois a traduz ou lida diretamente com outras línguas?”

 

=Cada poemática é fecundada no e parida do ventre da língua-mátria. ‘A abelha é que é filha do mel’...  

 

“‘Desiderium’ em vários aspectos se encontra no caminho diametralmente oposto à grande parte dos artistas da MPB atual. Nesse sentido, o disco seria um grito (ou sussurro atômico!) de protesto a muito do que tem sido feito na música do Brasil de hoje?”

 

=Eis uma decupagem interpretativa palpável e plausível... Não obstante, quão feérico seria se ‘Desiderium’ alquimizasse – em nós – “aquela ‘força de imã’ a que se refere Platão,  ‘amabilis insania’ de Horácio ou a ‘passageira (?) loucura’ segundo Schiller”...

 

“Fale mais sobre os ‘Prelúdios’! Achei muito perspicaz o comentário do músico paulista Maurício Pereira no ‘Pillow Book’!”

 

=‘Desiderium’ assemelha-se a um Caleidoscópio... Em ‘Second Manifeste du Surréalisme’, André Breton artimanha: “Tudo leva a crer que existe um ponto de espírito donde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, comunicável e incomunicável, alto e baixo, deixam de ser percebidos contraditoriamente.”  Prelúdios e Canções almejam tal ponto, transubstanciante e poliedricamente...

 

“Por tudo o que li no seu site e em outros feitos por você, como Otacílio definiria seu amor por Guimarães Rosa?”

 

=Sempiterno, mistagogo... Para se remeter idéia, João Rosa agora está me ensinando a hermética ‘Língua dos Pássaros’...

 

“Imagino que associam o seu canto a Chet Baker, outros – como já pude constatar pessoalmente – até a vozes femininas como a de Nana Caymmi. Você também faz essas relações e/ou sofreu essas influências?”

 

=Chet Baker, David Sylvian, Carlos Fernando (ex-Nouvelle Cuisine),  João Gilberto, Jards Macalé, José Miguel Wisnik, Milton Nascimento, Moska, Caetano Veloso e mesmo Nana Caymmi são donos d’algumas vozes já cotejadas à minha. Se viéssemos a superpô-las, notaríamos com mais nitidez o absurdo que habita certos paralelos... Baker, talvez...mereça adendos meus... Divirto-me a valer, no final de todas as contas, com Marcel Duchamp a pincelar moustache numa das epidêmicas reproduções da ‘Gioconda’...  

 

"No Brasil ainda se tem a noção de que quem ‘canta bem’ segue as leis do ‘bel canto’ com sua ornamentação excessiva, trinados estridentes e exibição de técnica a todo custo. Sua voz e sua maneira de usá-la aponta para outro sentido. Eu acho que com a bossa nova, esse foi um dos maiores legados que nossa música deixou ao mundo, o fato de que a caricatura do canto lírico ou grande parte do onanismo jazzista não nos servem como cânone se pensarmos em nossa música popular. O que você acha disso?" 

 

="Faz-me inolvidar exortação de Ferreira Gullar a um dos ícones de nossa M.P.B.: “Se um cantor aprende a cantar e passa a cantar bem, muito bem, ele corre o perigo de cantar bem demais: ele corre o perigo de se tornar uma máquina de cantar, precisa e fria. Isso não acontece apenas com cantor, mas com todo tipo de artista – pintor, poeta, músico. Gauguin dizia: ‘Quando aprender a pintar com a mão direita, passarei a pintar com a esquerda, e quando aprender a pintar com a esquerda, passarei a pintar com os pés.’ O cantor não tem tantas opções: seu risco é maior. Mas não entenda errado o que digo. Não estou dizendo que só ‘quem não sabe cantar’ canta bem. Estou dizendo que cantar bem não é cantar correto, segundo se afirma que é correto. Cantar bem é cantar com o calor da vida.”

 

“Por que houve a inclusão da poesia de Leopardi no disco? Por que Leopardi em especial?”

 

=“L’infinito” tornou-se desiderioso por inocular Mineiridades em Giacomo, por inundar, de italianismo, discográfica mestiçagem minha e..., confesso: Leopardi é, para e em mim, o ‘descansar na loucura’...

 

“‘Desiderium’ pode ser definido como parte fiel do mundo globalizado em que vivemos?”

 

=Nunca o conceberia como fruto da eufemismática ‘globalização’. É uma obra-em-miscigenação, vetustamente brasileira.

 

“Quem teve a oportunidade de tomar conhecimento de ‘Desiderium’ diretamente com você (como foi o meu caso) sabe que sempre é ressaltada a importância das primeiras audições. O que mais Otacílio Melgaço destacaria nesse processo de ‘desvirginamento’?”

 

=Há, sinto intimamente, um rito-a-ser-passageado no afrontar, confrontar, defrontar desidérico. Massivo, maciça e despersonamente coletivista, totalitário...não haverá de ser portanto... Preferiria responder, a resguardar nobres individuações, poemático:

“Nem folha se move de árvore. Nenhum vento. Nessa hora até anta quer sombrear. Peru derrubou a crista. Ruminam algumas reses, deitada na aba do mato. Cachorro produziu chão fresco na beira do rancho e deitou-se. Arichiguana foi dormir na serra. Rãs se ajuntam detrás do pote. Galinhas abrem o bico. Frango-d’água vai sestear no sarã. O zinco do galpão estala de sol. Pula o cancã na areia quente. Jaracambeva encurta o veneno. E a voz de certos peixes fica azul.

Faz muito calor durante o dia. Sobre a tarde cigarras destarraxam. De noite ninguém consegue parar. Chuva que anda por vir está se arrumando no bojo das nuvens. Passarinho já compreendeu, está quieto no galho. Os bichos de luz assanharam. Mariposas cobrem as lâmpadas. Entram na roupa. Batem tontas nos móveis. Suor escorre no rosto.

Todos sentem um pouco na pele os prelúdios da chuva. Um homem foi recolher a carne estendida no tempo... No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo. Aranhas-caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado. Dão ares que saem do fundo da terra.

Formigas de roseiras dormem nuas. Lua e árvore se estudam de noite.

Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se preparando para nascer. Todo vivente se assanha. Se ouve bem de perto o assobio dos bugios na orla do cerrado. Cupins estão levantando andaimes. Camaleão anda de farda.

O homem foi reparar se as janelas estão fechadas. Mulheres cobrem espelhos.

Lobinho veio de noite até perto do galinheiro e fugiu. Relâmpagos mostram cavalos dormindo, em pé, sob os ingazeiros. Mostraram também os lobinhos.

Tudo está preparado para a vinda das águas. Tem uma festa secreta na alma dos seres. O homem nos seus refolhos pressente o desabrochar.

Caem os primeiros pingos. Perfume de terra molhada invade a fazenda. O jardim está pensando...

Em florescer.”

‘Vespral de Chuva’, Manoel de Barros

 

“Em ‘Desiderium’ há referências a vários artistas. Nos créditos do disco você cita Elizabeth Fraser! Não há nada no disco que seja escancaradamente cocteauniano mas, se ouvimos com uma minúcia cirúrgica, nos violões da música ‘Soneto da Lua Gris’, para exemplificar, encontro ecos sutis de ‘Throughout the Darks Months’. Outro caso: a guitarra final de ‘Orquidário’... Enfim, pude até mesmo perceber que no ‘poslúdio’ tribal de ‘Kiss your Mind’, você pronuncia títulos de músicas da banda escocêsa! Vejo que lhe dedicou (thecockatootwins.hpg.com.br) um site! De onde vem essa relação com CT, em que eles inspiram sua  música?”

 

=Mrs. Fraser é (a me valer de, a ‘me’ invocar Rosiano) Sereia-dos-Sete-Longes: ‘Si-Mesmo, o Céu, a Felicidade, Aventura, o Longo Atalho chamado Poesia, Esperança Vendada e Saudade sem Objeto’. Os Cocteau Twins: angeli  che non furon rivelli, ne pur fideli a Dio, ma per sè foro...

 

“Sempre que leio uma frase de seu ‘Soneto da Lua Gris’ que, aliás, me remete muito a Edu Lobo, fico com a sensação de que alguém pôde traduzir o intraduzível: ‘Hóstia da minha dor foi do amor o que eu fiz...’ Os violões com sonoridades diferentes e intercaladas reafirmam a minha impressão com maestria. Como é para você ‘ordenhar’ do sofrimento elixires tão belos?”

 

=Toda água é antidiluviana...

 

“Tive o prazer de conhecer Melgaço, a vila portuguesa, há poucos anos. Foi uma surpresa para mim viajar por seu sítio eletrônico ‘Intersonho’ e reviver muito do que lá encontrei. Peço para reproduzir o conteúdo da página ‘Mensagem’ aos visitantes do seu ‘Buriti-dos-Gerais’. Muito Obrigada.”

 

=Pois pois... “Vem, antiqüíssima e idêntica, Rainha nascida destronada, igual por dentro ao silêncio. Com as estrelas lantejoulas rápidas no teu vestido franjado de Infinito.Vem vagamente, levemente, sozinha, solene, vem e traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas, funde num campo teu todos os campos que vejo, faze da montanha um bloco só do teu corpo, apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo, todas as estradas que sobem, todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe, e deixa só uma luz e outra e mais outra, na distância imprecisa e vagamente perturbadora, na distância subitamente impossível de percorrer. Nossa Senhora das coisas impossíveis que procuramos em vão, dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela, dos propósitos que nos acariciam, vem e embala-nos, vem e afaga-nos, beija-nos silenciosamente na fronte, tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam senão por uma diferença na alma e um vago soluço partindo melodiosamente do antiqüíssimo de nós onde têm raiz todas as árvores de maravilha cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos... Vem, soleníssima, porque a alma é grande e a vida pequena. Vem, dolorosa, Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, mão fresca sobre a testa em febre dos humildes, sabor da água sobre os lábios secos dos Cansados. Vem, lá do fundo do horizonte lívido. Folha a folha lê em mim não sei que sina e desfolha-me para teu agrado, para teu agrado silencioso e fresco. Uma folha de mim lança para o Norte, onde estão as cidades de hoje que eu tanto amei; outra lança para o Sul, onde estão os mares que os Navegadores abriram; outra folha minha atira ao Ocidente, onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro, que eu sem conhecer adoro; e a outra, as outras, o resto de mim atira ao Oriente, ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, ao Oriente pomposo e fanático e quente, ao Oriente excessivo que eu nunca verei, ao Oriente budista, bramânico, sintoísta, ao Oriente que tudo o que nós não temos, que tudo o que nós não somos, ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva, onde Deus talvez existe realmente... Vem sobre os mares, os mares maiores, sem horizontes precisos, vem e passa a mão pelo dorso de fera, e acalma-o misteriosamente, ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito. Vem, ó Melgaço, cuidadosa, maternal, pé ante pé enfermeira antiqüíssima, que te sentaste à cabeceira dos deuses das fés já perdidas, e que viste nascer Jeová e Júpiter, e sorriste porque tudo te é falso e inútil. Vem, silenciosa e extática, vem envolver na noite manto branco o meu coração... Serenamente como uma brisa na tarde leve, tranqüilamente como um gesto materno afagando, com as estrelas luzindo nas tuas mãos e a luz máscara misteriosa sobre a tua face. Todos os sons soam de outra maneira quando tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes, ninguém te vê entrar. Ninguém sabe quando entraste, senão de repente, vendo que tudo se recolhe, que tudo perde as arestas e as cores, e que no alto céu ainda claramente azul já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem, a lua começa a ser real.”

 

“‘Orpheu do Samba’ é dedicada a Tom. Como e quando surgiu inspiração para compô-la?”

 

=Da morte (ou melhor, do ‘encantamento’) do Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim... Faço dele Orpheu a despir-se de sambísticos véus-do-aDeus... Das mais pueris, amoráveis canções que suscitei...

 

“Num texto seu (belíssimo!) que se encontra no encarte de ‘Desiderium’, você faz uma arqueologia textual do termo em latim. O encontrei novamente na ‘Discografia’ de seu site. O que quis dizer com ‘Elogio órfico da mistagoga Cegueira’?

 

=Referia-me a ‘Desiderare’... A desoracularidade-mor – indesignação do Alto – transmuta, em nós, vívidos/redivivos Paradigmas... O avesso, a declarar exemplo, da tanatofobia crônica que trincheiriza o homem-humano... Engendrador do Imensurável, o Renunciar-à-Visão benabissaliza-nos... Evocam-se vislumbramentos, arcos-e-íris e mundos outros... Vide Homero, ‘poeta itinerante, rapsodo, bardo e trovador’...

‘O cego participa do Divino, é o inspirador, taumaturgo, o VIDENTE’. Iniciático provador...

‘Os olhos, dos quais já se partiu a fagulha divina, mantêm-se, como se ao longe olhassem, erguidos para o céu; ninguém os vê jamais sonhadoramente inclinar para o chão a triste cabeça. ...Assim atravessa a noite ilimitada, esta irmã do silêncio eternizado...’ (Baudelaire).

E nós, orfeonicamente (retomemos o Mytho) congraçáveis somos por tal clari-vidente, áureo desver...

Eis: ‘Desiderium’, o disco: irmão do eternizável silêncio?!

 

“Sua música é muito visual! Ouço o ‘Prelúdio Orquidário’ e sou imediatamente transportada para a noite de uma megalópole. O ‘Prelúdio Oratório’ me leva ao sertão. ‘Sereias das Sete Saudades’ é uma odisséia! Estou em uma catedral gótica quando ‘Prelúdio Rosa dos Ventos’ inicia...e assim me perco e me encontro em seu disco. Você já pensou em fazer trilhas sonoras para dança, teatro ou cinema?”

 

=Minha arte é inerentemente transfigurante... Sendo, pois, uma ode ao sentido-das-sinergias, ou, à sinergia-dos-sentidos...envereda-nos por expressivas indiscernibilidades, impressioniscientes acasalamentos... As linguagens fotogramáticas, encenatórias e coreográficas bastantemente me aprazem... Quiçá em futurosos ensejos? Sortiprivilégios seriam para mim...

 

“Ao ler algumas considerações ‘melgacianas’ no interior de seu disco, vejo que se refere a ele como ‘doze trabalhos de Hércules’. Por quê?”

 

=“Inconfidencio a dor de ser vários, meu corpo em carne viva nos calvários e as Minas do silêncio-da-terra decantam o destino que lhes resta...” Então, “o engenho do mundo que sobejo” faz de ‘Desiderium’ “Museu-de-Tudo...”

 

“Acho ‘Marrakech’ uma música indescritível! ‘Traduzir’ o Oriente para O(tacílio)M(elgaço) é um ato intrínseco à criação ou um parto doloroso?”

 

=Pitiobuffoniano, dou réplica: Para saber falar é preciso saber calar... O gênio é uma longa paciência...

 

“Sua linguagem não é nada coloquial. No site, em alguns ‘recantos’ de seu disco... O fato disso poder amedrontar, intimidar ou ‘afugentar’ as pessoas não o preocupa?”

 

=Pre-ocupar, não pre-ocupa... Vicente Guimarães (ou diria Vovô Felício?), ‘tio muito tio’ de Rosa, em seu livro ‘Joãozito’, palateia: ‘Ao diamante e ao brilhante, agora, os dois processos de glotologia comparo. Falar é minerar a pedra bruta; escrever é lapidar, burilar, apurar’. O pior cego é aquele que quer ver...  

 

“Sendo ‘Desiderium’ um trabalho autoral ao extremo, como você lidou com um único convidado ‘especial’ que foi, se não me engano, o trompetista?”

 

=Em minha adolescência, a título de laboratoriedade, formara eu um trio voltado ao Free Jazz. Tocava piano e guitarra (à la Cecil Taylor e Mahavishnu McLaughlin, jocosamente – aqui – refluo lembranças...), Marco Antônio Daniel trompete e não me recordo de quem assumira as baquetas.

Buscava esmiuçar o método stanislavskiano pois almejava aplicá-lo em peças de Trane, Coleman... (que recebiam um tratamento iconoclástico) tais como ‘A Love Supreme’ e ‘Lonely Woman’ respectivamente. Vim a reencontrar M.A.D. anos após já em fase de desidéria partituração! Por, ardoroso, condenar-me a incidentalidades milesdavisianas no disco e, antitético, perscrutar um papel não estereotipado ao pistão em Música Brasileira , cria ser the man with the horn: that man!, ou seja, aquele vetusto comparsa de um inusitado combo hasteado em memorialismos...

A semeadura e o desabrochar de muitas das seqüências trompetísticas arvoraram-se em próprio estúdio de gravação à medida que minha direção musical (instantaneamente composicional, transmitida em simultaneidade vocálico–metálica) e seus improvisos coadunavam-se...

 

“Na antepenúltima canção de ‘Desiderium’ (‘Le Guide’), você transpõe vários nomes de obras do escultor francês A. Rodin para seus versos até citá-lo na última estrofe. Obviamente, ele é ‘o homem que esculpe o que é o eterno’. Acho interessante como lida com a metalinguagem, são músicas que falam de músicas e, ainda  numa perspectiva multi-artística, canções que fazem referências a poesias, esculturas, filmes etc – como um quebra-cabeça...”

 

=‘A arte é contemplação. É a mais sublime missão do homem, pois é o exercício do pensamento que procura compreender o mundo e dizer o que compreende...’, palavras de Auguste. Sendo, em acepção expansiva, ‘o prazer de um espírito que penetra na natureza, nela adivinhando o espírito que a anima...’, como não trazer à lume metalinguística eugenia?

 

“De curiosa eu faço uma pergunta capciosa. Na página ‘Serpenteamentos’, o argentino Pablo Paz diz que, por arrelia, procurará escrever ‘um pouco como você’. O que é isso? Um labirinto de que Melgaço se faz Minotauro? :-)”

 

=Em todas as intervenções advindas de terceiros e, para ubiqua honra minha, margeantes homenageadores, procuro eu enxertar arquiteturas borgianas! Divirto-me a valer...se, por obviedade ardilosa, me cotejassem a Jorge Luís, em suposto cerebrismo inventivamente oculto, maquiavelino... Inverso a Teseu, próximo a João Cabral, prefiro cultivar desertos como pomares às avessas... O senhor Pablo Suarez Paz é, por nossa amizade plena em vetustez, meu mais fiel alter-ego. Dar-lhe a palavra é como estilhaçar o espelho e recriá-lo em siamês porém antípoda.

 

“O som e seus sentidos... O silêncio e seus sons... Por que ‘Desiderium’ deixa em nós a sensação de estar repleto de músicas  silenciosas em sua essência?”

 

=Não tenho certeza, acho que foi Huxley quem chegou a afirmar que, depois do silêncio, aquilo que mais adequadamente exprimia o inexplicável era a música...

 

“Uma dúvida atroz! Tudo o que absorvo em seu disco é religioso direta ou indiretamente. Estou certo? Se sim, o que você me diz, você não tem medo de que às vezes possa soar ‘doutrinário’ em se tratando dos ‘mais desavisados’ ?”

 

=Em hipótese alguma... Nesses possíveis ‘juízos finais’, meu ateísmo me absolveria... Winterstürme wichen dem Wonnemond! Aclaro: como Mineiro, a religiosidade é seivática a todo eu-que-em-mim-propulsa-prorrompe-e-prosegue-sendo-Ser... Nos Gerais, ‘rezar é o existir da alma’... Todavia – hieráticos, encíclicos signos em minhas composições são metáforas sinonimamente caleidoscópicas ou caleidoscópios antonimamente metafóricos... N’algumas instâncias: o agnosticismo, heresiarcas humanidades... N’outras, a precisão ‘de Deus existir a gente mais’...e mais... Aliás, responda você a mim: de noite, o ateu crê mesmo em Deus pela metade?

 

“De onde vem o nome de seu sítio eletrônico? De G.R.?”

 

=Buriti é Árvore da vida, Cosmo vivo. Ascende aos céus, Eixo-do-Mundo, em regeneratória homilia... E mortuária pois renatalina... Desiderioso, encauleado entrocamento... ‘Buriti dos Gerais verdes, quem te viu quer te ver mais: pondo o pé nas águas beiras – buriti, desses Gerais. Buriti, minha palmeira, é de todo viajor... Dono dela é o céu sereno, dono de mim é o meu amor... Meu boi chitano cabano casco duro dos Gerais, vai caçar água tão longe em verdes buritizais... Buriti, minha palmeira: mamãe verde do sertão – vou soltar meus tristes gados nesta alegre pastação... Buriti, minha palmeira, nas estradas do Pompéu – me contou o seu segredo: quer o brejo e quer o céu... Buriti – boiada verde, por vereda, veredão – vem o vento, diz: – Tu fica! – Sobe mais... – te diz o chão... O BURITI, sempre...’, varandeia, no urubuquaquá, O CANTADOR.  

 

"Poderia fazer algum comentário sobre um tema específico que é a ´virtuosidade´? Ela me parece tão perseguida hoje em dia como sempre foi na história da música mas hoje de uma maneira tão fria e calculista, é a minha sincera opinião. E tem mais! Em seu disco eu não só percebo mas comprovo, em muitos momentos, o uso da virtuosidade. É fácil apontar, basta ouvirmos solos, improvisações, dedilhados... Mas você faz tudo isso de um jeito diferente, um jeito ´humano´, se é que me entende. Passei a gostar de sua música a partir disso. Obrigado."

 

="A virtuosidade" (que, atualmente, muitas vezes poderíamos chamar de ´histeria mundana´) "é, hoje, um pouco fria, uma execução perfeita (sem falhas, sem acaso), de que nada se tem a dizer, mas que não exalta, não entusiasma: de uma certa forma" permanece "longe do corpo." Há "enorme estima" pelo virtuose "mas (...) pensando na etimologia da palavra: (...) nenhuma simpatia." Opto pelo "íntimo", pela "inocência da técnica, que", a bem da verdade, "muitos artistas não conseguem alcançar" - muitos mais não a alcançam se comparados aos que almejam ´pirotecnias onanistas´ (estes, diga-se de passagem, estariam menos adequados a um ´palco´: mais a um ´picadeiro´ - com todo o respeito à bufonaria).

Aproveito esta página virtual - contendo Perguntas & Respostas - para abusiva, pletoramente fazer valer uma linguagem ´escrita´ (e não a escrituração da ´coloquial´) que acolha impressões literárias de meu agrado. Cito Roland Barthes ao longo desta réplica pois calha em esmero... Um de meus intuitos é o de proliferar tamanha ´babelidade transautoral´ -  a me incluir, obviamente - e, destarte: avesso a pedantismos vácuos: Paz na Terra aos homens de Boa Vontade! 

Voltemo-nos, tomando imprevisto prumo ao que assuntávamos: mesmo se categorizassem tal música introspectiva - que faço - de ´egoísta´  (um disparate risível!), seria a "intimidade o preço a se pagar se" quiséssemos "renunciar às arrogâncias" do ´serialmente massificante´ (sic). Refiro-me a uma música que "tem algo de radical que a transforma em uma experiência existencial, mais do que social ou moral. Esta radicalidade não deixa de relaciona-se um pouco com a loucura..." 

"O germe da loucura apresenta-se muito cedo na visão, na economia do mundo com o qual" o Artista que admiro "mantém uma relação que, pouco a pouco, o ´destrói´" (inadiável condição revivificante), "enquanto a música, por seu lado, tenta ´contruir-se´." Ei-la: em berlinda, seivática dialéctica... E retomemos ´Desiderium´ por outro dos infindáveis focos: a música "leva, fatalmente, aquele que a sente" e a escuta, "a viver em seu tempo seguindo as injunções de seu Desejo e não as de sua sociabilidade." "Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico." A escuta - sim - "é como um pequeno teatro onde se confrontam essas duas divindades modernas, uma perversa, a outra boa: o poder e o Desejo." Portanto, é inegável: "o ser humano mudou: a interioridade, a intimidade, a solidão perderam seu valor, o indivíduo tornou-se cada vez mais gregário, exige músicas coletivas, maciças, muitas vezes paroxísticas, expressão do nós, mais do que do eu." Recordo-me de uma entrevista dada pelo cultuado vocalista do britânico Radiohead em que Mr. Yorke bradava algo como: "...já não suporto a mentalidade das pessoas que exigem músicas com refrão e temas alegres!" ´Desiderium´ vai ao encontro de um (raramente) lúcido depoimento oriundo do universo pop. Ainda haveria ´espaço-tempo´ a um artista "da intimidade solitária, da alma enamorada e fechada, que fala consigo mesma"? Exemplos póstumos: "os Trovadores do Amor Cortês, os Preciosos do grande século clássico e os músicos-poetas da Alemanha romântica"... O "estatuto do canto romântico é, por natureza, incerto: inatual sem ser reprimido, marginal sem ser excêntrico. Por essa razão, a despeito das aparências intimistas e serenas dessa música, sem insolência, podemos colocá-la na categoria das artes extremas;" o ser que a exprime é "singular, intempestivo, marginal, louco se, em um último gesto de elegância, não recusasse a máscara gloriosa da loucura." Meca que busco impreterivelmente visitar em ´quando´. "Cantar, no sentido romântico, é: gozar fantasmaticamente de meu corpo unificado." E ei-lo, agora sim o momento apropriado: de nossos corpos, almas e não só...

 

“Percebo a inserção de alguns ruídos interessantes ao longo de todo seu disco. São gotinhas de água, agulha em atrito com vinil, sinos, carros, buzinas, respirações, ventanias e por aí vai... Em princípio, me lembrei de ter lido a respeito de antigas gravações como as dos Beatles em que, numa determinada música, um apito era soprado e somente podia ser ouvido pelos cães... Também eu poderia citar Frank Zappa, Mutantes e tantos outros! Como foi que concebeu a retomada de uma concepção tão sutil e inventiva que mixa música e ruídos incidentais e que praticamente já tinha se perdido nas últimas décadas? É claro que, de quando em quando e definitivamente não é o seu caso, ouvimos algumas tentativas nada criativas e dignas de pena ou risos!”

 

=Orbito, ao silêncio...som...ruído... – indescartando a música –, em irrevocável ‘idée-mère’: ici, le seul Esprit, le portier de l’Océan...

 

“Relato um consenso entre mim e todos meus amigos a quem apresentei ‘Desiderium’. Certos sambas seus são da mesma linhagem dos de Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Elton Medeiros... Acho que é o caso de ‘Paisagem de Ti’, ‘Jardim das Quatro Estações’ e ‘Tão Perto, Tão Longe’. Como é, você se sente um perpetuador do que seria chamado pelos ‘de hoje’: Velha Guarda?”

 

=Exorbitantente me honraria – lactente que me sinto... João Cabral, em seus ‘Jogos Frutais’, bem define o que me intimava a compor, em genesíaco passado, sambas: “Não te vejo, em semente, futura e grávida; tampouco em vitamina, em castas drágeas. Em ti apenas vejo o que se saboreia, não o que alimenta. Fruta que se saboreia, não que alimenta: assim descrevo melhor a tua urgência. urgência aquela de fruta que nos convida a fundir-nos nela’. Em atualidade, entretanto, outra versificação apontariam renovadas introspecções: “De fruta é tua textura e assim concreta; textura densa que a luz não atravessa. Sem transparência: não de água clara, porém de mel, intensa. Intensa é tua textura porém não cega; sim de coisa que tem luz própria, interna. E tens idêntica carnação de mel de cana e luz morena’...

 

“Existe uma ‘filosofia’ por detrás das idéias que geram suas composições? Não sei se me faço entender... Para muitos, eu imagino cá com meus botões e o letrista Djavan me vem à cabeça se buscasse paralelos na MPB, pode parecer ‘grego’ o que às vezes escreve...”

 

=Há uma apropriada máxima que aqui reluziria remanso: ‘filosofar, quase sempre, é muito fácil de parecer desumano’... Kléos-Nostos...

“Há pessoas que comentaram comigo o fato de achar ‘Desiderium’ um disco repleto de nuances melancólicas. Não como um aspecto negativo  (dizem o mesmo...de Billie Holiday a Portishead!) mas como uma de suas características intrigantes. A propósito, em uma dose muito atraente, eu sinto. Podemos notar que algumas músicas nem refrão têm e suas melodias são ‘arrastadas’, (quase) nos convidando a um tipo sui generis e solitário de ‘transe’... A idéia de um disco mais homogêneo e monocórdio passou por sua cabeça? O que me diz disso?”

 

=Em encarte, ancoradoura escrevedura: ‘Ao deixarmos de vislumbrar os Astros, ...somos contemplados com todos os legados que uma Eleita Orfandade pode nos oferendar’... Saliento a inevitabilidade indelével da mais humanística das Solitudes que, em meu primeiro disco, representativa e parturientemente catapulta primevo Rito-de-Passagem. Luzidio, sargaçal, mandragórico, orficoracular...

Em decorrência de, mântricas são algumas das melodiosas minhas veredas MPBístico-composicionais... Jogos de vibrações, sacramentária estética...

Homogeneidade? Antiqua melopéia... ‘Desiderium’ é uma Obra Impressionista, vinte e duas ‘monetianas pontes japonesas’ transcapturadas pictórico-sonoramente através de uma primeira... terceira... quinta... sétima... nona... décima primeira......... vigésima segunda pluri(des?)focalização audiocular. Ou, se preferir, em cosmiconsciencioso hai-kai de J.G.R., ‘viajei toda a Ásia ao alisar o dorso da minha gata angorá’...  

 

"Otacílio Melgaço, às vezes não entendo uma ou outra palavra que você canta em suas melodias e somente chego a fazê-lo quando leio, no encarte de seu disco, as letras de suas canções. Acho que o que descrevo seria classificado como um problema de ´dicção´ mas qual seria o seu parecer sobre isso?"

 

=Deveria eu – aqui – retomar algumas das obviedades e obtusidades barthesianas, principalmente o ´grão da voz´ que parte dos relevantíssimos feno-canto e geno-canto formulados por Julia Kristeva.

Editarei – livremente – literalidades... Ricas são as abordagens do ´semiologista´ francês voltadas ao cantor de melodias francesas, Charles Panzéra. Este defendia o antagonismo entre ´Articulação´ e ´Pronúncia´: “Articulação é o simulacro e a inimiga da pronúncia. A articulação atua negativamente como um engodo do sentido: pensando ajudar o sentido, é, na verdade, seu profundo desconhecimento; dos dois excessos opostos que matam o sentido, o vago e a ênfase, o mais grave, o que traz mais conseqüências negativas, é o último: articular é atravancar o sentido de uma clareza parasita, inútil sem que seja, por isso, luxuosa. E essa clareza não é inocente; arrasta o cantor para uma arte, perfeitamente ideológica, da expressividade – para ser ainda mais preciso, da dramatização: a linha melódica quebra-se em explosões do sentido, em suspiros semânticos... Ao contrário, a pronúncia mantém a coalescência perfeita da linha do sentido (a frase) e da linha da música (o fraseado); nas artes da articulação, a língua, mal compreendida como um teatro, uma encenação do sentido um tanto kitsch, irrompe na música e, de maneira inoportuna, intempestiva, a perturba: a língua toma a dianteira, é o lado desagradável, incômodo da música: na arte da pronúncia, ao contrário, a música vem antes da língua, ao encontro do que esta tem de música, de amoroso.

Ilusoriamente acredita-se que ´articulação´ destaca e enfatiza consoantes para a clareza do sentido. Panzéra recomendava o contrário: em muitos casos, deviam ser patinadas, para que recuperassem o desgaste de uma língua que vive, funciona e trabalha há muito tempo, deviam ser o simples trampolim da vogal admirável: aí está a ´verdade´ da língua, e não em sua funcionalidade (clareza, expressividade, comunicação)...

O ser alucinada não é a verdade da voz? Vozes sentimentalmente claras, sem peso significante, correspondem à demanda de uma cultura mediana. Cultura mediana: a que ama a música clara, que ´traduz´ uma emoção e representa um significado, uma arte que vacina o gozo (reduzindo-o a uma emoção conhecida, codificada) e que reconcilia o indivíduo com aquilo que, na música, pode ser dito: é o que pregam a Escola, a Crítica, a Opinião.

A despeito disso, todos os louros à arte e à música que cumprem seu devir interno, separadas da História - por uma distorção conhecida, arte/música marginais, ´mandarinais´ que comportam marcas de significância e que escapam à tirania da significação!

No feno-canto, o pulmão, órgão tolo, incha-se, mas é incapaz de ereção: é na garganta, espaço (´geno-cantante´) em que o metal fônico adquire consistência e se recorta, é na máscara que explode o significado, fazendo brotar o gozo.

Ao auscultar alguns cantores, creio ouvir apenas os pulmões, nunca a língua, a glote, os dentes, o septo, o nariz. É chegado o momento da arte da letra e não do sopro (simples traço técnico). Um basta à música que nada seduz, não leva ao gozo; música (bastarda do ´bel canto´ e de suas anomalias: picarescos vibratos, extroversões interpretativo-gongóricas etc que, em muitas circunstâncias, é tomada como referência à dita M.P.B.) excessivamente ´expressiva´  e, justamente por essa razão, que nunca vai além da cultura: é a alma que acompanha o canto, não o corpo: o que é difícil é o corpo acompanhar a dicção musical, não com um movimento de emoção, mas com um ´geste-avis´...

A música poderia ser uma ´qualidade da linguagem´... Qualidade que em nada depende das ciências da linguagem, pois, ao tornar-se qualidade, o que é promovido, na linguagem, é aquilo que não é dito, não é articulado pela linguagem. No não-dito, vêm-se instalar o gozo, a ternura, a delicadeza, o contentamento, todos os valores do mais delicado Imaginário. A música é, ao mesmo tempo, o expresso e o implícito do texto: é o que é pronunciado (submetido a inflexões), mas não é articulado: é aquilo que está simultaneamente fora do sentido e do sem-sentido, inteiro nesta significância... Sempremente pronunciável, a música depende de um discurso amoroso... Dizer o implícito sem o articular, deixar a articulação sem cair na censura ao Desejo ou na sublimação do indizível... Há coisas que só valem por sua força metafórica, talvez seja este o valor da música: ser uma boa metáfora.” Mais do que isso, seria a música a mais suprema delas...

“Sou engenheiro de som e queria fazer mais um misto de constatação e desabafo do que uma pergunta. Já não é de hoje que os discos de mpb, pop, rock, techno etc saem dos estúdios, das gravadoras e das fábricas totalmente estereotipados pelo fato de passarem por ‘filtros’ que são o cúmulo da pasteurização! Os aparelhos de som também sofrem do mesmo mal, cada vez mais (não é o meu caso mas o da maioria das pessoas!) temos pouquíssimos recursos (ou nenhum) para dar aos ‘players’ um caráter individualizado – moldá-los, equalizá-los conforme nossos ouvidos e as características esfecíficas de cada disco, cada gênero, estilo, concepção do trabalho. No final das contas, ficamos presos em um círculo vicioso! Ouvindo músicas mixadas e remasterizadas de forma serial (‘niveladas por baixo’ porque devem ser absorvidas pelos ouvidos da ‘massa’ amplificadamente adestrada!) para que possam tocar em aparelhos feitos de plástico, com sons, como não poderiam deixar de ser, absurdamente plastificados! Tive acesso a ‘Desiderium’ através de um dos meus clientes e não pude deixar de perceber uma coisa: em cada aparelho que eu coloque o disco, ele ‘responde’ de uma maneira diferente! É fabuloso! Finalmente mais alguém (são pouquíssimos!) decidiu escapulir de toda essa engrenagem que fica expelindo e expelindo músicas a cada segundo para que sejam consumidas e descartadas numa mesma velocidade! Já era hora das pessoas reverem seus comportamentos nesse sentido e fazerem com que

1) seus meios de veicular sons (seus ‘tocadores’ de cds, vinis, k-7s etc) estivessem voltados às complexidades (por exemplo, das mixagens) das músicas que ouvem – e não empobrecendo e mediocrizando tacanhamente as mesmas e com que...

2) ...as músicas de suas preferências estejam voltadas para um ‘escutar’ apurado, crítico, lúcido – e não para a ‘estupidificação do ouvir’ que prestigia canções cada vez mais banalizadas e oportunistas.

Parabenizo você e seu engenheiro de som (André ‘Cabelo’ Tavares) por decidirem correr o risco e romper com esse ‘esquema’ que só contribui ainda mais para

1) o ensurdecimento estético do público que se diz ‘ouvinte’ e para...

2) ...a atrofia da capacidade das pessoas de perceber e desfrutar todo o universo de coisas que a boa música, bem gravada (e que mantém sua integridade incorruptível!) pode proporcionar!”

 

=Relevantíssimas são tais considerações... Ou melhor, desiderações! Coadunam-se, visoças, à mudança de paradigmática ‘auditividade’ a que, incançavelmente, me refiro... ‘Ficar calado é que é falar dos mortos’!...  

 

“Otacílio Melgaço é ‘o último dos moicanos’? Eu traduzo: você crê no que chamam de ‘Inspiração? E a vivencia?”

 

=‘Tudo é a ponta de um mistério’...

 

“Na contracapa de ‘Desiderium’, de um lado estão os títulos das vinte e duas músicas e do outro uma Esfinge! Penso que gratuita essa relação não é...”

 

=Não, não... Um’outra sombra, uma falsa claridade...

 

“A canção ‘Kiss your Mind’ foi gravada ao vivo?”

 

=Aos vivos... 

 

“O título de seu primeiro disco é o mesmo de um espetáculo de dança do grupo ‘Primeiro Ato’ que também é de Minas, se não me falha a memória. Você se inspirou nele?”

 

=Não... ‘Desiderium’ é primogênito de uma discográfica Trilogia. Os títulos desta qu’emolduram sonoroso Terceto são de minha ciência anos-e-anos...em antes de travar deslumbramento com a mineira produção do benfazejo Primeiro Ato (aqui: alvo de sinceras congratulações). Apriorística convicção minha de batizar o genesíaco confirmou-se efetiva, infinitiva e predestinadamente e, encomioso, embandeiro: ‘...Ó pura contradição, volúpia de ser o sono de ninguém sob tantas pálpebras’.  

 

"Sua obra, eu classificaria como LISÉRGICA. Não somente eu porque muitas pessoas, ao ouvi-la, ratificaram o que escrevo a você neste e-mail. Vê alguma pertinência nessa afirmação?"

 

=If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite... (William Blake)

 

“Seu CD, com raras exceções, é uma obra sem percussões. Ouço sinos no ‘Prelúdio – Oracíon por El-Amor-Brujo’, sons que eu não consigo identificar em ‘Jardim das Quatro Estações’, tabla no ‘Prelúdio – Marrakech’, o beat acentuado de ‘Kiss your Mind’ (é claro!) e, espero não estar esquecendo nada, a kalimba lá pelos últimos segundos do disco... Por que você abriu mão de trabalhar com baterias, pandeiros e etc? Por que abrir mão do que é óbvio em se tratando de MPB?”

 

=M e t a f í s i c o: indefectível, intransitiva adjetivação acon-chegada a ‘Desiderium’! Rítmicos silenciamentos –levitativos! – arcabouçando Oriental Vazio... Mais-babélico: transfiguration of the common-place: emocion recollected in tranquility bridging the gap... Survival of the Fittest...  

 

"Vou insistir nisso. Você não acha que por mais que um ou outro artista digno de atenção e respeito ainda faça uma música realmente esmerada, a capacidade do público de ‘ouvir’ está cada vez mais sucateada?"

 

= 'Parece-me que a maioria das pessoas só se impressiona com três coisas: a rapidez com que se pode tocar, a altura que se pode atingir e o volume do som produzido. Acho isso um tanto exasperante, mas agora, mais experiente, vejo que provavelmente menos de dois por cento do público sabe realmente ouvir. Quando digo ouvir, quero dizer seguir um instrumentista através de suas idéias e ser capaz de entender essas idéias...', palavras de Chet Baker. o trompetista e cantor se referia ao jazz. se pensamos em música brasileira, a porcentagem seria holocáustica! Uma frase de Medaglia com a qual me deparei internauticamente e que despertou em mim extrema empatia: 'Nos dias de hoje, só o impopular é audível.'

 

"Otacílio Melgaço tem um outro ideal de vida?"

 

=Um outro ideal corre a nossa frente, prodigioso, sedutor e rico em perigos, ao qual não procuramos converter ninguém, porque não reconhecemos facilmente a alguém direitos sobre ele: o ideal de um espírito que brinca ingenuamente, isto é, sem intenção, por excesso de força e de fecundidade, com tudo que até agora foi chamado de sagrado, bom, intangível, divino; de um espírito para quem os valores supremos, justamente correntes no povo, já significariam perigo, decrepitude, aviltamento ou pelo menos repouso, cegueira, esquecimento momentâneo de si; um ideal de bem estar e de benevolência humanamente sobre-humano que parecerá facilmente desumano, quando, por exemplo, colocando-se ao lado de toda essa seriedade que se reverenciou aqui, ao lado de toda a solenidade que reinou até hoje no gesto, no verbo, no tom, no olhar, na moral e no dever, ele se revelará involutariamente comosua paródia encarnada, ele todavia tema  vocação talvez para inaugurar a era da grande seriedade, o primeiro a colocar o grande ponto de interrogação no seu lugar, a mudar o destino da alma, a adiantar o ponteiro, a levantar a cortina da tragédia... Pois ver soçobrar as naturezas trágicas e poder rir disso, apesar da profunda compreensão, emoção e simpatia que sentimos, é divino. Ecce Homo & Bataille: o desconhecido é meu ideal. Estamos totalmente expostos somente quando nos dirigimos sem trapacear ao Desconhecido. É a parte de Desconhecido que dá à experiência de Deus - ou do poético - sua grande autoridade. A noite é também um sol...

 

"Qual a sua relação com os ícones da música mineira?"

 

=Fantasmática. Dou fé porém me desprolixo. Ao culminar Desiderium (lançamento oficial inda imprevisto), aproximei-me do Sr. Brant e a ele tal como a Milton Nascimento e Tavinho Moura ofereci (via Fernando, a confiar-lhe a outros dois o Entregar) cópias do mesmo disco. Noutra ocasião, em mãos oferendei prole a Toninho Horta. 

Fechara-se um dos Ciclos Minéreos... 

Meu compromisso para com Clubes e Esquinas de um Pretérito Quase Próximo estava cumprido heróica e sinceramente. Tavinho cultivara radicalidades com sua viola caipira de cunho sofisticado, sofismático. O Arcaico e o Transgeralismo. Milton sacramentara perfil amineirante modernizando-o e, epicêntrico, o levara aos primeiros e terceiros mundos. Quando ainda havia peixes (não pães ou circos) a se milagrear. Fernando Brant poetizara-os, ou melhor, letrificara-os historicamente em untagem emblemática... 

Trato do mitológico Clube da Esquina, portanto. Fidedigno retrato de um movimento artístico que, no âmbito essencialmente musical (e não comportamental, plástico-performático etc) sempre me pareceu mais relevante que a Tropicália... De tempos para cá, há um revival em nosso país e um boom em estrangeiro desta e percebemos o universo pop - tantos citáveis, fico eu com Beck - nutrindo-se de refermentados pães e ultravitrinísticos circos contudo, muito antes disso, personagens bem mais, diria, dotados de magmática complexidade como Wayne Shorter, Ron Carter, Pat Metheny... - chego a afirmar mesmo Miles Davis! - beberam, pontualmente, em fontes do estrito e palpável estruturalismo sonoro mineiro e não da carnavalização neo-antropofagista baiana - o que coube, por magnetismo, ao já mencionado pop - e aqui rendo, para não parecer bairrista - pois não o sou -, minhas homenagens a todos méritos de Tom Zé, Caetano, Gil, Medaglia, Duprat & os demais camaradas que organizaram o outro movimento. 

Retomando: por fim, o quarto elemento dos que diretivamente elegi: Toninho Horta harmonizara montanhices aspergindo-as frutiferamente e que, mesmo não jazzendo em mim (pois sempre fui sim cativado pelo - a meu perceber: incomparavelmente superior - estilo mclaughliniano), jazem em mim como retrato na parede, mas que não dói.  

Todavia, tanto as canções da obra desideriosa quanto as epístolas-anexas com as quais lhes presenteei...estavam voltadas àqueles que foram – não mais àqueles que são e provavelmente serão. Minhas palavras amoráveis pertenciam a epitáfios lhes dedicados, uma missão que sentia como atávica, jamais viciosa ou corruptível. Nunca mais haverá (e não questiono isso, simplesmente constato lucidamente que certos altares podem ser cultivados indelével e perenemente - o que é raro - ou podem - se penso em comparação a seus áureos períodos - ruir ou, ao menos, ser tombados... Repito:) um ‘milagre dos peixes’, tais tempos bíblicos não voltarão ou, desassumindo ares nostálgico-necrófagos, tais tempos não encontram nem encontrarão diacrônica evolução satisfatória e convencível a mim. Logo, dialogo – elogiático – com Espectros de tais icônicos Quatro Cavaleiros de um Após-Calipso...das bandas-do-de-cá. O inexorável. Afora isso, ao etern’atual, em meu caminho solitário (antípoda dos habituais salamaleques convenientes – às vezes hipócritas), a oração que cantileno antes de me deitar é: ‘Deus que vê os meus esforços, dá-me a noite dos teus olhos cegos.’ Ou melhor, recorrendo ao sim  inquestionável perene messer Rosa: ‘O mundo é cheio do que se precisa, em migalhificências: felpas, filamentos, flóculos...’ Porém, ‘Laudelim descantava solene lá dentro, estribil, ele cantava continuado. Lá o angola cresce, excele’ pois ‘insolúveis, grávidos, todos exuberam...’      

 

"Nomes importantes da música no Brasil e também de fora de nosso país têm conhecimento de suas criações?"

 

=Crer que o contato de tais vacas sagradas para com nossa Obra possa nos trazer um epifania reviravoltante numa carreira é algo próximo a ter fé na veracidade dos contos de fadas - caso você não usufrua de graus de parentesco ou siga, apto a ser sodomizado, a mesma cartilha ou cultive as costas devida e privilegiadamente aquecidas; peço-lhe perdão pela acidez metafórica da réplica. Como sou um artista à margem disso e justamente por sê-lo, sinto-me à vontade para citar nomes que talvez tragam algum realce à primeira vista porém, na maioria das vezes, se prestam somente a isso. No Brasil, alguns...como Paulinho da Viola, Ney Matogrosso, Paulo Jobim, Maria Bethânia, Maurício Pereira, Ivo Perelman... No Estrangeiro, citaria - com mais carinho - Teresa Salgueiro - vocalista do português Madredeus - e Andrew M. McKenzie - do The Rafler Trio, já tendo trabalhado com Cabaret Voltaire, ex-membros do Fluxus, Björk...). 

 

"Qual é a sua opinião a respeito do uso corriqueiro de nosso folclore pelas novas gerações da música brasileira?"

 

=Suponho nossa música estar sofrendo de um mal endêmico (ou mundialmente epidemoníaco?) que denomino: ‘Caboclismo’. E o que me parece mais catastrófico: de um ‘caboclismo’ sodomizado por vulga globalização. Aliás, sempremente não – entretanto em tal ponto concordo com Tinhorão (J.R.) quando, categórico: muitos dos artistas ‘de cá’ servem de barriga-de-aluguel para os ‘de lá’. Contudo, retomando o tema em questão: em bom Português (Portugues?) lobatiano: ‘A arte rustica do camponio europeu é opulenta a ponto de constituir preciosa fonte de sugestões para os artistas de escól. Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para um ingenuo embelezamento da vida. Já não se fala no camponês italiano ou teutonico, filho de alfobres mimosos, propicios a todas as florações esteticas. Mas o russo, o hirsuto mujique a meio atolado em barbarie crassa. Os vestuarios nacionais da Ukrania nos quais a cor viva e o sarapantado da ornamentação indicam a ingenuidade do primitivo, os isbas da Lituania, sua ceramica, os bordados, os moveis, os utensilios de cozinhha, tudo revela no mais rude dos camponios o sentimento da arte. No samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no papúa, um arabesco ingenuo costuma ornar-lhes as armas – como lhes ornam a vida canções repassadas de ritmos sugestivos. Que nada é isso, sabido como já o homem pré-historico, companheiro do urso das cavernas, entalhava parfis de mamutes em chifres de rena. Egresso á regra, não denuncia o nosso ‘caboclo’ o mais remoto traço de um sentimento nascido com o troglodita. Esmerilhemos o seu casebre: que é que ali denota a existencia do mais vago senso estetico? Uma chumbada no cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo roliço do porretinho de gratambú. É tudo. Ás vezes surge numa familia um genio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na vida: concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e ‘tempera’. E fica nisso, no tempero. Dirão: e a modinha? A modinha, como as demais manifestações de arte popular existentes no país, é obra do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos esteticos, borbulha d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lugubres. Não dansa senão o cateretê aladainhado. Não esculpe o cabo da faca, como o cabila. Não compõe sua canção, como o felá do Egito. No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e côres, onde os ipês derramam feitiços no ambiente e a infolhescencia dos cedros, ás primeiras chuvas de setembro, abre a dansa dos tangarás; onde ha abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, côr, perfume, vida dionisiaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, ao meio de tanta vida, não vive...’ Consistiria o ‘Caboclismo’ – a que me refiro –, dest’arte, não só em utilização indiscriminada, reducionista e, portanto, imbecilizante de elementos culturais tidos como radicais, telúricos todavia também na estereotipização alastrante e liliputiante logo risível do folclore brasileiro, e, na sua fusão não menos virulenta, vilipendiante com phonovertentes de um estrangeirismo que me parece daninho, lombrical... e mesmo, peço perdão pelo termo: imperialicida. Perdão peço à ingenuidade panglossiana de alguns e ao sacramentado assimilacionismo d’outros. Ironias à parte, o ‘Caboclismo’ são ‘urupês’ pronunciados em soturno norte-americanismo. Todo unilateralismo estupradorido, parasitário deve ser recriminado. RELEVANTE: combato igualmente o reacionarismo ufaneiro, desprezo o amalgamento míope dos tipiniquistas-de-plantão. Simpático sou a antropofagias transculturais: deixo claro meu posicionamento posto que ‘Brazilian Popular Music’ é uma forma gradativa e surreal de um novo e prístino Holocausto. Van Gogh não conhecia melhor definição da palavra Arte que esta: ‘A arte é o homem acrescentado à natureza’; à natureza, à realidade, à verdade, mas com um significado, com uma concepção, com um caráter, que o artista ressalta, e aos quais dá expressão, ‘resgata’, distingue, liberta, ilumina. Você conhece esta frase de um poeta holandês?: ‘Ik ben aan d’aard gehect met meer dan aardsche banden.’ Portanto, rompendo com e diversificando – sadiamente – longitudes, latitudes e perspectivismos unilateralicidas: ‘Ik ben aan d’aard gehect met meer dan aardsche banden.

 

"Chamaria a atenção para algum nome da música mineira que merecesse destaque?"

 

=Distante do Moderno e colaço do Eterno, farei aqui jus a um intrigante baterista mineiro de nome Laércio Villar. Sua figura tornou-se, em meu memorialismo, a de um mártir pois cumpriu toda a via crucis a que muitos dos grandes sucumbiram, poucos sobreviveram. Trato desde da persistência em não se prostituir musicalmente - e o preço altíssimo que se paga por isso - até o envolvimento com tantos periculosos 'lenitivos' que sustentam e comprovam heroísmos assumidos, inevitavelmente assumidos até mesmo para que, quiçá, emanações sonoras conquistem o poder olímpico das vivificações-em-polpa... Não sei se ainda está na ativa contudo fôra, a meu ouver, um amálgama de ambos 'Billy': Cobham & Higgins. O tenho em mais alta conta e, no Brasil - relato sem hesitação, nenhum outro baterista teve a audácia (verve, concepção, mediunização...) de assumir posição hierárquica superior - ou mesmo equiparável - à que, por parte dele, está enraizada em mim. Acompanhei suas peregrinações pela noite belorizontina em minha adolescência e certamente era o único druman (na acepção mais universal) que testemunhei - naquela época, pelos Gerais afora - portador de legítimo e denso potencial transcendente ao tocar. Nunca ulteriormente outro senhor-das-baquetas das bandas-de-cá (e de toda a Terra Brasilis, como afirmo acima) foi capaz de germinar em mim tamanha fascinação. Perdão, estou caindo em redundância em razão de irresistível admiração... Talvez um ou outro nome que se equiparou ao encantamento laerciano - e que pude absorver ao vivo - seria o de um Elvin Jones ou, em seus momentos ainda brilhantes: Tony Williams ou Paul Motian...; enfim...  Ainda gostaria, caso fosse factível, de tocar com messer Villar... Convidado de meu projeto instrumental Cadavre Exquis Ensemble seria. Em algum quando propício, estarei em seu encalço e, se vivo estiver e aceitar meu bradar, me proporcionará a realização de um atávico e imordaçável sonoroso vislumbre - quase místico, diria eu."   

 

“Para mim, essa pergunta é irresistível: se você pudesse formular, hoje e sempre, como haveria de ser para fazer jus a ser designado ‘Artista’ ‘um artista’, como faria?”

 

=Em fidedigna rosiana pronunciação: ‘O artista é uma autarquia, sente, pensa e cria, em termos absolutos, dando expressão à sua necessidade íntima, realizando a sua arte. Assim, terá de ser: 1) humilde: trabalhará com profunda humildade, em face da arte, a fim de não criar-se dificuldades ao escoamento da inspiração; 2) independente: para poder obedecer com pura humildade à sua inspiração, precisa de isolar-se de influências imediatas, ambientes: é como alguém que estivesse compondo uma música, enquanto outros, em torno, estão assobiando outras músicas, de ritmos diferentes; tem de fechar de vez em quando os ouvidos; 3) corajoso: precisa de não ficar peado pelas fórmulas consagradas, e atirar-se para diante, seguindo a sua inspiração, até onde ela o levar; 4) profundamente sincero: a sua arte deve expressar-se de acordo com a totalidade de seu ser, com os seus conhecimentos, sua cultura, sua filosofia de vida, com as palavras com as quais pensa (assim, quando se pensa com determinado nível de erudição, em palavras e frases, seria pecado contra o Espírito Santo, acovardar-se e, por medo de vaias da plebe, usar da preocupação de rebaixar o seu estilo, para ficar ao alcance de todos); 5) infinitamente paciente: a inspiração só fornece um aceno, uma formulazinha, que é preciso trabalhar, com humilde paciência, desenvolver, podar, alterar, desbastar, transformar, enfim, em quimo artístico, sob pena de, se não o fizer, não corresponder magnitude da própria inspiração. Tudo isto vai aqui muito solenemente, porque, segundo concebo, arte é coisa seríssima, tão séria quanto a natureza e a religião.’  

 

"Seus sites revelam retratos daqueles que admira. Otacílio seria capaz de traçar um portrait de si mesmo, quero dizer, como um tipo de epitáfio?"

 

=“Matou-se de paixão ou morreu de preguiça, se vive, é só de vício; e deixa apenas isso: Não ser a sua amante foi seu maior suplício. Não nasceu por nenhum lado e foi criado como mudo, tornou-se um arlequim-guisado, mistura adúltera de tudo. Tinha um não-sei-que, sem saber onde; ouro, sem trocado para o bonde; nervos, sem nervo; vigor sem ‘garra’; alma, mas sem bastante fome. Muitos nomes para ter um nome. Idealista, sem idéia. Rima rica, sem matéria-prima; de volta, sem nunca ter ido; se achando sempre perdido. Poeta, apesar do verso; artista sem arte, ao inverso; filósofo – vide-verso. Um sério cômico, sem sal. Ator: não soube seu papel; pintor, do-ré-mi-fá-sol; e músico: usava o pincel. Uma cabeça! Sim, de vento; muito louco para ter tento; seu mal foi singular de mais. Seus pés quebrados, pés demais. Avis rara – mas de rapina; macho... com manha feminina; capaz de tudo, bom pra nada; com certeza, por certo errada. Pródigo como o filho errante do Testamento, herança vacante. Rebelde, e com receio do lugar comum não saía do lugar. Colorista sem cavalete; incompreendido... – abriu o peito; chorou, cantou em falsete; e foi um defeito perfeito. Não foi alguém, nem foi ninguém. Seu natural era o ar bem posto, em pose para a posteridade; cínico, na maior ingenuidade; impostor, sem cobrar imposto. Seu gosto estava no desgosto. Ninguém foi mais igual, mais gêmeo – irmão siamês de si mesmo. Viu-se a si próprio ao microscópio: micróbio de seu próprio ópio. Viajante de rotas perdidas, S.O.S. sem salva-vidas... Muito cheio de si para aturar-se, cabeça ‘alta’, espírito ativo, findou, sem saber findar-se, ou vivo-morto ou morto-vivo. Aqui jaz, coração sem cor, desacordado, um bem logrado malogrado.”

 

"Sei que isso acontece em todas as profissões mas acho que na artística é mais dramático.Há mesmo companheirismo no metiê musical ou, se você não pertencer às ditas 'panelas'...as conseqüências são mesmo drásticas?"

 

=Sim, concordo. Narciso e sua luta constante pela desreflexividade se alterior. Responderei genericamente porque as exceções qualitativamente me bastam: em certa feita, assisti - na capital das Minas - a um debate entre Fernando Brant e Capinam. Acho que Lô Borges também estava presente na ocasião... O primeiro embandeirava a solidariedade que há entre os músicos... O segundo, sem receio de ser politicamente incorreto - talvez, ali, mais sincero ou lúcido, declarava o contrário. Lhe digo que um dos dois tinha (e talvez sempre terá) razão. E...para não me perder no cimeiro dos

muros, ele não tinha sotaque mineiro.”

 

"Em seu primeiro disco, você nos faz passar por momentos bastante densos. É sobre eles que eu queria falar. Canções como ‘Oratório’, ‘Soneto da Lua Gris’ – e outras – exigem muito de seus ouvintes. A densidade é uma das características marcantes da música mineira. Ou foi. Mas me parece que Otacílio Melgaço deixa de lado o superficialismo da música contemporânea de seu Estado (também sou de Minas) e procura ser ainda tanto quanto ou mais incisivo que os representativos do passado. Por quê?"

 

=Por penitência? Por iniciação. Revelação. Transformação. Respiração e Ritmo e Zeit e Geist... Eis nomes da Rosa ou do. Umberto Eco pós-escritura seu romance e aqui materializo, pois, polímera paragem. Concanto (sou clausura em Montanha Mágica ): transplante ‘ler’ para ‘ouviver’, ‘leitor’ para ‘ouvivedor’, ‘páginas’ para ‘notas e acordes musicais’, ‘escritor’ para ‘musicante’...: ‘Depois de ler o manuscrito, os amigos da editora sugeriram-me que diminuísse as primeiras cem páginas, que achavam muito difíceis e cansativas. Não tive dúvida, recusei, porque, argumentei, se alguém quisesse entrar na abadia e viver nela sete dias, tinha que aceitar o seu ritmo. Se não conseguisse, também não conseguiria nunca ler o livro inteiro. Daí a função penitencial, iniciatória, das primeiras cem páginas, e se alguém não gostar, tanto pior para ele, vai permanecer nas encostas da colina. Entrar num romance é como fazer uma excursão à montanha: é preciso aprender a respirar, regular o passo, do contrário desiste-se logo. Acontece o mesmo com a poesia. Que significa pensar um leitor capaz de superar o obstáculo penitencial das primeiras cem páginas? Significa exatamente escrever cem páginas com o objetivo de construir um leitor adequado para as páginas seguintes. Quando o escritor planeja o novo, e projeta um leitor diferente, quer ser um filósofo que intui as intrigas do Zeitgeist. Quer revelar o leitor a si próprio. Um texto quer ser uma experiência de transformação para o próprio leitor. Verba tene, res sequentur.’

 

"Me parece que você faz questão de assumir uma postura multireferencialista como se tudo o que é de seu interesse e que o traduz possa ser aderido a seu discurso instantaneamente. Por que leva essa atitude até as últimas conseqüências?"

 

=Ricardo Piglia, escritor argentino: “O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê.” Em decorrência: Jerônimo Teixeira, jornalista brasileiro: “O escritor é quem esconde sua vida no interior dos textos que produz.”

Entranho-me em todas as formas de intertextualidades. Babelicamente. Sejam sonoras, visuais, tácteis e assim, rizomáticas, por diante. Tomo-me como escritor (e músico e fotógrafo e...e...e: Artista) e crítico simultâneos. Minha expressão de ambos transtorna-se suma paradoxal somatória.

Em uma entrevista concedida a periódico tupiniquim, Claude Lévi-Strauss fôra indagado: “Como se sente na posição de umas das poucas pessoas com prestígio intelectual, em todo o mundo, que não gostam de Pablo Picasso?” Replica: “Minha voz não conta para grande coisa. Tenho enorme admiração por Picasso, e não há dúvida de que se tratava de um gênio. Sua capacidade de se exprimir em gêneros tão diferentes e de fazer exatamente o que queria, sem dar importância à opinião dos outros, é algo que merece nossa admiração. Dito isso, creio que ele não era um grande pintor. A genialidade de Picasso consistia em outra coisa.” O logicismo regurgita: “Por que Picasso seria gênio, se não era um grande pintor?” Lévi-Strauss: “Ele conseguiu nos dar a ilusão de que ainda fazia pintura, ao se servir, com extraordinária maestria, dos restos da pintura de antigamente. Mas não fazia, na verdade, mais do que uma retórica sobre a pintura. Não era mais uma pintura. Era uma espécie de discurso sobre a pintura do passado.”

Creio ser tentador - ainda contextualizado por Claude todavia, em parte, com ele colidindo - a mescla hierogâmica entre o ‘fazer’ e sua incensaria retórica, seus afluentes diacrônico-discursivos. Repito a mim mesmo: Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, só a fazer outras maiores perguntas.

 

“Toda vez que eu escuto seu disco se dá nova descoberta! Seja por meio do seu canto ou dos instrumentos, das letras, imagens... Você tem noção de como ‘Desiderium’ é uma colcha de retalhos, de como essas metamorfoses não tem fim? Isso é tão raro e, por sinal, me deixa ainda mais e mais maravilhado a cada audição! Ao saber disso, não devo ser o primeiro a lhe dizer, como se sente?”

 

=Oxalá ODYSSEUS...

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