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"Nunca apreciei o palavrório dos jargões musicais...

Sempre achei a dita ‘crítica especializada’ – quando desbravando picuinhas terminológicas – motivo de narcolepsia. O músico britânico Elvis Costello, em certa feita, afirmara: ‘Falar sobre Música é o mesmo que Dançar sobre Arquitetura’. [A máxima é concomitantemente atribuída a outros.] Concordo plenamente. Escrever também o é.

E por isso lhes peço perdão pelo perfil heterodoxo das minhas intervenções...

Por sinal, há o costume de se dizer que para absorvermos todo o Louvre, seria necessário  usufruir com impecabilidade o conceito de destempo... Talvez assim aconteça aqui. Mas - de um modo ou d´outro -, diferentemente do mastodôntico museu parisiense, existe aqui uma total abertura para o grau de interação que se pretende ter – espacial e temporalmente - sem sacrificarmos qualquer nivelamento da devida substancialidade introjetável. em outras palavras, É possível - de forma simples e direta - acionar elos que levam ao deleite imediato de fragmentos sonoros até realizar, entre excitantes idas e vindas, leituras substanciais e de fôlego – tanto com fins iniciatórios quanto de

abissal aprofundamento. Que cada Visitante instigado assuma peculiar

itinerário pois será arquitetado e conquistado sempre a quatro mãos.

Otacílio Melgaço, em seus sítios eletrônicos, não insere datas que possam situar

suas Criações. Ele crê na intemporalidade das mesmas, e eu adiciono o seguinte

pensamento: ele crê pois percebe que se inscrevem muito mais numa vereda que

desconstrói o Tempo do que em territoriedade diacrônica/sincrônica. Otacílio Melgaço reluta em revelar fotografias próprias – na internet – ou esgotar as partes gráficas de suas Obras pois para ele – se bem o compreendo – seria uma maneira de lançar focos visuais (que existem mas devem se reservar ao encantamento de quem buscará a suprema tactibilidade de cada álbum fonográfico - mesmo se virtualmente) por sobre o que, em princípio, é genuina e subjetiva e invisivelmente...: sonoro. Por mais que o Internauta possa, nos frenéticos e imagéticos dias de hoje, estranhar tais artimanhas melgacianas, haverá de perceber que as lacunas cronológica & ótica {apesar de saber que, sendo um criador de ponta do XXI: o Séc. XIX ou XX - aqui ou acolá - lhe são também pilastras assim como, noutras circunstâncias, a antiguidade, a era medieval etc. [Novamente, o destempo em sua potência de ultra-cinético-fertilidade.] (...) Apesar de saber que, paralelamente a suas visionaridades: Blake, Dürer ou Redon podem ser a fonte plástica da qual parte o designer Melgaço} ...haverá de perceber o Netcitizen que as lacunas ocular & temporal devem ser preenchidas a priori pela prospecção propriamente ouvidora – mesmo que, de soslaio, sementeada pela palavra. Palavra exclusivamente reservada a minha responsabilidade, eleito pelo brasileiro como seu resenhador cibernético oficial – fato que me honra sobremaneira. Da Palavra à Nota Musical. Da Nota Musical ao Ruído. Do Ruído ao Silêncio. E, se do Silêncio houver o ato de abraçar Engendros como a Chave para um raro, digamos, Elo Perdido - na forma de auspiciosas audições online - ou, a quem desideriar, por meio de efetivas encomendas -, terei cumprido minha missão de quase incógnito ‘semi-maiêuta’. E somente a partir daí é que realmente nossa Odisséia (pela multidisciplinar artisticidade; pelo Museu de Tudo - a começar do Devir - que é cada manifestação transcultural melgaciana) terá seu cabível início. Nossa notável iniciação... A partir daí, sim, dancemos, como deuses,

sobre a arquitetura sonora de Otacílio Melgaço." (P.S.P.)

 

Música Contemporânea________________

 

MINOTAUROMANCIA

 

Opus II (a Paul B.)

Opus XII (a Erik S.)

 

UMA TORRE SE ERGUERÁ

DO FUNDO DE NOSSOS CORAÇÕES E

MELGAÇO ESTARÁ À BORDA

 

‘Em nossa consciência sucede-se, ao mesmo tempo, o florescer e o fenecer’,

o fenecer e o florescer.

‘Assim, pois, reprimo-me e afogo a chamada sedutora que brota no obscuro soluço. Ah, a quem poderemos recorrer? Não aos anjos, tampouco aos homens. E já os animais, sagazes, advertem que inseguros e vacilantes são os nossos passos através do mundo interpretado.’

Recorro à Minotauromancia.

‘Cerra-me os ouvidos: posso te ouvir.’

Minotauromancia 'é a obra de arte mais antiga.’

‘Oxalá então à saída da visão raivosa, inicie a cantar de

júbilo e glória aos anjos.’

‘Vivo minha vida em círculos que se abrem sobre as coisas, amplos. Talvez não consiga cerrar o último porém quero tentá-lo'. Giro em torno do Minotauro; oh Minotauro, se(r)mítico, ‘antiga torre, giro já há milhares de anos. E ainda não sei se sou águia ou tormenta ou se sou um grande cântico.’

‘Que direito’ teria essa obra ‘a nascer de mim se não fosse mais do que eu? Eu não sou um autor que faz’ música! ‘Minhas obras não seriam mais que a continuação de uma disposição e de progresso interiores, de um devir mais puro e mais vasto de toda minha natureza... Por acaso eu tenho direito a dar uma explicação justa de minhas obras? Elas me superam até o infinito.’

‘Oh velha maldição dos musicistas que se queixam quando devem dizer; que sempre opinam sobre seus sentimentos em lugar de formá-los, e supõem que quanto neles seja triste e alegre saberiam e poderiam em músicas chorá-lo ou festejá-lo. Como enfermos convertem em lamento sua linguagem, para dizer onde lhes dói, em vez de se transformarem, eretos, em sons,

como o canteiro de uma catedral

transforma-se na calma da pedra...’

Oh, Minotauro! ‘Só nós vemos a morte, o animal livre já tem o seu próprio ocaso atrás de si e perante si Deus, e quando vai, caminha pelo eterno, o mesmo que as fontes. Nunca temos, nem um momento, o puro espaço à nossa frente, em que as flores se abrem, intermináveis. Sempre há mundo...’

‘...essas transformações silenciosas, secretas, trêmulas, as únicas das quais sairão os entendimentos e unidades de uma distância mais iluminada.’

Minotauromancia!

‘O homem desta guerra e todo contemporâneo deste homem, eu mesmo, todos me parecem tão separados do mundo da natureza! Relacionar-se com um campo, com a graça de uma tarde, parecia-me arbitrário e falso, pois que saberiam a árvore, o campo e a paisagem da tarde sobre esse homem infeliz, devastador e assassino? Mas sempre existe uma conexão inexprimível entre um homem que trabalha e cria em paz e a natureza, ocupada santa e radicalmente.’

‘Nossa tarefa é imprimir em nós mesmos esta terra transitória e caduca, tão profunda, tão dolorosa e apaixonadamente, que sua essência volte a ressuscitar em nós, invisível’, (in)audível.

‘Mantenhamo-nos entre os dentes para a transformação e que ela nos capte de todo em sua cabeça contempladora.’

O Minotauro 'necessita de nós'. O Minotauro 'não pode existir sem o Homem.’

'Que farás, Oh Minotauro? Teu cântaro sou eu (quando me rompa?). Tua bebida sou eu (e quando eu verta?). Tua mirada, que acolho em minha face tíbia, longo tempo caminhará em minha busca e ao por do sol dormirá no seio de pedras estranhas. Que farás Senhor, então? Tenho medo.’

‘Eterno, tu te tens mostrado a mim. Te quero como

um filho bem-amado...’

‘Provemos perdidamente o mel do audível para acumulá-lo

na grande colméia de ouro do Inaudível.’

 

Se Otacílio Melgaço tivesse registrado em um diário íntimo tudo o que erigia ao compor a Obra discográfica 'Minotauromancia', seriam transcrições muito próximas às reveladas acima. Aquelas com as quais se defrontariam nossos instigados, ávidos olhares. Acima, uma adaptação que fiz a partir de escritos rilkeanos. No final das contas, à la Novalis, a tenho como nítidos

Fragmentos Melgacianos.

O Disco, tal qual um Oráculo, nos propõe viagem mítica (ao mesmo tempo uma intra-odisséia) que parte do sertão das Minas Gerais, cruza nichos sonoros que nos entranham em um Egito, uma Grécia, uma China, ..., e um Além-Ocid-Ori-ente imaginários até nos fazer retomar as veredas sertanejeiras dos re-cantos mais amelgaçados para, culminante, estabelecer

o Imensurável como recomeço, repartida.

Otacílio insere no universo da música 'séria': elementos de uma etnicidade espaço-atemporal desafiadora pois a torna berço conjunto a timbres exotizados, ritmos ad libitum, durações imetronometráveis, alturas valecimeiradas. Transita pelo jazz, livre improvisação, poemas de Leopardi, cantos indígenas, (pseudo)silêncios johncageanos, contrapontos báquicos (é válido o trocadilho), etc, etc, etc; nunca aproxima-se de qualquer suspeita acentuação world-music(al) já que tem a perspectiva de compositor contemporâneo a lhe servir de Norte. Norte que o livra de uma tendência atual: a exploração, facilmente desgastável, dos folclorismos afins. Por outro lado, o livra também da fleuma ou do vale-tudismo eruditista pós-moderno. Peças dedicadas a Anton Webern, John Cage, Edgard Varése, Villa-Lobos até Anthony Braxton, Ryuichi Sakamoto ou Cocteau Twins exemplificam a polpa de meu argumento - isso, para nos mantermos restritos ao campo propriamente musical. Chegaríamos à literatura de João Guimarães Rosa, artes plásticas de Yoko Ono...

Sem me aventurar por exegeses arriscadas além dos Fragmentos com que inicio minha resenha, assumir a figura mitológica do Minotauro como Oracularidade,

a meu ver, extrapola a atávica 'minotauromaquia' de Picasso e nos destina, Melgaço, a possibilidades - hoje - mais dignas de nossa atenção porque (se assim posso dizer) fundamental e ontologicamente ascencionais.

Proveremos perdidamente o mel do audível para acumulá-lo

na grande colméia de ouro do além-inaudível Otacílio Melgaço.

 

"Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.]

(Rainer Maria Rilke; ´O Solitário´)

 

SALOMÉ

 

III Opus Nietzsche,Friedrich

VI Opus Rilke,Rainer Maria

 

LOU ANDRÉAS-SALOMÉ:

A PAIXÃO VIVA

 

    Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele qualificou de "raio de sol'.

    A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda: "A única perfeição é a alegria".

    Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro. Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse crescimento

e essa produção implicam o sofrimento.

    Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes:

no que é apenas visível e no que é imenso."

    Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a fruição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.

    (...) Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos ao mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar,

ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo."

E Lou escreve:

"Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que, ao que parece, forma 'um' com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos,

todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."

    Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de ter ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; a impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário,

um exílio onde os deuses nos abandonam".

    A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de

Eva recém-saída de si.

    Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com

a força das plantas na primavera.

"Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro - uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheia de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão fazendo cabriolas diante dela...como se balbuciasse em sonho, ela tem algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias."

    O ato amoroso transforma o parceiro num "conto estranho e maravilhoso".

A Paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível."

    Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer um ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si

por causa do outro.

    A esta altura, a gente poderia se perguntar - não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também,

segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora."

    Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele próprio através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado.

    Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre

como uma parte dela e resiste à dominação mais viva."

    (...) A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até...

- o que dá à relação erótica sua riqueza:

"Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas...e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um no outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular,

a fim de se tornar todo um mundo para o outro."

    É preciso de que a gente seja sempre, um para o outro, duas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine "Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes, felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo um para o outro,

contém por nada o resto."

    E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência

do mistério na relação amorosa:

"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de 'conhecer perfeitamente o outro': por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas, no fundo, o amante não está querendo saber 'quem é' em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta em saber que o outro lhe faz um bem incompreensível..., os amantes permanecem um para

o outro, em última análise, um mistério."

    Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca.

    Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.

    Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno: "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim

a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma."

    E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:

"Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."

    Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca.

    É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é,

três anos antes de morrer, ela escreve:

"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa...do que...sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de

um olhar exterior, logo morTífero."

    E um pouco mais adiante:

"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito, (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."

    A velhice pode ser, assim, uma volta àquela espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar relativizando-se...

    Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente, reintroduzido

no grande encadeamento universal."

    É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças complementares

e não contrárias.

    A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:

"No dia em que eu estiver no meu leito de morte

Faísca que se apagou -,

Acaricia ainda uma vez meus cabelos

Com tua mão bem-amada

Antes que devolvam à terra

O que deve voltar à terra,

Pousa sobre minha boca que amaste

Ainda um beijo.

Mas não esqueças: no esquife estrangeiro

Eu só repouso em aparência

Porque em ti minha vida se refugiou

E agora sou toda tua." [Hino à morte]

    A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida mas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as coisas.

Por isso não a devemos temer.

    A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida, de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor."

Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987, págs. 359-373

- Luzilá Gonçalves Ferreira

 

As colocações da sra. G. Ferreira poderiam ser consideradas uma análoga - metafórica - resenha voltada à esta Obra de Otacílio Melgaço (que se incorpora à nossa audição e se transforma em semente e semeadura em nós). Se alguém escreveu: 'Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro'; Melgaço, inovador,

compôs/gravou/pariu um Disco.

As dez faixas da Prole discográfica, os dez passos da Paixão Viva de Salomé

segundo O.M. e sonorizados por O.M.

Música aleatória, eletrônica, concreta, eletroacústica, livre improvisação...Tape music, turntablism...são algumas das vertentes abraçadas pelo compositor mineiro em, das suas Obras, a mais próxima ao ‘academicismo’. ‘Salomé’ aborta os entrecruzamentos de elementos contemporâneos com sonoridades multi-étnicas ou de cunho 'popular' (como o jazz) para, idiossincraticamente, traduzir com purismo (melgaciano) as composturas próprias a Otacílio diante do legado avant garde que recebeu do século passado. Nomes quintessenciais como Erik Satie, Charles Ives..., mais: Pierre Schaeffer, Karlheinz Stockhausen e seletos outros paraninfariam sutilmente as criações que homenageiam a escritora russa assim como alguns dos notáveis com quem travou vivências. Todavia, um dos mandamentos deste Disco de Melgaço está eternizado nas palavras da própria Lou Andréas:

‘Ouse... ouse tudo!! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!'

 

ALEPH

 

III Chilul Ha-Shem

VIII Olam Ha-Bá

 

FILHO DA ALIANÇA

 

“Talvez seja do compositor francês Héctor Berlioz, autor de um famoso ‘Tratado de orquestração’, a definição de música que conserva toda a sua vigência: ‘Qualquer corpo sonoro utilizado pelo compositor é um instrumento musical.’ A origem dos instrumentos musicais é remota e controversa e sua evolução acompanha a própria história das civilizações. Não há povo da Antigüidade que não tenha feito uso de instrumentos musicais mais ou menos rudimentares, já que a música é uma linguagem espontânea e inerente ao próprio homem, sendo provável que tenha aparecido antes da linguagem verbal. Difícil precisar com rigor a época e o lugar em que surgiu o primeiro instrumento. Muitos existiram em mais de uma civilização antiga. Além disso, diversos instrumentos surgiram, praticamente ao mesmo tempo, em lugares distintos. O certo é que seu uso como entretenimento puro e simples é uma conquista recente,

que remonta à Idade Moderna.

 As culturas primitivas atribuíam a criação dos instrumentos aos deuses, pois acreditavam que a música tinha origem divina. Assim, de acordo com a mitologia grega, a flauta tinha sido inventada por Pan, a cítara por Apolo, a harpa por Narada, o alaúde por Pólux e a lira por Mercúrio. Os antigos chineses, por sua vez, acreditavam que a gênese dos instrumentos musicais estava na tentativa de imitar os sons da natureza. Quando se trata de uma explicação racional, porém, chega-se à conclusão de que a origem dos instrumentos deve estar intimamente relacionada com a dança, o trabalho e as atividades guerreiras ou os ritos mágico-religiosos. A música seria um importante meio de reforço no desempenho dessas atividades básicas do homem primitivo."

 

A Obra discográfica ALEPH do compositor, arranjador e instrumentista brasileiro Otacílio Melgaço nos reporta à concepção primordialista – atual e infelizmente, por parte da maioria dos engendradores sonoros, submetida à rara vigência – de que Música tem como útero: o Sagrado. Aproxima-se Melgaço dos ‘templários’ Levitas ao tomarmos enigmático ALEPH como o enveredamento supremo de um singular artista contemporâneo pela inesgotável inspiração litúrgico-judaica. Se ‘os místicos acreditavam que cada aspecto da natureza, cada criatura cantava sua própria canção a Deus’, as oito epifanias que honram esta Obra representam, pois instrumentais, indizível louvor a Impronunciável Adonai.  E se pensássemos, historicamente, na ‘redenção’ de um reiterante ‘exílio’, ainda submetidos à mesma Mística, seria a redenção realizada ‘através da...canção’. ALEPH poderá, sob prisma chassídico, assumir-se como veículo do 'despertar a alma para a aderência a Deus' por meio não exatamente da alegria mas do que há de ‘musicalizável’ no Hierático ou, deslocando-nos ao mais-além, no sempiternamente Numinoso. Ao retomá-la, ressalto aqui a feição instrumental de ALEPH já que, permanecendo a citar a tradição revivalista inaugurada por Dov Baer de Meirech (a partir dos ensinamentos de Israel Baal Shem Tov): da canção sem palavras, ou nigun, há a penetração aos níveis mais profundos da consciência religiosa. Melgaço, pela estatura de sua inspiração, ambiciona e, a meu ver e ouvir,

conquista inestimável profundidade.

 

Voltemo-nos aos títulos de suas proles:

I Maasse Bereshit II Gan Eden III Chilul Ha-Shem IV Kotel Hamaaravi V Korban VI Chevra Kadisha VII Guilgul Neshamot VIII Olam Ha-Bá

 

 Se pensássemos que ALEPH abriga Octetos de Cordas (duplo quarteto) – e não a tradicional formação com dois violinos, uma viola e um cello –, as emanações musicais ordenadas acima haveriam de ser uma dupla representação de arba kossot, arbaá minim, má nishtaná? Instigante porém impertinente pensamento.

Por outro lado, ao traduzi-lo e interpretá-lo, percebesse o sui generis organograma composicional melgaciano como aguçante pilpul, não pejorativo eu assim o proclamaria. Entretanto, dificilmente me contentaria com criativa tentativa de classificar

a medula alephônica.

Afirmo, ao escutar e auscultar a Obra aqui resenhada, que, ‘quanto ao Oitavo Dia’, sucededor dos ‘seis da Criação e do Shabat, ele é o símbolo da transfiguração, anúncio’ do Eterno, ‘da era futura (eterna).’ Talvez seja necessário o ato de fruir por sete luas ALEPH para que, sob o manto da noite seguinte, compreendamos como bíblica alegoria e ascencional registro discográfico coadunam-se até ao Indiscernível.

Em recente entrevista concedida a mim, Otacílio Melgaço

replica a seguinte indagação:

 

P.S.P. – ‘Como, tão diacrônico, você se sente em relação

ao modus vivendi contemporâneo?'

 

O.M. – 'Eu me pergunto por vezes, colaço Pablo, se fui mandado para cá para me divertir. Para me alegrar?...para esquecer a miséria de outro mundo do qual

não me lembro mais?

Não pretendo ser eu um intruso aqui...

Sonhei, ainda ontem, que me encontrara pessoalmente com messer Satie. Ateu que sou - daí a ironia dos destinos - 'foi numa sessão espírita; ele pairava, o terceiro espírito barbado da direita. Nosso medium, que trabalhava esporadicamente como um enologista descuidado, tinha um excelente contato com ele e oferecia um Blanc des Blancs sempre que o Sr. Satie se tornava rebelde. Foi, na verdade, o aroma que emanava de meu frasco de conhaque (que vazava) e o fato de ele ter reconhecido em mim um companheiro com tendências a conservar', em delírio onírico, 'o fígado embebido em álcool, que atraiu Satie a mim e não aos outros, sóbrios, que estavam à mesa. A bem da verdade, apesar de um odor meio embolorado e uma aparência translúcida de corpo e rosto, ele estava muito bem conservado. Quero dizer: o pince-nez estava perfeitamente pousado, o corte de veludo ainda em moda e o adorável sorriso constantemente em evidência. Apesar de o aspecto geral ser de Satie, não se deve ser descuidado hoje em dia em se provar a genuinidade de um artigo, especialmente quando é volátil. Assim, no meu melhor francês, eu perguntei quais eram suas reações à música atual. Quando ele respondeu, no seu melhor inglês: ‘Não haveria mais cabeças calvas se todos se preocupassem em pertencer à nova Sociedade de Poupança ‘The Aqueduct’ e gastassem as suas economias em loção capilar’, sua identidade foi confirmada. Satie continuava Satie; e juntos nós deixamos nossos companheiros para irmos passear pelo jardim discutindo os efeitos secundários da ingestão de alcachofras de Jerusalém antes de beber um Sancerre medíocre. Deve-se tomar um cuidado especial ao revelar as palavras dos espíritos voláteis. Eles têm pouca paciência com os humanos – especialmente aqueles que dizem: ‘o que mais posso fazer além de apontar um dedo acusador para Deus? Passei a acreditar que o Velho é mais estúpido do que poderoso’. Apesar disso, estou certo de que o Sr. Satie não vai ligar para uma pequena menção póstuma. Ele obviamente concordará com ela, como sem dúvida está de acordo com a divindade. Afetado pela qualidade da noite e do conhaque, ele finalmente virou-se para mim, e, com uma voz suave e chorosa, disse: ‘Eu me pergunto por vezes, se fui mandado para cá para me divertir. Para me alegrar?... para esquecer a miséria de outro mundo do qual não me lembro mais? Não serei eu um intruso aqui...' Com uma repentina rajada de vento a figura dele se foi: assim como meu V.S.O.P. (conhaque).'

 

Ao refletir sobre as bricolagens verbais do inventivo compositor das Minas Gerais, duas personalidades são arbitrariamente convocadas por minha mente: Jean Cocteau e John Cage. Incensaram, respectivas,

a respeito de um esfingético Erik Satie:

‘Pode-se dar Satie como exemplo a todo criador. Jamais se deixou empolgar por um encanto suspeito ou por um golpe de efeito. Jamais escutou as sereias, salvo as sereias interiores. Fechou sempre os ouvidos com cera. Sempre se agarrou, como o prudente Ulisses, ao mastro.’

‘Estranho, fascinante, incomum. Satie não pode ser inserido em qualquer escola, ou estilo, ou tempo, já que a originalidade absoluta não pertence a nenhuma escola, nenhum estilo, nenhum tempo. Religiosidade, misticismo, esoterismo, romantismo, sarcasmo, 'non-sense', absurdo,

Tudo isso é encontrado na música de Satie..’

O nome do compositor (e gymnopedista) francês poderia, com a máxima perspicácia, ser substituído pelo de Otacílio Melgaço porque muito se aproximam as conotações aplicáveis aos dois. Nossos Octetos de Cordas reverberam o paroxismo do século XX ao flertarem com a inventividade de um Stravinsky, Bartók, Schöenberg ou Webern (estes dois últimos, judeus). Contudo apontam para o atual milênio – no qual estamos inescapavelmente inseridos – ao assimilar novas técnicas de mixagem (mistura), masterização e etc, ou seja, abdicando do jargão musical, ALEPH é fruto de uma nova perspectiva da ‘engenharia’ sonora, heróica bússola também

sob exegese melgaciana.

Quem saberá se vítima da iniciática visionaria de um conterrâneo meu - Jorge L. Borges -, neste exato instante epilogal (e, perdão: não creio em coincidências...) enobrece meus olhos a imagem das ‘mãos juntas na forma da benção sacerdotal (birkat kohanim), com signos cabalísticos e duas letras do Tetragrama’. Como me furtar a paralela imaginação - em claro mistério -  das mãos dos instrumentistas que deram tal Obra discográfica à luz? As mesmas mãos que, provável e indelevelmente, deram à luz...ALEPH:

Octagrama fonográfico de Otacílio Melgaço.

 

Tishrei, 5765

Fontes incidentais: Alan Unterman, Alain Gheerbrant

 

OMNIA VINCIT AMOR

 

II in Situ

IV in Sacris

 

ORGANUM PLENUM

 

  O órgão passou dos palácios às igrejas de maneira bastante brusca aos olhos dos historiadores do instrumento, sem que estes pudessem atinar com as causas reais dessa transferência. Uma hipóteses é a de que o padre Jorge de Veneza teria transmitido os segredos da construção a alguns monges, seus alunos. Assim, durante os séculos seguintes a manufatura do órgão teria estado exclusivamente a cargo dos religiosos (ademais, estes representavam, na época, a classe mais culta e intelectualizada).

Na verdade, porém, a introdução do órgão no culto cristão deve ter sido cautelosa, já que os padres da Igreja tinham completo desprezo pela música instrumental. Ademais, não se sabe de nenhuma decisão papal que tenha, à época, oficializado o uso sacro do instrumento, o que só ocorreria a partir do século XVI. A difusão do instrumento nos templos iniciou-se, pois, longe dos olhos de Roma no norte dos Alpes, onde os alunos de Jorge de Veneza teriam ensinado a arte da organaria. No início, os órgãos eram utilizados nas igrejas como instrumentos didáticos, destinados ao ensino da Música. Em torno de 900 aparecem os primeiros tratados acerca dos tamanhos dos tubos e dos diferentes métodos de construção do órgão. Mas é preciso esperar pelo inicio do século X, para se ter certeza de seu aparecimento nas igrejas. Em 915, o Conde Atton mandou edificar um convento em honra a S. Apolônio

e ofereceu à Igreja um cálice de ouro e um órgão.

A Crônica da Vida de Santo Osvaldo narra que no ano de 992... 'em louvor a Deus e a S. Benedito, bem como para ornar a igreja...' ele adquiriu trinta libras de cobre, que destinou à fabricação de tubos de órgão. Com as pontas orientadas para baixo, estes se inserem, em cerradas fileiras nos orifícios correspondentes; e nos dias de festa produzem, graças ao sopro possante dos foles, uma melodia doce e encantadora, que se pode aperceber de longe'. À mesma época o inglês S Dunstan, futuro arcebispo de Cantenbury, ofereceu um órgão ao convento de Malmesbury. Sobre uma placa de bronze podia-se ler: 'O prelado Dunstan (fez) este órgão em honra a Aldheim. Que todo aquele que quiser tirá-lo daqui perca o reino da eternidade'. Em 950, construiu-se na Igreja de S. Pedro de Winchester um órgão monumental com dez fileiras de 40 tubos, num total de

400 tubos. Eram precisos dois organistas para tocá-lo

e setenta fortes homens  para acionar os seus 26 foles.

Assim, após ser utilizado por onze séculos nas cortes e ao ar livre, o órgão insinua-se discretamente na Igreja e vai, aos poucos, identificando-se com as pompas do culto, a ponto de seu uso profano ser com freqüência ignorado pelos cronistas até épocas bastante recentes. No século XII, o órgão é tão apreciado pelos padres que é até objeto na maior parte das igrejas da Europa - mesmo nas maiores, como as catedrais de Reims e Paris -, e em inúmeros conventos. Mas seu uso sacro ainda é objeto de controvérsias. Enquanto o Concílio de Milão (1287) admitia a participação do órgão nas cerimônias do culto, o capítulo de Ferrara (1290), entre outros, decide excluí-lo da missa.

 

-  Evolução Técnica -

 

Do  século XIII ao XV, o órgão conheceu uma importante evolução técnica, no curso da qual adquiriu boa parte de seus elementos essenciais. Foram as seguintes as modificações estruturais que o beneficiaram: sistema de tração reduzido, abandono do diâmetro constante dos tubos, pedaleira, multiplicação dos teclados manuais, redescoberta da registração, construção do bufê. A construção de órgão de grandes dimensões, como o de Winchester, esbarrava na inexistência de um sistema de tração apropriado (transmissão do movimento das teclas às válvulas que permitem a entrada do ar nos tubos); assim, era preciso repartir as teclas por toda a extensão do instrumento. Para tocá-lo, eram necessários dois ou mais organistas, no caso de instrumentos grandes. Com a descoberta do sistema reduzido, origem do teclado, foi possível reunir as teclas no centro do instrumento que, então, já podia ser tocado por apenas um organista. Graças a esse sistema, o número de teclas também pode ser aumentado para

o grave e para o agudo.

Todos os tubos de uma mesma fileira (registro) tinham o mesmo diâmetro, sendo a altura da nota determinada unicamente pelo comprimento destes. Ora, com isso só é possível até uma certa extensão - duas ou três oitava (além da qual os tubos graves se tornavam estreitos demais, e os agudos largos demais) - o acréscimo de notas no agudo e no grave determinaram o abandono desse sistema, passando os tubos a ter diâmetros diferentes,

Isso permitiu a construção de instrumentos bem maiores.

Bem cedo os órgãos foram equipados com bordões para as notas sustentadas do baixo; com esse dispositivo, os tubos eram acionados não pelo teclado, mas por válvulas colocadas do lado esquerdo do instrumento, à altura das mãos do executivo. Depois, passaram a ser acionadas com os pés, constituindo, já uma espécie de pedaleira. Em seguida, uma pedaleira formada por teclas - um teclado para os pés - passou a ser acoplada ao teclado manual e, por fim, tornou-se independente, contando com os jogos de tubos próprios.

A multiplicação dos teclados manuais, teve início no século XV, até então, a maioria das igrejas possuía dois tipos de órgãos: o grande órgão, destinado a inundar o templo de som; e o positivo, órgão bem menor que servia para acompanhar o coro. O primeiro era fixado à parede enquanto o segundo podia ser transportado. Isso obrigava o organista a se deslocar constantemente durante a missa, fato bastante incômodo. Assim surgiu a idéia de fixar o positivo à balaustrada da tribuna, atrás do organista (daí ser chamado 'positivo de costas'), superpondo-se os dois teclados. Mais tarde, desenvolveu-se um mecanismo que permitia acoplar os dois teclados.

O  órgão antigo possuía fileiras de tubos com timbres totalmente diferentes, utilizáveis separada ou conjuntamente. Durante a Idade Média, o órgão sofreu tantas modificações que terminou por perder sua registração (jogos de tubos de diferentes timbres); além de fileiras serem constituídas por tubos semelhantes, estas só podiam soar juntas, daí o instrumento ser designado 'organum plenum'. No final da Idade Média, verificou-se um retorno a idéia de destacar certas fileiras de tubos e utilizá-los separadamente, individualizando seus timbres. A partir de então, há uma preocupação em se conseguir novos timbres, produzindo-se tubos diferentes dos já conhecidos quanto

à forma e ao material de que são feitos.

Igualmente no fim da Idade Média surge o bufê, caixa de madeira que abriga os tubos e é aberta na parte superior, onde são dispostos os tubos da fachada. O bufê destinava-se unicamente a proteger o órgão. Não entanto, foi em pleno século XX que se descobriram suas propriedades acústicas (reverberação e projeção do som), quando sua construção foi momentaneamente

abandonada pelos construtores.

(Associação paulista de organistas)

 

E é ao Século XX que nos dirigimos agora. Especialmente palmilhamos em direção à música para órgão de um - além de Bach - dos maiores  ícones humanísticos para Otacílio Melgaço: Olivier Messiaen.

O.M. : O.M.

Parte do inconsciente coletivo em torno do qual órbita Melgaço, o instrumento aqui eleito também configura-se emblema-mor de tudo o que faz da religiosidade e da música: tácita comunhão. No estado de Minas Gerais (Brasil) há sólida tradição, basta conferirmos o quanto a cidade de Mariana e o Caraça servem de hospedeiros e bastiões do/ao que declaro acima. Não obstante um artista intemporal, Otacílio em Omnia Vincit Amor articula eixos medievais, ‘messiaenicos’ e contemporâneos em mesma estrutura e com isso deixa de ser um mero releitor (requentador?) do passado ou cacofônico futurista. Seu compromisso é com o 'Inefável'...: basta tentarmos auscultar (a inserção d)as profusas poesias em latim nessa obra fonográfica para compreendermos isso. E é em Século XXI que nos confraternizamos agora. Organum Plenum, terminologia quase ou sobretudo Mística, aura que redunda em halo à quíntupla peça melgaciana. Do Amor, fratermônico Elogio -

em outras palavras: feição-ágape de O.M.

Esférica fluídica Música...

 

CARNIVÀLE

 

Fragmento de Faixa Única - Tempo Total de Duração: 00:55:04 

 

TRANSRRITMIA EM MELGA

 

TIMBRES: a maior preocupação com os timbres leva à inclusão de sons estranhos, intrigantes e exóticos; fortes contrastes, às vezes explosivos; expansão e, de modo geral, o uso mais enfático da seção de percussão; sons desconhecidos tirados de instrumentos conhecidos, como instrumentos tocados em seus registros extremos, (...) sons inteiramente novos, provenientes de aparelhagens eletrônicas, computadores, fitas magnéticas, amostradores de sons (samplers), sintetizadores, dentre outros aparelhos.

 

RITMOS: vigorosos e dinâmicos, com amplo emprego de sincopados (a acentuação incidindo sobre os tempos fracos); métricas inusitadas, como compassos de cinco ou sete tempos (cujas raízes muitas vezes estão na música folclórica); mudanças de métrica de um compasso para outro; uso de polirritmias - diferentes ritmos ou métricas ocorrendo ao mesmo tempo, resultando em um contraponto rítmico; artifícios de ostinato (repetição 'obstinada'), ou de enérgicos 'ritmos motores', que impulsionam inexoravelmente

a música para frente.

 (Paulo Motta)

 

Carnivàle é uma Obra de Timbres e Ritmos... E de Poesia Sonora. Otacílio Melgaço nos oferece uma Peça para Percussão com intervenções recitativas (alusões a Joseph Beuys, Man Ray, Gertrude Stein etc) de uma proporção exuberante. Musicalmente aqui, Edgard Varése e Pierre Schaeffer são duas referências reincidentes na fortuna composicional de Melgaço e atingem seus píncaros em lastros excitantemente ensurdecedores de Carnivàle. Ensurdexcitantes: neologismo a se considerar. O título da Obra não deixa de ser irônico se pensarmos em uma das estampas mais propagadas da cultura do país que engendra Otacílio (Brasil) e, a meu ver, O.M. assume uma tessitura mesmo cáustica quanto à estereotipia burlesca que o Carnaval lança ao mundo como vitrine (sic) da Terra Brasilis. Creio que é uma resposta dada pelo compositor e instrumentista a si mesmo, reconfigurando como haveria de ser a ‘Festividade da Carne’ que unta sua artisticidade georufante a tempos ritualísticos (báquicos!) imemoriais. Os legados branco (europeu), indígena (autóctone) e negro (africano) encontram em Carnivàle uma expressão intrigante na torrente criativa desse Homo Ludens

das Minas Gerais.

 

 

 

 

MARIENBAD

 

Fragmento de Faixa Única - Tempo Total de Duração: 00:59:37

 

ANNÉE DERNIÈRE À...

OU

   MELGAÇO COMO AMNÉSICO MEMORIALISTA

 

"Quando eu era jovem, as pessoas diziam: 'Você verá, quando tiver 50 anos'.

Tenho 50 e ainda não vi nada.

 Devo dizer que eu não poderia ser pupilo de ninguém a não ser de mim mesmo.

Os que não compreenderem são solicitados, por mim, a observar

o mais respeitoso silêncio e a demonstrar uma atitude de

inteira submissão, de total inferioridade."

(Erik Satie)

 

‘Mostrem-me algo novo, que começarei tudo outra vez’, Satie costumava dizer. E fez. Foi um precursor exponente de diversas tendências e desenvolvimentos importantes do século XX: bitonalidade, politonalidade, harmonia não triádica, jazz, ‘musique d'ameublement’ (que seria a precusora da música ambiente). Adotou também uma técnica desafiadoramente modernista e colocou

títulos esdrúxulos em suas peças.

Tanto as Gymnopédies como as Gnossiennes foram escritas ainda no século XIX, o que não deixa de causar admiração, sobretudo se pensarmos que a sua simplicidade quase irreal e o seu despojamento musical contrastam radicalmente com a grandiosidade e a complexidade harmónica do universo musical wagneriano. Universo a que os compositores do final do século XIX se tinham vergado completamente. E até na sua duração estas pequenas peças para piano (entre 2 e 4 minutos cada) se destacam de tudo o que então se podia ouvir. São peças que soam inegavelmente a século XX e que abriram as portas a uma verdadeira revolução musical francesa que começou com Debussy.

A música de Satie foi na altura apreciada por poucos e desprezada pela maioria dos compositores e críticos musicais. Diversas fragilidades lhe costumavam ser apontadas, a mais importante das quais se referia à sua deficiente formação enquanto compositor e pianista. Dizia-se então que as suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental eram apenas o reflexo de um compositor de fracos recursos técnicos. A verdade é que Satie tinha consciência das suas debilidades, tanto que em 1905 chegou a frequentar aulas com músicos prestigiados, abandonando por algum tempo a vida boémia a que se entregara com empenho — incluindo as sessões do Café du Chat Noir, em Montmartre, onde tocava todas as noites sob o nome de Gymnopédiste. Só que, entretanto, acabou por se desinteressar das aulas e, após cerca de 15 anos sem compor, decidiu retomar a composição e regressar à vida nocturna de Paris. Mas as suas peças continuaram a ser profundamente originais e discretamente subversivas, buscando inspiração num ambiente artístico estranho aos circuitos institucionais: os bares e cabarets que ele conhecia tão bem. A originalidade das suas peças manifestava-se também, com algum humor, nos próprios títulos que escolhia: Sonatina Burocrática; Prelúdios Flácidos (ambos incluídos neste disco e o último dos quais é dedicado a um cão); Desportos e Divertimentos; Antepenúltimos Pensamentos. Tentou ainda refutar a crítica de que as suas obras careciam de forma ao compor um conjunto de sete peças a que deu o nome de Três Peças em Forma de Pêra. Entre as obras que não se destinam ao piano, destacam-se a cantata Socrate e o ballet Parade, o qual contou com a colaboração do seu amigo Jean Cocteau e que incluía uma máquina de escrever e uma pistola no leque de instrumentos usados. Quando morreu, em 1925, consumido pela exigente vida noturna parisiense da época, tinha já conquistado um lugar único na música francesa e a admiração de figuras como Ravel. Também o iconoclasta John Cage viria a ser um dos grandes admiradores de Satie.

Satie é relevante? Nos termos johncageanos, 'Para interessar-se por ele, é preciso ser desinteressado para começar a aceitar que um som é um som e um homem é um homem, desistir de ilusões sobre idéias de ordem, expressões de sentimento e todas as nossas outras armadilhas estéticas herdadas.'
Não é uma questão de relevância.
Satie é indispensável.
Soam ensurdecedoiramente caricatos - aos meus olhos - apontamentos que lhe imputavam ridiculismos, bufonâncias: caricaturices... Afiguram-se ofuscantemente excentrisísmicos - aos meus ouvidos - o divisá-lo mero exotista.
'Somos enganados pelo conhecimento', cria F. Mompou, pois toda a verdade está no instinto: a grande lição de Satie é esta.
(Otacílio Melgaço)

 

Destacar a menção titular feita ao filme de Resnais, me parece um ato de óbvia necessidade. Assistam ou reassistam à obra cinematográfica, melhor prólogo às proposições pianísticas de Melgaço não há. Se há o fundamentalista órgão na trilha sonora lá, aqui o piano (perpassando a devoção que O.M. tem por Satie) defende outro dimensionamento musical, provavelmente menos sacrário - certamente mais herético, ordenadamente orgiástico.

Marienbad nos traz um Melgaço filofonista, fonoscópico, fonometografista... Um Melgaço: Monsieur le Pauvre, L’Enfant Terrible, The Velvet Gentleman? Não são Proposições impressionistas pois não é uma arte invertebrada aquela que dá conteúdo ao presente registro em teclas. Em Marienbad, as teclas dos pianos de Melgaço são como vértebras! Uma prova musical de que O.M. é um músico medieval e doce, perdido neste século XXI? Quiçá? O que posso deflagrar é o mesmo que Cocteau a respeito de Erik: ‘Jamais escutou as sereias, salvo as sereias interiores. Fechou sempre os ouvidos com cera. Sempre se agarrou, como o prudente Ulisses, ao mastro.’ Ou melhor, oxalá Otacílio, a cada Obra, queime seus navios e assim, a proliferar divas sereias interiores, retire de nossos ouvidos quaisquer ceras para todo o sempre...

. . .

E que os ouvidos preencham todas as reticências!

 

SPLEEN

 

I iZaac & muttner

VIII Zoopolitik

 

DO R-U-G-I-T-U MELGACIANO

 

I -

 

No senso comum, a palavra ruído significa barulho, som ou poluição sonora não desejada. Na eletrônica, o ruído pode ser associado à percepção acústica, por exemplo: de um "chiado" característico (ruído branco) ou aos "chuviscos" na recepção fraca de um sinal de televisão. De forma parecida à granulação de uma foto, quando evidente, também tem o sentido de ruído. No processamento de sinais, pode ser entendido como um sinal sem sentido (aleatório), sendo importante a relação Sinal/Ruído na comunicação. Na Teoria da informação

o ruído é considerado como portador de informação.

O ruído faz-se presente nos estudos de Acústica, Cibernética, Biologia, Eletrônica, Computação e Comunicação. Há

 

  • Ruído branco - Aplica-se aos ruídos cuja potência é constante em todas as faixas de frequência, por exemplo, ruído térmico.

  • Ruído rosa - Aplica-se à testagem de sistemas de áudio.

  • Ruído vermelho ou ruído marrom - Aplica-se a ruídos ricos em baixas frequências.

  • Ruído térmico - Aplica-se a qualquer corpo aquecido.

  • Ruído flicker - Aplica-se a semicondutores, válvulas e resistores.

  • Ruído browniano - Aplica-se a ruídos que podem ser modelados por movimentos brownnianos da estatística.

  • Ruido balístico - do inglês shot noise. Aplica-se a válvulas e junções semicondutoras.

  • Ruído pipoca - do inglês popcorn noise. Aplica-se a semicondutores.

  • Radiação cósmica de fundo ou ruído de fundo do universo - Aplica-se na cosmologia como evidência do Big-Bang.

 

Classificação:

 

  • Ruído natural - refere-se à ruídos de causas naturais tais como radiação cósmica de fundo, ruídos atmosféricos, ruídos inerentes a dispositivos passivos e ativos da eletrônica.

  • Ruído artificial - refere-se a ruídos de causas artificiais, como por exemplo, ruídos de interferência.

  • Ruído exógeno - refere-se às interferências externas ao processo de comunicação, como outra mensagem.

  • Ruído endógeno - refere-se às interferências internas do processo de comunicação, como perda de mensagem durante seu transporte ou má utilização do código.

  • Ruído de repertório - refere-se às interferências ocorridas diretamente na produção ou interpretação da mensagem, provocadas pelo repertório dos emissores e receptores.

II -

 

Em francês, o termo spleen representa

o estado de tristeza pensativa ou melancolia.

 

Etimologia

 

A palavra é de origem grega splēn. Na língua inglesa significa baço. A conexão entre spleen (o baço) e a melancolia é oriunda da medicina grega e a teoria dos humores. Um dos humores era a bílis negra segregada pelo baço e associada com a melancolia. Em oposição a esse conceito, o Talmud aponta o baço como o "órgão da risada", ainda que não esteja descartada uma anterior relação com

a medicina dos humores sobre esse órgão.

Em alemão, a palavra "spleen", representa alguém sempre irritadiço. O baço, ao contrário, é chamado de "Milz" (parecido a "Milte", palavra que se dava ao baço em inglês antigo). No século XIX dizia-se que as mulheres mal-humoradas estavam afetadas pelo spleen. Em inglês moderno "to vent one's spleen"

significa "expressar sua ira".

Na China, o spleen '脾 (pi2)' é um dos fundamentos do temperamento e se supõe que influa no poder da vontade. Assim como "venting one's spleen" (expressar a ira), "发脾气" é uma expressão utilizada em chinês.

 

Na literatura

 

O termo foi popularizado pelo poeta Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), mas já havia sido utilizado antes, particularmente durante a literatura romântica,

no começo do século XIX.

Spleen esteve presente tanto no romantismo europeu como no brasileiro. A palavra denotava melancolia extrema, desejo de autodestruição, onde a morte é a única solução definitiva para os problemas do homem. Na morte seria encontrado o alívio que é vida, em um ciclo:

Vida - Fardo - Morte

Morte - Alívio - Vida

No romantismo brasileiro essa característica foi especialmente

notada na poesia de Álvares de Azevedo.

(Wiki)

 

III -

 

"(...) Às nuvens ele fala, aos ventos desafia

E a via-sacra entre canções percorre em festa;

O Espírito que o segue em romaria

(...) ergue sereno as suas mãos piedosas,

E o fulgurante brilho de sua vidência

Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:

(...) Nas radiantes fileiras das santas Legiões

(...) à comunhão secreta

Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações."

("Bénédiction" in Spleen et idéal - Baudelaire)

 

Em SPLEEN, Otacílio Melgaço utiliza amplamente ruídos como mecanismos de criação, instrumentalização e confecção sonoras. Talvez seja a primeira de suas Obras em que tenha tão ostensiva e avassaladoramente lançado mão de tais artifícios para excitar-nos a audição e o imaginário! Em um de seus relatos, O.M. cita a relação colórica entre o ato de musicar e o de pintar na medida em que pautava alguns de seus engendros a partir de fonopinceladas marrons, vermelhas, rosas e brancas... Em outra feita, simulara sinergias: aspectos térmicos de (seus) corpos sonoros. Em suma, toda a gama detectável das vértebras ruidosas está presente aqui. Ainda mantendo em foco a terminologia com que inicio minha resenha, as intervenções melgacianas acabam por, a mim, soar poéticas, radioativamente poéticas! Traduzo: se os chamados ruídos de fundo do universo podem ser vislumbrados por nós enquanto elementos de uma cosmologia que 'fonetiza' o Big-Bang, as cosmogonias interiores - com que somos prenhados ao ouviver mais uma face intrigante da prole de O.M. - se revelam enveredamento inescapável a qualquer um que se considere verídico Ouvidor de novos século/milênio - recentemente inaugurados e que devem ser, via contemporaneidade-em-ultra-andamento, retumbados. Freneticamente ribombados através de uma Arte que lhes faça visceral jus - tal qual,

indubitavelmente, SPLEEN!

 

P.S.: Uma suspeita: o elemento-letra 'Z', maiusculado e obsessivo, trespassando todos os batismos lewiscarrollianos das óctuplas músicas, pode trazer a lume irresistível  ultraísmo da 'onomatopoeia' melgaciana.

 

P.P.S.: Fragmento de um Erotolóquio: o enfeitiçamento que Baudelaire (ou, extrapolando, dandismo ou decadentismo ou...) causa em nosso artista é mais que notório. Nesse sentido, não se faz necessária qualquer explanação que justifique a palavra de origem grega adotada - tanto em seus lastros românticos quanto simbolistas: seria um truísmo. No entanto, é, em princípio, (prova dos bons e maus humores de O.M.) uma ironia misógina o entrecruzamento da imagem que figura em capa do presente álbum e o título do mesmo. Somente - e equivocadamente - 'em princípio'. Ninguém mais filógino que Otacílio

- apesar de que, em todo

G-ê-n-i-o,

isto é, Àquele que se debruça por sobre O Ato das vivificações artísticas com suprema devoção sacerdotal (e, o mais relevante: em numinosa hierogamia com as Musas), há, suponho, regaço a relances pontuais de ginecofobia - em nome dos desbravamentos solitários do Paralém. Retomando a selva escura, selva selvagem: permitam-me adiantar uma dentre várias decifrações que mais esse enigma proposto em SPLEEN comporta: seria a 'Dentata' - verdadeiro antídoto - sugerido por Melgaço - a enruidado spleen?

Vida - Fardo - Morte / Morte - Alívio - Vida:

haveria um melhor encadeamento conotatório possível a icônico-mística (endógeno-exógena) 'Vagina'?

 

Poesia Sonora_____________________

 

BLOOMSDAY

 

Fragmento de Faixa Única (Trilógica: Telemaquia Odisseia Nostos) - Tempo Total de Duração: 00:38:27 

 

UM DIA NA VIDA DE UM CERTO BLOO.M.

 

1

 

'Joyce é o maior prosador do século XX'.
Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extremos.
Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust.
Há Kafka. Thomas Mann.
– Faulkner!
No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza

o pensamento ideológico.
– Solidão aristocrática.
– Insensibilidade aos problemas reais do seu povo.
– Elitismo hermético.
– Intelectualismo pedante e cosmopolita.
Do outro lado, cada vez mais abundantes

os que objetam.
Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve.
– Maior que Cervantes? E Quevedo?
– E Balzac?
– E Stendhal? E Flaubert?
– E Dostoievski?! E Tolstoi?!
Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior?
Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinsky (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida).
Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de 'Dublinen-ses' (1906), 'Retrato do Artista Quando Jovem' (1914), 'Ulysses' (1922) e 'Finnegans Wake' (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um 'romance de formação' (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as 'Confissões', de S. Agostinho), os 'Dublinenses' e o 'Retrato' ainda cabem dentro da

estética textual do século XIX.
'Ulysses', porém, é puro século XX, o século das megaló-poles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o 'Wake'.
Mas o 'Ulysses' ainda é, apesar de tantas inovações, um ro-mance,mesmo que seja o 'romance para acabar com todos os romances', do dito célebre.
O 'Wake' já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê?
'Ulysses' foi difícil (é cada vez menos).
O 'Wake', cápsula do tempo, é ilegível

(por enquanto). (1)

A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no 'Ulysses', fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcio-nista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em 'Xogun', 'best-seller' mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda.
'Ulysses'/Joyce é influência determinante na prosa mais criativa deste século. E a lista dos influenciados, direta ou in-diretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil ('O Homem Sem Qualidades'), Broch ('A Morte de Virgílio'), Guimarães Rosa, Carlo Emílio Gadda, Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

 

2

 

Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre

as quatro obras-primas de Joyce.
Nos trinta anos entre os 'Dublinenses' e o 'Wake', sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica.
O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Du-blin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.
O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido.
Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia taxa,

'agenbite of inwit', memória,

o único tempo possível,
Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos 'Dublinenses' ao 'Wake'.
Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

 

3

 

'Os Dublinenses': a Irlanda, vista do lado de fora.
'Retrato do Artista' : a Irlanda, vista de dentro.
'Ulysses': entrechoque entre o fora e o dentro, "monólogo interior", o Dia,

a História.
'Finnegans Wake': síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem,

a Noite, o Sonho.
Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, 'Giacomo Joyce' faz as vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude,

de uma fantasia erótica.
Alinha, assim, com os livros de poemas, 'Chamber Music' e 'Pomes Penyeach', performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos 'Cantares' de Ezra Pound e do

'Waste Land', de T. S. Eliot.
Ou com 'Exiles', a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.
(...)

Paulo Leminski
Do livro "Giacomo Joyce"
Editora Brasiliense, 1985

 

(1) É preciso entender, é claro, que a incompreensibilidade de uma obra é, como tudo mais, historicamente determinada: questão que sucessivas leituras irão pouco a pouco resolvendo, até criar em torno do corpo estranho certo número suficiente de constelações hermenêuticas, interpretações, diluições, sobretudo, que nos permita pisar no terreno firme da redundância, do já sabido, do "estou começando a entender". Em arte, o novo sempre se manifesta

sob a modalidade do difícil.

(Nota de Leminski)

 

Suponho ter sido objetivo de Melgaço, na medida em que reproduz musicalmente a mesma subdivisão cronomitológica de 'Ulysses' assim como é demarcada por estratégico-pontuais passagens verbais, estabelecer analogia com o 'monólogo interior'. Ainda Leminski: 'Monólogo interior' parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, 'disse consigo', 'pensou', 'refletiu', e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor. A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, lingüisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si, em lugar de um narrador. É a linguagem de Deus, o narrador onisciente. O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, consequentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura. Alguns traços dele em 'O Vermelho e o Negro', de Stendhal (1830). E em Dostoiesvski (1821-1881). O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato.

U n d e   D e r i v a t u r

 Da personagem principal de 'Ulysses': aos iniciados que dominam ou mesmo comemoram o junino dia de Bloom, meio caminho andado à decifração da altitude da Obra de Melgaço. Aos que não, por ventura sugiro que partam logo no encalço das exegeses... Proposição minha que é um jogo, jogo que é odisséia carnavalizada no sentido mais edificador.

Permito-me adiantar o fato de que O.M., em performático lirismo, reveste as intervenções unidiário-poéticas (vozes do próprio artista, além de menção a Joyce, Artaud, Breton etc) com uma perspectiva estupefaciente: coloraturas instrumentais com o mesmo caráter, se assim posso dizer, ‘monologal’ (monophonologal) e sobretudo que se passam no âmago,

no mais íntimo da sua/nossa alma.

Em paráfrase ao Giacomo irlandês, ouvivemos Bloomsday através dos melgacianos lábios lúbricos longamente lânguidos... Sim: sílabas breves em som e fúria. Um breve bater de pálpebras vocais. E como disse: nossas almas, também se dissolvendo, derramando e vertendo e transbordando

uma semente líquida e abundante...

 

Coletâneas Sui Generis_______________

 

ÚTERO QUE ENCERRA ÁUREA ERA - TRÍPTICO

Edição Limitada que contém a Trilogia melgo-rosiana 

Desiderium/O Nome do Rosa/Veredas Mortas. 

 

"Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incide
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno...

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!...

Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,
Pouca de terra oferecida à luz,
Prezo este sítio, que dominam tochas,
Composto de ouro, pedras e ciprestes,
Onde mármores tremem sobre sombras.
Eu sou em ti recôndita mudança!

Em sua noite grávida de mármores,
Entanto, um povo errante entre as raízes
Tomou já teu partido, lentamente.

Dissolveu-se na mais espessa ausência;
Bebeu vermelho barro a branca espécie;
Passou às flores o dom de viver.
O riso agudo de afagadas jovens,
Olhos e dentes, pálpebras molhadas,
O seio ousado desafiando o fogo...
Tudo flui! Porosa é minha presença;
A sagrada impaciência também morre.

Ele vê, quer, sonha, ele toca:
Minha carne lhe agrada, e até no leito
Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!
Feriste-me com tua flecha alada,
Que vibra, voa e que não voa nunca.
O som engendra-me e a flecha me mata!
O sol... Ah, que sombra de tartaruga
Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!
Rompe meu corpo, a forma pensativa!
Bebe meu seio, o vento que renasce!
Esta frescura a exalar-se do mar
A alma devolve-me... Ó, poder salgado!
Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,
Pele mosqueada, clâmide furada
Por incontáveis ídolos do sol,
Hidra absoluta, ébria de carne azul,
Que te mordes a fulgurante cauda
Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!"

Fragmentos de

‘Cemitério Marinho’,

Paul Valéry

 

“ÚTERO QUE ENCERRA ÁUREA ERA, UM TRÍPTICO”

de Otacílio Melgaço

(dedicado a messer João Guimarães Rosa) é constituído por:

·        Embornal artesanal;

·        Três Obras discográficas:

Desiderium/O Nome do Rosa/Veredas Mortas;

·        Encarte em folha A 3 contendo exclusivos

Portrait de O.M. e Resenha de Pablo S. Paz;

·        Rosa em crochê;

·        Pedrinha e Pau de Canela oriundos de Cordisburgo;

·        Sachê de Chá.

Copyright O.M ©. - Todos os Direitos Reservados

 

"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que

a gente tem saudade?'”
(Campo Geral, J.G.R.)

 

As Minas Gerais já foram Mar...

Hoje, nas palavras de Melgaço, são Cemitério Marinho.

A Trilogia de O.M. - que se faz Trindade ofertada a João Guimarães Rosa e aos Gerais - encontra finalmente seu embalsamento ideal: um Embornal que se confunde com soberba Caixa de Pandora. Das relíquias de Burgo do Coração, terra natal rosiana, aos intermeios alinhavados das 3 primeiras Obras discográficas de Otacílio: raramente a Mineiridade encontrou em sua História uma expressão tão catecúmena.

Farei a seguir um ousado cotejo. Primeiramente tratarei do homem e artista Otacílio Melgaço em paralelismo a depoimentos de seu messer Guimarães Rosa. Depois, lançarei holofotes à Obra de O.M. em réplicas a fragmentos das Escrituras do incomparável escritor de Cordisburgo.

 

I

 

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."

J.G.R.

 

Há homens que têm como ponto de partida existencial:

a profundidade das almas...

 

“Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”

J.G.R.

 

Há homens que percebem o quanto Babel é necessária.

E sabem muito bem qual é a solução: saber-se traduzir.

 

“Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre 'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo,

com o bilhar ou com o futebol.”

J.G.R.

 

Há homens que primam pela prospecção do Subjetivo,

pela pureza das ontologias...

 

“Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos... Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6:15 h, comer frutinhas, na copa da alta árvore pegada a casa, uma tucaneira, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas

e inesquecíveis de minha vida.”

J.G.R.

 

Há homens que conjugam, dedicados à Gaia, um verbo em especial: religar.

 

“...também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas

das células cerebrais. Não repare.”

J.G.R.

 

Há homens que por vezes encontram diante de si um mundo que, pelas mãos de outros homens, pode se fazer asfixiante. Viver se torna muito perigoso contudo ainda pujantes e heróicos tais primeiros homens...

 

“Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João.”

J.G.R.

 

Há homens que insistem em atestar que a Eternidade existe...

 

"Às vezes, quase acredito que eu mesmo,
João, seja um conto contado por mim."

J.G.R.

 

Há homens que proclamam a indiscernibilidade entre a vida e a arte...

 

"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas."

J.G.R.

 

Há homens que encontram sua natividade na própria solitude e têm

o eu-profundo como infinita fonte...

 

"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte."

J.G.R.

 

Há homens que, perante o triunvirato sofrimento/consciência/morte, se fazem taumaturgos, iconoclastas e guerreiros.

 

"Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé

no caminho penoso, que já conheço."

J.G.R.

 

Há homens que se entregam à Criação como se Deuses fossem... E não serão?

 

"Eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado - só lucidez e angústia."

J.G.R.

 

Há homens que se transformam em intermédiuns entre

as coisas da Terra e as dos Céus.

 

"Não me envergonho em admitir que Grande Sertão Veredas me rendeu um montão de dinheiro. A esse respeito, quero dizer uma coisa: enquanto escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito, porque eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, como sou um fanático da sinceridade lingüística, isso significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele".

J.G.R.

 

Há homens que somente encontram um destino aos reembolsos materiais:

a feitura de mais e mais sonhos...

 

"A inspiração é uma espécie de transe.
Só escrevo atuado, em estado de transe..."

J.G.R.

 

E, por fim, há homens que ainda se sobre-humanizam em nome do sacerdócio chamado Inspiração.

 

II

 

“ - Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano pleiteia a ubiqüidade...

 

"A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão."

(G.S.: V.)

 

Eis que tal Obra melgaciana prima pelo grau de sorvedura do Belo. E, em sua dimensão mineiramente Mística, declara irmandade, fraternidade siamesa à ligadura (estético-exotérica, plástico-esotérica) existente entre a compleição do que é um/o Tríptico e crística Tríade.

(nota: sobre Trítpico, vide:

http://www.artlex.com/ArtLex/t/triptych.html

http://en.wikipedia.org/wiki/Triptych)

 

"‘Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...’ foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia.”
(Grande Sertão:Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano abre os umbrais ao artisticamente imensurável...

 

“Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano é o próprio Absurdo de saber-se divinamente transmimético por sentir-se a tudo religado.

 

“O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento,

feito um decreto:
- Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... - que era como se Diadorim estivesse dizendo.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano apanha -  como nós os frutos de frondosas árvores da vida - o silêncio de sentimentos, emoções...e a decretada

querência de sermos todos o UNO.

 

"Arco íris proxíssimo! parece andar com o trem. Seu verde é belo - bórico - vê-se o roxo, anil. Não tem raízes, não se encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d'água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro. como o trem divide o mundo"
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano guarda em si mil trens de ferro em seus mil e um trilhos que dividem e multiplicam os mundos... Trens sem e com raízes, trens que concomitantemente levitam e que se lançam aos geralistas minérios...

 

“Acordei último. Alteado só se podia nadar no sol. Aí, quase que não se passavam mais os bandos de pássaros. Mesmo perfiz: que o dia ia dever ser bonito, firme. Chegou o Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: nenhumas novidades. Para o Cererê-Velho recambiei aviso: nenhumas novidades minhas também. O que positivo era, e do que os meus vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, mesmo, por mais, que eu quisesse ficar previnido, o dia era de paz.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano galga o Sol como espaço de se nadar...

Nada e nado de paz...

 

“Diadorim a vir - do topo da rua, punhal em mão, avançar - correndo amouco... Aí, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que - fechou o fim e se fizeram.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano cumpre o rito, abre o círculo virtuoso e depois o fecha, fecha o fim e nos faz virtuosos também. E recomeça...

 

"O sertão é do tamanho do mundo."

(G.S.: V.)

 

Eis que o Tríptico melgaciano faz de seu berço os confins de um Sertão sem fim.

 

“Eu estou depois das tempestades.
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos,

tirante o que vem do Céu. Eu sei.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano depois das tempestades. Anunciador das tempestades. Beira sem eira, os escuros e as iluminuras celestes.

 

“Diadorim tinha morrido - mil-vezes-mente - para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.
- ‘E a guerra?!’ - eu disse.
- ‘Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!...’
Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano faz menção à alegoria crística: obra de pintura ou de escultura, constituída de um painel central e duas meias-portas laterais capazes de se fecharem sobre ele, recobrindo-o completamente. Obra de Música a nos recobrir completamente.

 

“Sufoquei numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim.
Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo e disse...
Diadorim - nu de tudo. E ela disse:
- ‘A Deus dada. Pobrezinha...’
Diadorim era mulher como o sol não ascende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.”
(Grande Sertão: Veredas)

 

Eis que o Tríptico melgaciano, andrógina Minas,  doação aos esperados Deuses.

 

“O céu vem abaixando. Narrei ao senhor.
No que narrei, o senhor até ache mais do que eu, a minha verdade.
Fim que foi. Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.”

(G.S.: V.)

 

Eis que o Tríptico melgaciano inacaba aqui. E ali e acolá. E lá acolhe-nos...

 

E p í l o g o

 

Um chamado João

 

"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?

Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?

Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,

civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?

Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeíam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.”

(Carlos Drummond de Andrade)

 

O.M. existe?

É de se pegar?

“ÚTERO QUE ENCERRA ÁUREA ERA”

Sim, era, é de se pegar.

 

GÊMEOS DE COCTEAU 

Fragmentos (remisturados/remixados pelo próprio O.M.) 

de Duas das Quinze Faixas - Títulos em Numerais Romanos - 

Tempo Total de Duração: 01:18:55 

 

- XII -

- XV -

 

ANTICAIXA DE PANDORA

 

Breves Históricos

 

I - Jean Cocteau

 

"Jean Maurice Eugène Cocteau nasceu em 5de julho de 1889 em Maisons-Lafitte, Yvelines, Île-de-France, França. Faleceu em 11 de outubro de 1963. Jean Cocteau foi um dos mais talentosos artistas do século XX. Além de ser diretor de cinema, foi poeta, escritor, pintor, dramaturgo, cenógrafo, ator e escultor. Cocteau começou a escrever aos dez anos, aos dezesseis já publicava suas primeiras poesias. Atuou ativamente em diversos movimentos artísticos. Notadamente o conhecido Groupe des Six (grupo dos seis) cujo núcleo era Georges Auric (1899–1983), Louis Durey (1888–1979), Arthur Honegger (1892–1955), Darius Milhaud (1892–1974), Francis Poulenc (1899–1963), Germaine Tailleferre (1892–1983). Além destes, outros também tomaram parte, como Erik Satie e Jean Wiéner. Foi eleito membro da Academia Francesa em 1955. Homossexual, não escamoteou sua orientação sexual. Manteve estreita amizade com Jean Marais, seu ator preferido. Dentre seus amigos destaca-se Edith Piaf e Jean Genet. Cocteau realizou doze filmes. Todos ricos em simbolismos e imagens surreais. É considerado

um dos mais importantes cineastas de todos os tempos."

(Wiki)

 

II - Cocteau Twins

 

"O Cocteau Twins foi formado em 1979 na Escócia pelo guitarrista Robin Guthrie e pelo baixista Will Heggie (que saiu da banda em 1983, cedendo o lugar para Simon Raymonde) e, completando o trio, a vocalista Elizabeth Fraser. Em 1982, já residindo em Londres, a banda assinou contrato com a gravadora 4AD, e lançando o primeiro álbum, 'Garlands'. Depois, foi a vez 'Head Over Heels', de 1993. A música da banda ganhou repercussão no cenário independente inglês rapidamente, devido a genialidade do pop sofisticado que o Cocteau Twins construiu em seus discos. O álbum 'Treasure', de 1994, é ponto alto na discografia da banda. A sonoridade atmosférica e a maravilhosa voz de Elizabeth Fraser contribuem para a bela e estranha música do grupo. Em 1991, o Cocteau Twins se apresentou no Brasil. Depois de vários discos, a banda se separou silenciosamente no final dos anos 90."

(MuzPlay)

 

‘Comme quand dans le ciel plein de nuit avant que ne claque le premier feu de foudre, / Soudain le vent de Zeus dans un tourbillon plein de pailles et de paoussières avec la lessive de tout le village.’ (Cinq Grandes Odes, P.V.)

 

A primeira coletânea de Obras melgacianas leva o nome de Gêmeos de Cocteau. Reúne passagens de criações instrumentais, contemporâneas e mesmo um excerto ('Orquidário') de seu enveredamento pela canção brasileira. São 15 faixas que mantém seus títulos ocultos (um dos inúmeros indícios labirínticos de Gêmeos de Cocteau) pois somente recebem numerações como forma de identificação com exceção de ‘Leopardiom’. Todas foram remisturadas (remixadas) por O.M. a ponto de termos em mãos um retrospecto da vulcanidade paridora do compositor/instrumentista/vocalizador todavia com aspectos verdadeiramente ineditistas. Foram pinçadas de DESIDERIUM, O NOME DO ROSA, VEREDAS MORTAS, MINOTAUROMANCIA, SALOMÉ, MÚSICA PARA CAMALEÕES, DU SPIRITUEL DANS L’ART (DER BLAUE REITER – MELGAÇO’S MUSIC PROJECT) e CARNIVÀLE. As intervenções de Melgaço são precisas, transmutáveis com sutileza e surpreendência. Ressalto a relação que Otacílio estabelece entre Jean Cocteau, Cocteau Twins e sua ‘Caixa-de-Pandora-às-Avessas’. É inegável a devoção de O.M. pela sempiterna banda escocesa e o apanhado sonoro estrelado aqui reúne faixas melgacianas que, segundo seu autor, trazem a lume tal ‘gemialidade’. Surge então o ancoramento ao paraninfo francês Jean, o que torna o título do compêndio (impagável trocadilho por si só) mais rico em sugestividade. O simbolismo sonoro de Melgaço atinge seu paroxismo e cumpre tanto a função de iniciar ouvidores (efetivá-los como neófitos) quanto de expandir aqueles que já o são. A respeito de O.M., eu metafrasearia:

Que porta o deteria? Que muralha? A água fareja a água, e é mais líquido do que ela. É a água inerte em vista do espírito, sua força em vista da atividade deste? Sente, fareja, desenreda, rastreia, respira! E também está repleto de um deus, está repleto de gênio! Gêmeo, conhece todas as coisas e todas se conhecem em si, a cada coisa traz o parto. À 'língua onde as línguas acabam, tempo posto a prumo sobre o sentidos dos corações transitórios,

silêncio das pinturas, hálito das estátuas'...

Eis: Otacílio 'jumeau de lui-même' Melgaço!

 

Jazz__________________________

 

CADAVRE EXQUIS ENSEMBLE

 

Combo instrumental ligado à Música Livre, ao Free Jazz, etc. Otacílio, aqui, assume exclusivamente o Piano. 

 

Vide aqui.

Récita_________________________

 

AUTO DO DEUS-MENINO

 

Fragmento de Faixa Única - Tempo Total de Duração: 00:33:33

 

O.M.: O RECONCILIADOR 

DO CÉU E DA TERRA?

(...) A poesia é a prova da disposição humana – uma disposição, na maioria das vezes, inconsciente – no sentido de superar os freios emocionais que nos são impostos desde a infância. Ela é uma eficiente resposta às amarras morais que revestem o homem com os andrajos da vergonha, do medo e da insegurança, impedindo-o de desenvolver-se (...) e condenando-o, dessa forma, a uma existência permeada de conflitos não resolvidos. Mas o inconsciente humano sempre encontrará uma forma de livrar-se das correntes impostas pela educação e pelos diversos outros condicionamentos que nos são impostos. (...) Com razão, portanto, Michael Löwy e Robert Sayre, ao analisarem o romantismo, o definem como 'a revolta da subjetividade e da afetividade

reprimidas, canalizadas e deformadas'.

Dentre os românticos, o mais polêmico deles, William Blake (1757 – 1827), nos legou uma obra que não guarda apenas a característica de exaltar os valores da subjetividade, mas distila uma poderosa crítica ao capitalismo e à religião.
Os estudiosos da obra de Blake certamente já detectaram as razões que o fizeram reorientar-se na direção da radicalidade, abandonando as temáticas quase pueris de Canções da inocência (1789) e abraçando o pensamento libertário de O casamento do céu e do inferno (1793)

e de suas Canções da experiência (1794).
A morte e a dor nascem da proibição, da censura e do impedimento de vivermos nossos desejos. Quando o corpo é tolhido em nome do espírito, restam apenas as pedras frias que recobrem um jardim outrora marcado pela beleza. O homem, alienado em sua própria carne, recorda um outro tempo, cujas marcas de liberdade e pleno prazer deixaram-lhe lembranças indeléveis. Na visão do poeta, a verdadeira religião, capaz de religar o homem ao seu estado original, está proibida àqueles que são puros de coração (...).
Vivendo em plena Revolução Industrial , William Blake denuncia a corrosão da cidade, na natureza e dos homens, todos estigmatizados pela pobreza e pela doença, sugados até a desesperança pelo trabalho e por leis injustas.
Em Jerusalém (um de seus últimos livros), ele chama para si a tarefa profética de iluminar as mentes obscurecidas e viciadas pelas mentiras que a religião,

o mercado e o Estado apregoam:
'Trêmulo permaneço dia e noite;

meus amigos ficam espantados.
Mas perdoam o meu divagar, pois não posso

afastar-me da grande tarefa!
A tarefa de abrir os Mundos Eternos,

de abrir a Visão Imortal
Do Homem para os Mundos Interiores de seu Pensamento:

para a Eternidade Em contínua expansão

no Seio de Deus: para a Imaginação Humana.'

Somente a imaginação humana, somente o homem capaz de olhar livremente para o seu próprio interior poderá ser verdadeiramente livre. É o caminho na direção dessa liberdade que Blake traça em O casamento do céu e do inferno, ao inverter as polaridades dos dogmas apregoados pela religião e ao instaurar, por meio de uma poesia libertária, uma nova ordem, na qual a vida,

a sociedade e a história são reinauguradas.
Anárquico, o poeta estabelece uma dialética com a qual objetiva quebrar

a lógica maniqueísta da religião cristã:
'Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia,

Amor e Ódio são necessários à existência Humana.
Desses contrários emana o que o religioso denomina Bem & Mal. Bem é o passivo que obedece à Razão. Mal, o ativo emanando Energia.
Bem é Céu. Mal, Inferno.'

O inferno torna-se, portanto, o verdadeiro céu. Para Blake, a 'Energia é única vida, e provém do Corpo; e a Razão, o limite ou circunferência externa da Energia'. O mal se transforma, assim, em bem, pois a 'Energia é o Deleite Eterno'.
Não há mais tormentos. Carne e espírito estão refundidos em uma nova metafísica. O poeta condena os tímidos, os inseguros e os covardes que se recusam a enxergar a verdade:
'Quem refreia o desejo assim o faz porque o seu é fraco o suficiente para ser refreado; e o refreador, ou razão, usurpa-lhe o lugar & governa o inapetente.
E, refreando-se, aos poucos se apassiva, até não ser

mais que a sombra do desejo.'
Na verdade, para Blake, Lúcifer não foi expulso do Paraíso, mas, na luta travada entre Razão e Energia, entre Bem e Mal, foi Deus o derrotado, 'formando um céu com o que roubara do Abismo'.
Longe de ser um ateu, o poeta preconiza uma completa inversão de valores na relação do homem com a divindade. Ela não será mais castradora, mas incentivará o homem a descobrir suas potencialidades, sua energia adormecida ou refreada, sua verdade pessoal. A divindade, agora, anseia ardentemente que o homem mergulhe em seus sonhos e em suas vontades, a fim de redescobrir a centelha divina de que se esqueceu. Não só carne e espírito devem se reconciliar, mas o homem deve reencontrar, em sua carne, a luz do espírito;

no sexo, a emanação perfeita da vontade divina; em seu próprio corpo, o fulgor divino que queima suas entranhas.
Tudo o que a religião dividiu em forças antagônicas,

a poesia, agora, refunde:
 

'O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
Prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
(...)
Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis,

com tijolos da Religião.
(...)
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus ovos, o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.'

 

Inquieto e iconoclástico, William Blake quer resgatar a percepção original da realidade – 'Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito' – e destituir nossa relação com o real das sucessivas camadas de mentiras que nos foram impingidas e que nos cegam. Esse precursor de Nietzsche diria que 'tudo o que vive é sagrado'. De fato, em sua supra-religião, a alegria, o prazer e todas as manifestações da sexualidade deixam de ser malditas, reconquistando para nós, animais humanos, a integridade que a absurda idéia de pecado um dia nos arrancou.
(Konstantin Gavros)

 

Auto é uma composição dramática originária da Idade Média, com personagens geralmente alegóricas, como os pecados, as virtudes, etc., e entidades como santos, demônios, etc., e que se caracteriza pela simplicidade da construção, ingenuidade da linguagem, caracterizações exacerbadas e intenção moralizante, podendo, contudo, comportar também elementos cômicos e jocosos... Pois bem, Otacílio Melgaço engendra um Auto de Natal, ou, como prefiro, um Auto da Natividade que estipula um casamento magistral: manifestações de um Jesus Cristo ainda criança/jovem (uma Natividade personificada que adquire voz - espaço - e vez - tempo -) e a profética retórica de William Blake! O próprio Melgaço traduz - de forma provocadora - parte da poética do romântico e a coloca nos lábios do Deus-Menino. 

Um exemplo: se em 'Garden of Love', Will critica o papel da Igreja, fato que é corroborado por alguns 'evangelhos' considerados apócrifos pela própria justamente por sugerirem que a relação entre o ser e Deus há de ser interior e diretiva - sem intermediações de instituições oficiais (sic) -, Otacílio à medida que se defronta com '...and priests in black gowns...' prefere traduzir 'gowns' não como 'hábitos' ou mesmo 'trajes/vestes' mas sim como 'vestidos'. O que poderia ser uma utilização literal demais do termo passa a ser um severo ataque, a meu ver, a questões da sexualidade de muitos sacerdotes. A contemporaneidade que nos revela certas 'atrocidadades' (vide pedofilia) cometidas por padres é

uma prova de que Blake e Melgaço hão de ter razão.

O resultado dessa Obra artístico-mistagoga é enternecedor e pujante ao mesmo tempo. Depois de apontamentos, a meu ver, indispensáveis a respeito do tema crístico como A Última Tentação de C. e O Evangelho segundo J.C. (tomos escritos respectivamente por um grego e um português), talvez somente poderia partir de um brasileiro como Melgaço a perspicácia de encontrar ecos do mesmo mote (e tão impecavelmente justapostos: Jesus/William) na pureza iconoclástico-messiânica de Blake. Tanto o tratamento instrumental transemítico quanto as entonações recitativas de Otacílio se substanciam dramática e alegoricamente a nos comprovar o quanto realmente é nossa a tarefa de, segundo o epifanista inglês: abrir os Mundos Eternos, de abrir a Visão (e, mais ainda: a Audição) Imortal de cada um de nós para os Mundos Interiores de nosso Pensamento e do que Além dele está. Do Auto do Menino-Deus para a Eternidade em contínua expansão...: através da blakeana Imaginação (extra) humana de O.M.

 

Melting Pop______________________

 

CIRCUS-MUSEUM

 

I Dark Satanic Mills

IV Stanzas for Music

 

 P.S.P. - É cabal constatar que seu novo álbum não tem relação com o chamado 'freak folk' atual mas comecemos pelo mais basilar, você mesmo

a ele se referiu como 'avant'; o que define como Avant-Folk?

 

O.M. - É uma cunhagem já existente... Rompe-se o hímen do tradicionalismo que sempre foi sumular em estilo folk e libera-se um fluxo de transmutações que me parece mais condizente aos meandros da Contemporaneidade.

 

O nome do disco é intrigante... Gostaria de abordá-lo?

 

Em uma de suas faces, noto deslocamentos ecléticos no encalço do espetacular - valor nomademente excêntrico, multiversialmente atrativo pela vereda das polissêmicas perdições; em outra: a pretensão honorável de se relicariar, estimo eu. Como um adendo curioso e quase risível, se minha memória não está a falhar, Bob Dylan andou a tocar em um folk club homônimo ainda

em pós-início de carreira...

 

O processo de criação e registro das canções,

como se deu?

 

Do modo mais cruel, se preferir: melgaciano... Me propus ou impus o draconiano organograma: deveria eu compor e gravar e mixar cada canção no prazo de: um mesmo dia! Com exceção de 'Kiss Your Mind' (que é uma regravação), todas as proles foram dadas à luz durante respectivas manhãs e tardes sendo em noites lealdadas: tudo em uma justa e improrrogável data! Portanto, em pouco mais de uma semana estava Circus-Museum inteiramente apilastrado...ao contrário de mim: corpo tal qual terra devastada por não me permitir adormecer mais que parcas horas e alma hiperexcitada em epilépticas engendragens... Um dado que me parece relevante: todos os registros foram Take One, não houve uma segunda gravação de absolutamente nada do que é audível nesse álbum. Meu intento era o de trazer à feérica transparência minhas mais atraentes vulnerabilidades acasaladas à espontaneidade elevada à milésima potência...

Centrum musicae.

 

Há muitas ambientações ali. Ruídos que nos remetem à Natureza (ondas do mar, correntezas de rios, ventanias...) e também uma infinidade de outros (batidas de coração, radiodials...), o que o fez inseri-los tão ostensivamente?

 

Palavras de um douto sofista, Holofernes, referindo-se a si próprio: 'Eis um dom que possuo, simplesmente, simplesmente! Um espírito loucamente extravagante, cheio de formas, figuras, vultos, objetos, idéias, fenômenos, emoções, metamorfoses. Tudo isso é concebido no útero da memória, sendo alimentado no ventre materno da pia mater, e parteja-o

a amadurecedora força da oportunidade.'

Tinha almejado transladar a fisicidade das canções a um aninhamento extra-ordinário. Me despedir da assepsia de um estúdio ou palco e, por meio de diáspora intencional: denotar uma compleição fono-ambiental  que elevasse mera veiculação ao patamar de Manifestação.

Reinventar a perspectiva ultraprístina de que o ato musical é um Phainómenon e ei-lo (o dicionarizo) como processo cuja ocorrência exige a interação simultânea de vários sistemas cujas atuações se adicionam para levar ao efeito final que só existirá ou só se manifestará quando ocorrer grande quantidade de fenômenos individuais ou particulares. Se no kantismo, tudo que é objeto de experiência possível e que se pode manifestar no tempo e no espaço através da intuição sensível (e segundo as leis do entendimento) são Fenômenos, pretendi então salientar ao extremo tempo e espaço em minhas composições contudo segundo leis que ultrapassariam o entendimento

pela vereda de uma hipersensibilização intuitiva...

 

 Seu canto, em certas faixas, passa por um série de deformações. Às vezes é distorcido, às vezes intermitentemente obscurecido...

A que isso aponta em termos concepcionais?

 

Sazonalmente minha voz haveria de se assemelhar a um instrumento musical do modo mais radical possível! Isto é, sabe-se que ainda permanece como um sonar vernaculador porém é assaltada por versátil infidelidade a tal suposta incumbência. Um exemplo: acolá gostaria de que ela soasse como uma harmônica devassada por sádico overdrive! Naquele nicho pude descolá-la dos veios lexicais sem, no entanto, me desvencilhar deles - mesmo se totalmente irreconhecíveis pela, então, metamorfose-harmônica...

 

  Em um nível instrumental, você paralelamente pôde colocar em prática

essa mesma diretriz, não?

 

Foi minha intenção... Se a voz, em franca diáspora, deveria - às vezes - mimetizar outro instrumento; o violão acabou, por solidariedade, penetrando em tal vácuo. Há passagens em que, através de efeitos póstumos, confunde-se com uma guitarra francamente distorcida! Mais assombroso: cito composição em que procurei duplicar, triplicar o violão a emanar notas minuciosamente correlatas... Dando término ao arranjo, notei que sua sonoridade passou a se assemelhar a de instrumentos balineses! Deveria batizar Circus-Museum de

Avant-Avant-Folk

...but that's all Folks!!

 

Omar Khadji é o convidado especial nesse álbum. Como aconteceu o encontro de ambos? Você o dirige no projeto Baal des Quat'z'arts...

 

Sim, havia o registro de duas apresentações ao vivo que eu aninhava em meus arquivos... Uma Suíte dedicada a John Bonham, baterista de uma banda pela qual nutro admiração contumaz desde minha pré-adolescência: Led Zeppelin. Que aliás é detentor de um folk-set irrepreenssível! Optei por inserir ambas peças em Circus-Museum pois seguiam, já em outrora, as idênticas condições a que me bussolarizei em Obra atual. Pretendia contar no palco com a presença de um contrabaixista acústico e violonista-solo: encontrei em Omar o mais adequado parceiro. Havíamos inaugurado o Baal  há poucos meses e nossa cumplicidade musical, em cronologia-recorde, elevara-se aos píncaros... Como existe um certo flerte entre Circus e localizados eixos do Quat'z'arts (a que presto direção artística e composições), arquitetei Khadji como fragmentário, simultâneo double nas gravações da Suite. Se saiu a contento,

é mesmo um pactário - o nobre colaço.

 

Como seus admiradores devem receber o lançamento desse disco? Estão acostumados a ouvi-lo por meio de uma multiplicidade de estilos e agora mais uma carta inusitada você tira da manga... Não tem receio de que, por exemplo, os admiradores de sua música erudita contemporânea entrem em colisão com os que agora poderão ouvi-lo a tocar seu avant-folk?

 

Um fragmento do 'Peregrino Querubínico' de Angelus Silesius: 'Louvável é ser virgem, mas cumpre procriar. Senão, de um campo estéril jamais há de passar.' Me reconheço como um artista priápico! E babélico, davinciano... Estou condenado a. Serei eu ambíguo e irônico por crer que a verdadeira paixão existe tão-somente nos domínios da ambigüidade e sob o prisma da ironia?! Brado Vade Retro! a tudo que redunde em limítrofe e assim laboro para que meu público seja possuidor de siamesa verve...

 

Da escolha dos poetas que adaptou,

como foi feita a seleção?

 

Em acupunturísticas instâncias: o apelar a recorrentes admirações, insistentes identificações... Em propositais circunstâncias: uma aleatoreidade cativa dos mallarmaicos lances de dados... 'Accade che il folle venga affidato ad un battelliere … non si sa dove approderà né, sbarcando, da dove provenga …

egli non ha verità né patria … è il Passeggero per eccellenza:

il Prigioniero del Passaggio'.

Mas posso afirmar que, na época da confecção de Circus, realizava um inventário da cultura beat pela primeira vez de forma programaticamente séria e pretendi arrebanhar uma espinha-dorsal poética em Museum que, particularissimamente, me soasse como genesíaca de. Traduzo: encontrei, partindo do panteão laureado, o DNA da própria prototipia de auraticidade e visceralidade b-e-a-t-s que em mim, quanticamente, há (isso, claro, através da mais iconoclástica, heterodoxa microscopia). Meu prezado señor Paz, não há parede ou horror nessa Obra, apenas a Luz Leitora Vazia Transversal Beijável da Verdadeira e perfeitamente vazia Eternidade Duradourada...

 

Beijável. A citou anteriormente e eu esperava por isso, a inclusão de 'Kiss Your Mind' merece destaque. Você já a havia gravado em seu disco Desiderium. Lá era um acid jazz e aqui lhe dá uma roupagem completamente inusitada!

 

Sim, sim, sins... Me parecia luminescente a perspectiva de incluir uma canção com letra minha em Circus. Quis então que fosse a mais contrastante possível se tomarmos todas as restantes do presente álbum (assim como, em parte, se deu entre 'K.Y.M.' e Desiderium, o que não é mera coincidência). Tal letra em questão, sendo uma declarada paródia das tipicamente pop norte-americanas ou anglófonas/anglófilas - o que já cumpria, aqui, meu cruel propósito - trazia a lume uma temática que atinge o quase-fúnebre para alçar um sentido redentor que me cativara...: paradoxo que reforçou a inclusão de uma versão sui generis (de um cunho radiofônico) que servisse de coda a Museum. Em suma, penso nas releituras: o cultivo do deserto como pomar-às-avessas.

 

Ainda sobre o canto... Sua relação com

a língua inglesa...

 

Libertina! Não tenho, por exemplo, a mínima preocupação de

me render a quaisquer ditaduras prosodiais...

Abaixo a O-r-t-o-e-p-i-a! Se me apetece perverter o modo como usualmente se pronuncia determinada palavra (questão que nem mesmo os u.k.anos, yankees e etc consensuam): o faço sem piedade ou hesitação. E, em se tratando do Inglês, língua-messalina em nossa era, o faço com requintes de psicopatia... Os meandros das sonoridades: eis o que mais me cativa e lhes sou devoto acima de dicções janotas, gramaticidades nazistóides ou aloapáticas sintaxiências...

 

Conte-nos algumas curiosidades, imagino que muitas ocorreram

durante uma empreitada tão excêntrica como essa...

 

Relatarei três...

Primeira: Em várias canções, a afinação do violão é parte de minha global invencionice. Aboli o uso da que é utilizada como padrão e parti ao encontro de outros ajustes do tom de uma nota em relação a outra, de modo que o número de vibrações correspondesse às exigências de uma acústica bastante particular. Tais ajustes da tensão das cordas do instrumento revelaram notas  que coincidiram, em freqüência, com escalas-tipo diversas, regurgitadoras com mais veemência de meus desvarios. Segunda: Bastante pontual... Em um átimo qualquer, uma das seis cordas do violão que utilizei em todo o álbum (nenhuma promiscuidade instrumentística!) arrebentou-se... De imediato me desafiei (desafinei?) a não colocar uma nova. Dali em diante: passei a compor no e tocar o violão fazendo-me valer das cinco cordas restantes...e assim até quase ao final de todo processo porque uma outra não suportou a tensão e também partiu-se. Dessa vez tentei recolocá-la mesmo já não detendo o comprimento ideal. Consegui...todavia não sustentava a altura da afinação standard - o que militaresca e erraticamente calhou se retornarmos a meu primeiro relato. Terceira: Os registros (lo-fi) de ambas canções tocadas ao vivo (que constituem a Bonzo's Suite) não foram feitos por mim! Eu os recebi por correio eletrônico de um internauta anônimo que gravou de modo 'pirata' as interpretações ocorridas em Canadá... Lembro-me de que não pertenceram ao mesmo Show - nota-se pelas discrepantes sonoridades... E, como não poderia deixar de ser - de comum acordo: se tornou irresistível incluí-la - a Suite - na presente Obra.

 

Você mesmo cria a arte gráfica de suas Obras...

Achei a de Circus-Museum dona de um deslumbramento impecável!

 

Agradeço-lhe... Engenhei mirações (quase ou sobretudo) arquetípicas... Um nicho entre o Sertão dos Gerais (de tão Grande qu)'e o todo-lugar.

 

Acredita nas lendas que narram determinados 'conluios' feitos em determinadas 'encruzilhadas' com determinada 'Personagem' para se poder tocar o blues,

o folk...irreprochavelmente?

 

Preferiria me/se tratar com(o) Doctor Fausto?!? Se sei algo, me calo. Calo, pois, de mim para mim. Toda-via: paralelo: me rosiano:

Circus-Museum arena a Veredas Mortas 

(há dúvida se culmino o respostar exclamativa ou interrogativamente...).

 

Não poderia deixar de perguntar. Por que decorou seu sítio eletrônico direcionado a registros folk etc com obras de Toulouse-Lautrec? [Nota: tal site teve atividades encerradas e foi engolfado por este.]

 

As estereotipias são corrimãos necessários a alguns. Eu as/os refuto. É óbvio que se confundem a biografia e estilística d'Henri de Toulouse-Lautrec - sendo plenamente consonantes ao universo que me é habitável, entranhável ('...o sangue - fa sangue il vino - da juventude não arde com tamanho calor como a seriedade, se desenfreada até a fúria dos sentidos?') quando me aposso de blues, folk, rock e adjacências... As telas do artista francês, em decorrência disso, acabam por vicinalizar, apesar e por causa do arrojo aristocrático, pactos que aqui, expedicionário, anelo.

Uma última palavra?

Como não? Do Persa: T A M Á N!

 

BAAL DES QUAT'Z'ARTS

 

Projeto de Música Experimental (Rock, Eletrônica, Folk, Poesia Sonora...) sob direção (composições, arranjos, performances, misturas, design, arte) de O.M.

 

Vide aqui.

 

 

Música Popular Brasileira_____________

 

DESIDERIUM

 

V Sereias das Sete Saudades

X Orpheu do Samba

 

Vide aqui.

 

O NOME DO ROSA

 

II Prelúdio Oratório

III Oratório

 

“Das Minas,

Eiral d’Enxadachins,

Beiral-dos-Jeremiados...

Cantochão-de-barro e oca Iguaria:

‘Destino’ a destilar-se desaluído...

‘Tempo’ tertuliando-se terém-terém...

Dos Gerais,

Mobilimagéticas Etern’idades...

Terraplenagem d’Além

Das Querências-em-cios cátridos,

Taramelagem inexeqüível, inexistível, ursa...

Verediana Persona,

Transversal Torna-Viajor

Que mileumanoitescamente

Metafísicas emburila;

O Geralista,

Aqui, em nonenhures,

– Anagkekaichrônico –

D  e  s  face l  a  -  s  e...

Ave Minéreo Ser!

Ó Mito-do-Eterno-Retorno

– Homo Ludens –,

Dadivado, deslumbralumiado-de-plenilúnios,

Acolheita destinosa cronelegia...”

(Otacílio Melgaço)

 

A literatura tem-se revelado um exercício constante da busca de uma obra concebida fora do self , uma obra que nos permita sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra.

A Música também há de se revelar como tal exercício. E, conseqüentemente, fazer soar o inaudível. "O Nome do Rosa", single do disco de estréia "Desiderium" de Otacílio Melgaço é uma obra que, dedicada a João Guimarães R., comprova, em sua plenitude, o argumento que serve de prólogo a esta página.

Para seu autor, notório escritor nascido em Cuba mas radicado (precocemente) em terra italiana , "a experiência contemporânea é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas que não conseguem se sustentar por si mesmas, diluindo-se antes de adquirir consistência na memória visiva do espectador: hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão." E mais: "A capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens" não pode, absolutamente, ser perdida. O mesmo há de ser exclamado em se tratando de música, ouvintes, rádio, internet etc. Torna-se concomitantemente fundamental o ‘escutar com os ouvidos de dentro’ (como queria Villa-Lobos), o fruir ou parir continentes e conteúdos sonoros dos silêncios e ruídos e notas musicais, pensando o som,

pensando pelo som.

Em"Seis propostas para o próximo milênio", Ítalo Calvino – dele se trata – aponta norteamentos que abarcam e extrapolam premissas artístico-literárias: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência.
Sextuplas proposições que, a meu ver, apilastram

"O Nome do Rosa".

 

A seguir, alguns breves tópicos baseados em produções de Dra. Shirley S.G. Carreira e Tereza Lúcia Halliday que, na realidade, tornam-se paráfrases minhas às proposições de Calvino. Estabelecerei analogias que me parecem pertinentes à estilística do multi-artista mineiro Otacílio Melgaço e, por parte de quem agora me lê, contarei com a audição de "O Nome do Rosa" (em surpreendentemente revisitados Prelúdio "Oracíon Por El-Amor-Brujo", Prelúdio "Oratório", "Oratório"; "Sereias das Sete Saudades" e Prelúdio "Tão Perto, Tão Longe" -  incluindo todas as instigantes silenciosidades da obra) como a mais encantadora forma de exemplificação do que,

abaixo, defendo.

 

A idéia de "Leveza", segundo o literato Calvino, dificilmente poderá ser representada a partir de exemplos tirados da vida contemporânea. Fato que catapultaria "O Nome do Rosa" à obra intemporalmente intrigante. O autor de"Seis Propostas..." afirma que as imagens de leveza buscadas por ele "não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos. "Portanto há que se perceber que no universo fono-gráfico de Otacílio Melgaço, a não-dissolvição corresponderia a renovados caminhos a ser sempre explorados; caminhos esses que se apóiam, no caso d‘O Nome do Rosa, nas cibertecnologias assim como no revigoramento de espectros autóctones. Caminhos tácteis e multidirecionais do cancioneiro melgaciano em suas nuanças imaginativas (e, incontáveis vezes, imagéticas) confirmam Paul Valéry

quando se referia a ser leve como o pássaro, não como a pluma.

"Rapidez". Numa época em que outros "media" triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função também da música é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem sonora. A rapidez de estilo e de pensamento significa "agilidade, mobilidade, desenvoltura"; qualidades essas que se combinam com composições propensas às divagações, a saltar de um tema para outro, a perder o fio do relato – isto é, das trilhas sonoras – para reencontrá-lo ao fim de inumeráveis suítes-circunlóquios. A "Rapidez", isto é, a agilidade ao promover a "economia" do tempo, permite que se possa, em outros momentos, usufruir de digressões necessárias. Ao abordar suas propostas sem excluir seus valores contrários, Calvino aponta para uma permanente dualidade que permeia a mente humana. Se a narrativa cinemática, plena de closes e ação, dá lugar a uma repentina (fono-cinemática) digressão (a compleição da composição e mixagem - ou mistura – melgacianas), o que acontece é uma multiplicação do tempo dentro da obra, a concretização de uma fuga, a peça musical como caleidoscópicos ‘elos perdidos’ nos quais, por Melgaço, constantemente somos inseridos.

Entre os antigos egípcios a "Exatidão" era simbolizada por uma pluma (a mesma de Valéry?) chamada Maat – deusa do equilíbrio preciso da balança. Com esta metáfora Ítalo Calvino nos insta a ser icásticos , isto é, dotados de fidelidade e precisão ao expressar idéias, transcodificar (in)formações."Exatidão" significa uma obra bem definida e calculada, que leva à evocação de sonoridades nítidas, por meio de uma linguagem musical precisa, capaz de traduzir as nuanças do pensamento e - chamo a atenção -: da imaginação . Mas como ser exato nas artes, a partir do momento em que o mundo que inspira os artistas é multicultural, multinacional, multiforme, onde circulam milhares de informações simultaneamente? Por meio de um "compromisso" com a realidade. Porém, o sentido peculiar de "Real" adotado pelo artista de Minas Gerais em foco é a chave de um compromissamento para consigo mesmo, para com o Artista que é. Em suma, para com a Arte. A cada compasso da rapsódia musical de Melgaço é possível reconhecer os "fatos do nosso mundo contemporâneo"; não tenho dúvida de que é sobre o mundo em que vivemos que o autor compõe: um mundo plural. E por sua pluralidade, "O Nome do Rosa" decanta a realidade transcronológica e transtematicamente, seu/nosso Museu de Tudo.

A propósito, "Visibilidade" evoca a força poética do imaginário, a visão profética tanto do passado quanto dos espaços longínquos, como disse Glissant. Primordial sublinharmos que a visibilização (termo meu) não significa exibição mas sim, atuação. Aquele que deu à luz "O Nome do Rosa" pertence a uma estirpe de artistas que têm a exibição - e seu cancro, o "exibicionismo" - como artifícios emblemáticos de debilidade e efemeridade culturais. Otacílio Melgaço - como João Gilberto, Chet Baker e outros raros -: atua . Um aspecto que parece estar associado à visão de Calvino é o fato de que, neste milênio, as verdades absolutas estão com os dias contados. Assim como não faz mais sentido existir a figura totêmica do crítico musical impondo seu gosto ao resto do mundo, passa a ser risível o artista que busca, por meios cosméticos ou midiaticamente impositivos (impostores?), sua aceitação e apreciação. Atualmente, a "anti-atuação" (sinômino de antivisilibidade) torna-se um meio "escuso"

de veiculação carreirística, em minha opinião.

"Múltiplo" corresponde à multíplice: relativo a mais de três. Exatamente nesse sentido, o princípio da "Multiplicidade" é uma marca da fonografia contemporânea que começa a ser enfileirada por Melgaço ("Desiderium", "O Nome do Rosa"... em Música Brasileira ; "Minotauromancia", "Lou Andréas-Salomé"... em Música Contemporânea ; etc) e que funciona como enciclopédia, como método de conhecimento, como visão pluralística e multifacetada do mundo. É proliferada a "Multiplicidade" nas pluriprismáticas visões de um mesmo fato, nos polivalentes discursos imbricados em uma mesma canção ou rapsódia melgacianas, na consciência da simultaneidade e da diferença. São inúmeros os intertextos, intersonidos detectáveis no rosiano single que destaco: vozes oriundas de outras re-e-reverberações. Algumas identificáveis por meio de alusões, outras por traços metasonor(izad)os, de forma e/ou conteúdo. Reporto-me, mais uma vez ao texto d’Ítalo: a representação da cidade exprime a tensão resultante do emaranhado das existências humanas. Nos múltiplos percursos do homem (assim como na rede intertextual do discurso e nos fono-grafismos melgacianos) cada valor se apresenta dúplice, ou melhor e além: multíplice. Entre a tentativa de reduzir os acontecimentos a esquemas abstratos e o esforço para fazer com que as palavras (Ítalo Calvino tratava da literatura) possam dar conta - com a maior precisão possível - do aspecto sensível das coisas estava a tarefa daquele então escritor do próximo milênio: compreender que cada vida, cada romance é uma enciclopédia, um inventário de dados, uma combinação de experiências que podem ser remisturadas e reordenadas na tentativa de dar expressão à natureza comum de todas as coisas. Contextualizo: tarefa improtelável ao Compositor e Musicista também. Otacílio Melgaço é uma prova viva de que há artistas contemporâneos a semear proposições realmente louváveis ao milênio que,

outrora próximo, já, quer queiram quer não, vigora.

Em nome do Rosa,

Pablo Suarez Paz

 

P.S.: "Consistência", a sexta proposta não chegou a ser definitivamente confeccionada devido ao falecimento do autor.

Citando João Alexandre Barbosa , na trilha de Borges que completa a de Valéry, poderemos dizer: "Cada processo de desagregação da ordem do mundo é irreversível, mas os efeitos são escondidos e retardados pelas miríades de grandes números que contêm possibilidades praticamente ilimitadas de novas simetrias, combinações, acoplamentos." Uma postulação que não está longe dos efeitos daquela "consistência" que o próprio francês apontava como essencial nas teorias do Edgar Poe de"Eureka".

Um palimpsesto de ouviduras e reflexões a ser descoberto ao escutarmos a pronunciação de (e pronunciarmos nós mesmos)

Todos os Nomes do Rosa

através da voz sextuplamente polifônica de

Otacílio Melgaço.

 

Música Instrumental Brasileira__________

 

VEREDAS MORTAS

 

I Mata da Jaiba

XV Cabeceira de Vereda – Buritis Altos – Serra dos Gerais –Santa Catarina ou

U m a  P e d r a  d e  T o p á z i o  p a r a  O t a c í l i a

 

"Iniciemos nossa

O d i s s é i a:

A titularidade da O b r a

de

M e l g a ç o.

 

'O Grande Sertão: Veredas é um livro que provoca nos leitores uma sensação de estranhamento. E muito de sua força provém dessa sensação, suscitada de várias maneiras: por sua linguagem, sua forma narrativa, pelo mundo que descreve, as estórias contadas, e seus personagens. É um livro que também desperta nos leitores o desejo de conhecer o sertão,

'para sortimento de conferir o que existe'.

Quando terminei de ler o Grande Sertão, eu queria ver uma vereda e descobrir se os buritis acenam mesmo para a gente com as suas folhas em leques. Então viajei para o interior de Minas Gerais e acabei conhecendo o vaqueiro Zito, lá na beira do rio São Francisco.

O seu Zito – a alegria em pessoa, que deixou imensa saudade – era um personagem vivo de Guimarães Rosa. Eles se conheceram em 1952, quando o escritor foi para o sertão trabalhar de ajudante de vaqueiro e colher material para o seu novo livro – que depois se desdobrou em dois: o Corpo de baile e o Grande Sertão: Veredas, ambos publicados em 1956. Essa viagem de 52 acabou ficando famosa pelas fotos de Rosa a cavalo, vestido de vaqueiro, e pelas cadernetas que ele deixou e que estão preservadas no IEB/USP. E o seu Zito acabou virando personagem do Tutaméia: é lá que Rosa diz que ele era

'dado em poeta' e 'entendia dos remédios da beleza'.

Pois então eu viajei para o sertão de Minas Gerais e o seu Zito me levou

para conhecer uma vereda.

Quando se começa a ler o G.S.: V., logo se percebe que a palavra vereda não significa apenas 'caminho', que é o significado usual deste termo. Basta olhar no dicionário: é a primeira definição que aparece. É este sentido que está presente em Os sertões, de Euclides da Cunha, em várias passagens do livro – algumas até bem conhecidas, como na primeira parte, a 'Terra', onde Euclides descreve o sertão da caatinga como um mar de galhos retorcidos que 'abreviam o olhar, agridem, estonteiam e repulsam': 'então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.' E também nas cadernetas de campo de Euclides, onde ele registra sua viagem para Canudos através do sertão da Bahia, está escrito à mão: 'vareda – vereda, caminho'.

Mas no sertão de Minas Gerais, por onde Guimarães Rosa andou, a vereda é o reino dos buritis – que é esse coqueiro tão belo que nasce no 'gerais',

e que os leitores de Rosa conhecem muito bem.

O 'gerais', o sertão dos 'campos gerais' é 'terra de buriti e rei-trovão', onde 'a vista reta vai longe, longe, nunca esbarra' por cima do chapadão. As veredas ficam entre as chapadas, dividindo-as: são vales de chão argiloso onde aflora a água absorvida nos terrenos porosos das chapadas. Nas veredas tem sempre buritis. E onde tem buriti tem água. Como diz Riobaldo, o 'buriti é das margens', ele “quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho'.

A vereda é o reino dos buritis: a Mauritia flexuosa ou Mauritia vinífera, que são os nomes científicos dessa palmeira. Dizem que é por isso que Rosa chamou de 'Maurício' o personagem principal do conto 'Buriti', do Corpo de baile. Para o seu Zito, os buritis das veredas eram de várias espécies: alguns muito femininos, como mocinhas acenantes ou tocando ventarolas; outros sisudos e imponentes, velhuscos, mal-encarados. Uma visão que não entra em choque com o saber dos botânicos, que classificam os buritis como uma 'planta dióica' – que tem órgãos reprodutores masculinos e femininos em indivíduos distintos –, ou 'polígamo dióica' – ou seja, há indivíduos com flores masculinas, outros com flores femininas, e ainda há também indivíduos hermafroditas

(dotado de órgãos reprodutores dos dois sexos).

A vereda é um verdadeiro oásis repleto de pássaros cantando, principalmente ao raiar do dia e no entardecer. Se as chapadas são de um verde comum, as veredas são de um verde muito intenso: 'verde a verde, veredas.' Ali a terra é fértil. As encostas que descem das chapadas para as veredas são em geral úmidas: são os 'resfriados', cobertos com uma grama verdinha e macia. É um lugar muito aprazível. A gente olha, olha, e não cansa de olhar uma vereda. Os buritis são tão lindos e tão diferentes! Guimarães Rosa também ficou encantado com os 'buritis dos ventos', descrevendo muitas veredas em suas cadernetas

de viagem e depois em suas estórias:

        'E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia – todo buritizal e florestal:

ramagem e amar em água.'

        'Cada palmeira semelhando um bem-querer, coroada verde que mais verde em todo o verde, abrindo as palmas numa ligeireza, como sóis verdes ou estrelas, de repente.'

        'E o coração e corôo de tudo, o real daquela terra, eram as veredas vivendo em verde com o muito espelho de  suas águas, para os passarinhos, mil – e o buritizal, realegre sempre em festa, o belo-belo dos buritis em tanto,

 a contra-sol.'

        E ele teve que inventar palavras para descrever esse belo espetáculo: 'Buriti – verde que afina e esveste, belimbeleza'; 'o flaflo do vento agarrado nos buritis, franzido no gradeal de suas folhas altas'; 'ah, a papeagem no buritizal, que lequelequeia'; 'Que é que diz o farfal da folha?'

        No sertão dos campos gerais, 'as estradas, em geral, preferem ou precisam de ir, por motivos óbvios, contornando as chapadas, pelos resfriados, de vereda em vereda.' É o que Rosa explica para o seu tradutor italiano, ressaltando que 'talvez esteja aí a etimologia da designação: vereda'.

        A vereda é o caminho da estrada, mas também pode ser entendida como caminho d’água: essa aguinha que vai engrossando e engrossando, formando córregos que depois se transformam em rios. É esse sentido, explicitado pelo próprio Riobaldo, que está presente no comentário de Davi Arrigucci (1997) sobre o nome do romance:

'O título do livro parece que se abre justamente para esse espaço diminuto das pequenas coisas, das veredazinhas, dessa espécie de labirinto de pequenas estórias, de causos ou narrativas curtas que, no entanto, se entretecem numa grande rede. E é no meio dessa grande rede de estórias que vai surgindo, de repente, uma estória principal, como se fosse um rio principal, e esse rio é o rio da vida do narrador. E quem traz esse fio principal é uma das figuras centrais do livro, Diadorim, que é também uma figura de mediação para a estória. Ou seja, o narrador começa a se lembrar de regiões belas do sertão – o sertão é uma região realmente deslumbrante –, e esse deslumbramento, essa beleza que está no sertão, quem ensinou-o a ver foi Diadorim. E, vamos dizer que evocar o sertão é evocar Diadorim.'

        No entanto, quem viaja para o sertão acaba descobrindo ainda um outro sentido inusitado  para o título do romance: a vereda é também o contrário de caminho. Como bem explicava o seu Zito, que conduziu muitas boiadas pelos campos gerais, a vereda é 'pântano': 'não dá para cruzar uma vereda pelo meio, porque atola. É preciso contornar pelas cabeceiras, sempre'. Aquele capim verdinho e macio que envolve as veredas, na verdade ele é muito traiçoeiro,

é movediço: você entra e afunda.

        Vista de fora, a vereda é um lugar muito aprazível, locus amoenus. Mas pode ser muito perigosa se você tentar entrar nela. É pantanosa e é também o lugar onde mora a terrível sucuri, ou sucruiú, surucuiú, sucurijú: a cobra-monstra das veredas, que é tão grande que parece um tronco de buriti. Dizem até que o fruto do buriti, aquele coquinho marrom-avermelhado, é recoberto de escamas porque é filhote de sucruiú. Falam também que ela hipnotiza as pessoas lentamente, olho no olho, para depois carregar sua presa num abraço mortal. E como bem dizia o seu Zito, 'quando sucuri pega, Deus vira as costas'.

        Então, quando se lê Grande Sertão: Veredas, já no título do livro está presente uma ambigüidade: vereda como caminho e também como ausência de caminho ou como um falso caminho, de aparência enganosa; vereda como lugar ameno, aprazível, que encanta e deleita e também como lugar perigoso, movediço, traiçoeiro, que leva à perdição, enganador como o demo. Uma ambigüidade e uma fluidez que está presente em todo o romance, desde o primeiro parágrafo do livro, quando o velho jagunço Riobaldo é chamado por causa de um bezerro que tinha nascido com 'cara de gente, cara de cão', e que 'figurava rindo feito pessoa'. Uma coisa misturada, gente e também bicho, ao mesmo tempo: 'Determinaram – era o demo.'

Ana Luiza Martins Costa (UERJ)

 

Há, na epopéia rosiana, o espaço geográfico cujo nome são Veredas-Mortas. Porém, Otacílio, artimanhoso, parte de outra querência. Uma das arqueologias do léxico 'Melgaço' nos leva à 'Melga' que alude a 'Lodaçal'. 'Melgaço' seria, portanto, sua 'hipérbole': 'Pântano': o outro significado para 'Vereda'! Seu não-caminho. Que é caminho. O Não-Caminho é um Caminho. A se tomar ou destomar. (Des)Caminho que é muito traiçoeiro, é movediço: você entra e afunda. Vereda que pode ser muito perigosa se

se tentar nela entrar.

Aqui temos uma tripla conotação de extrema valia: o rito de passagem que representa a audição dos engendros melgacianos (o entrar, o cruzar); a profundidade crescente a que somos submetidos através de seu aparato de criação e instrumentação (o afundar, o movediçar) e; finalmente, o como somos forçados a realizar uma Odisséia Interior que nos (re)aviva ou (re)inventa como seres ouvidores sendo a 'ouvidura' um elo para nós: seres (re)viventes, (re)vivificados, (re)ontológicos

(o atraiçoeirar, o perdiçar).

Veredas, das Veredas Mortas, é o mesmo que Melgaços.

E a Morte?

Há uma ambigüidade, a meu ver, genialíssima!

Veredas Mortas: Pântanos Mortos: Melgaços Mortos: isto é, o Não-Caminho, o DesCaminho em sua extinção (mortandade) é a negação de uma negação. O Não ao Não-Caminho o torna Caminho novamente.  O torna transitável ameno, transitável aprazível, transitável encantador e deleitador.

Conotação apolínea.

Por outro lado, Otacílio nos conduziria à supremacia do pantanoso, da pantaneiridade. O Não-Caminho a-morte-cido. O Descaminho mais ainda descaminhado. O paroxismo da trilogia que nos faz 'adentrar, aprofundar, transfigurar'. Conotação Dionisíaca. E além: as Veredas, se Mortas, nos obrigam a redobrar ou retriplicar as devidas 'iniciações' para o enfrentamento da Odisséia. Pois a Odisséia revela-se mais exigente para conosco, nos faz mais responsavelmente desafiados a nos decidir: seremos ou não Pactários? Para com Deus ou o Diabo? No caso de O.M., para com ambos já que nosso artista acolhe as dubiedades, tribiedades... e as utiliza rosiana e melgacianamente. Sim, Melgaço é delicado e terrível. Como o anjo de Rainer Maria Rilke, diga-se de Passagem. Diga-se de Vereda. De Melgaço.

"Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que, não sei. Um grande sertão. Não sei, ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas e essas poucas veredas.
Eu queria decifrar as coisas que são importantes.

Queria entender do medo e da coragem..."

 

F r a g m e n t a l

 

A sinuosa heroicidade da música-labirinto

de Veredas Mortas

 

Em analogia a citações da mencionada anteriormente Tânia Serra, a viagem iniciática é a interpretação metafísica da travessia cronotópica de um herói épico. O grande épico de João Guimarães Rosa é exemplo dessa linhagem de obras-primas da literatura ocidental, que começa com Homero, continua com Virgílio, Dante, Ariosto, Camões, Torquato Tasso, e que passa pelos romanços medievais de cavalaria, sobretudo os do ciclo da busca do Santo Graal. Melgaço faz parte da mesma estirpe, por meio do vulto de sua musicalidade, se destacarmos

a tendência ao 'epopaico'. Renomeio sua criação:

 

O d i s s e i a r t e.

 

Se T. Serra identifica a viagem iniciática de Riobaldo, 'herói' do G.S.: V., com as etapas do processo de individuação de que fala o psicanalista suíço Carl Gustav Jung, faço o mesmo em relação aos 'heróis' que transpassarão a tão grande música melgaciana. As diferentes etapas desse processo, que têm de ser assimiladas e interiorizadas psicologicamente - são: a eliminação da persona e a identificação e aceitação (vivência e assimilação) das imagens dos arquétipos do inconsciente coletivo da 'sombra', anima (ou animus no caso da mulher), 'velho sábio' e 'si-mesmo'. São pequenas 'viagens' que levarão à grande Viagem final, o encontro do homem com a Ordem ou Cosmos, a que Jung chama de Selbst.

"Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. O tempo é que é a matéria do entendimento."

 

D a  C r o n o t o p i a

 

Uma das pedras-de-toque nesta Obra é a transinterpretatividade cronotópica, em minha opinião. Como diletante musicólogo ou antimusicólogo (se preferirem pois talvez eu prefira assim) assumo a descrição do universo sonoro de Otacílio Melgaço por meio de apetrechos resenhísticos não-jargônico-musicais. Utilizar a literatura para falar da produção fonodiscográfica ou as artes plásticas ou... Por exemplo: O.M. adapta telas de Piet Mondrian à função de partituras e assim por diante. Neste sítio eletrônico, trato da escritura de João Guimarães Rosa para situar Melgaço como artista e como engendrador de Veredas Mortas. Em próximas obras, provavelmente pedirei licença ao mestre das letras de Minas, do Brasil e do Mundo para sorver a referencialidade de outras fontes.

Mas, um detalhe ensurdecedor que muito me chamou a atenção foi a espacialidade temporal a partir da qual o fluxo-da-instrumentação de V.M. está construído e cadenciado. É a cronotopia sertaneja (ou sertanejeira, como opta Melgaço, a partir de Elomar) que fôra impecavelmente transplantada

para a glossa otaciliana.

(Um paralelo pertinente a se estipular, guardadas respectivas contexturas, seria a trilha sonora do filme - que também, não por acaso, revisita uma Odisséia - Paris, Texas de Wim Wenders realizada por Ry Cooder)

Confesso que, de todas as adaptações do universo rosiano ao musical (algumas dignas de interesse como "Rio Abaixo" do violeiro Paulo Freire ou 'A Terceira Margem do Rio', composição de Milton Nascimento em parceria com Caetano Veloso), a prole de Otacílio Melgaço foi a única que me pareceu capaz de entranhar, encarnar, ensoar a ritmicidade sui generis da cronotopia sertanejeira. Os arpejos movediços do Violão de 10 cordas, o sopro vital e serpenteante da Clarineta-Baixo e do Trombone, a metafísica delicada das inserções Pianísticas, o rastejamento notístico intrigante dos improvisos Acordeônicos etc corroboram o mais fiel decalque sonorizado de uma ambientação complexa e indevassável que é a do Sertão. Repito: a do Ser Tão.

 

"Sertão é o sozinho."

 

O t a c í l i o

M e l - g - a ç o

 

tal e qual está sozinho, é solitário em seus enveredamentos pela

Música Instrumental Brasileira

e a obra Veredas Mortas

revela-se impactante prova disso e pactária com isso.

 

"Sertão é sem lugar."

 

 "O Sertão é do tamanho do mundo."

 

"Sertão: é dentro da gente."

 

Quem ouviu

e não entendeu, zebedeu..."

 

 

Música Instrumental Cosmopolitista________

 

MÚSICA PARA CAMALEÕES

 

IV Abacus

IX Uauá

 

DO MIMETISMO MELGACIANO

 

"Música para Camaleões: 'uma Obra aleatório-minimalista de Otacílio Melgaço'. Esta é a inscrição que encontro na capa do disco em questão. O.M. utiliza e altera cânones da música contemporânea para forjar,

como um ourives, idiossincrática sacro-iconofonicidade africana.

Há alguns tópicos que pretendo ligeiramente abordar para que cada um dos atenciosos internautas realize, por própria conta, a ligadura adequada.

 

São eles:

I - Africanidade

II - Minimalismo

III - Aleatoreidade

 

Adotarei o seguinte estratagema: subseqüenciarei citações que serão tomadas como peças de um quebra-cabeça. Ao final da leitura, cada um dos senhores e senhoras terá a oportunidade de chegar à imagem (sonora) definitiva. É desnecessário supor que nenhuma será exatamente idêntica à outra assim como se dá com as audições dos engendros melgacianos.

 

Preâmbulo

 

'Stabat Mater, do latim: A Mãe estava de pé. Canto litúrgico da semana da paixão e festas de Nossa Senhora das Dores, que descreve os sofrimentos de Maria Santíssima ante o martírio de Jesus Cristo.'  Os mais notáveis são de Palestrina, Caldara, Pergolesi, Haydn, Schubert, Rossini, Verdi, Dvorák e Stanford. A título de curiosidade, tenho,

eu Pablo, predileção pelo de Vivaldi.

Otacílio Melgaço substitui a Mãe de Jesus pela Mãe África. Trata dos sofrimentos relativos ao 'continente negro' e do martírio daqueles afro-descendentes brasileiros. O Canto decodifica-se em Instrumentações percussivas e encordoadas (pontualmente mesmo vocais) a fim de sonorizar contemporaneamente a paixão vivida pelos oriundos da prístina 'grande massa de terra cercada pelas águas oceânicas'. Festejante é seu intuito, porém, ao nos transmitir a certeza de que, se a África, até os dias atuais, pode ser metafórica e historicamente tomada como uma 'Nossa Senhora das Dores', toda a sua cultura é um levante expiatório, elevatório, libertatório.

Um detalhe interessante e que é uma constante na discografia de O.M.: a não-estereotipia, a repulsa por cumprir paradigmas já acoplados às expectativas de grande parte do público. Os títulos das músicas nos dispersam da obviedade, como se Otacílio, à medida que penetra nas entranhas de tal atavismo étnico, pudesse se voltar às inter-relações do microcosmo com o macro. Desfechando particularíssima seta musical no cerne da negritude do velho e do novo hábitat ontológico (Africa e Brasil), simultaneamente suas composições nos lançam em direção ao cosmopolitismo pautando: como o Globo (referências faz à China - Ábacus -, Índia - Mahavishnu -, França - Lance de Dados - ...) interpreta/interage com - deveria interpretar/interagir com - o continente ancestral?). A menção aos 'Camaleões' feita no título da Obra adquire incontáveis conotações como, aliás, podemos, em crescendo, suspeitar...

Iniciemos minha versão de um fractal 'COUP DE DÉS':

 

Do Quebra-Cabeça

 

 ‘A música, a religiosidade são exemplos vivos do que é o patrimônio cultural do continente africano amadurecido ao longo de milhares de anos. Uma história antiga e valiosa... A música está ligada às tradições religiosas do povo negro. Nenhum ritual importante na religiosidade africana é praticado sem música. Canta-se e toca-se para tudo e para todos os santos. A grande riqueza está no seu ritmo. São inúmeros os instrumentos de percussão, entre eles, os tambores de todos os tamanhos - os tambores de fricção (puíta = cuíca), os tambores ou gongos de madeira -, as trombetas de osso, de marfim ou madeira, inúmeros assobios, os chocalhos e guizos, as sinetas de ferro.  Dentre os instrumentos propriamente musicais encontram-se a marimba ou xilofones, liras, cítaras, alaúdes, a sanza ou zimba (prancha com lâminas de ferro);

todos os sons, para acompanhar as cantigas.
Não há dúvida, a percussão é  escala musical do povo negro, uma característica à flor da pele.
A inserção da população negra na sociedade brasileira com sabemos se deu pelo trabalho escravo mas a alma e raiz africanas sobreviveram embaladas pelos tambores da fé. A diversidade cultural dos milhares de negros aqui chegados corresponde a processos históricos vividos por esses povos em território africano. Assim falavam um sem números de línguas diferentes e tinham poucos laços em comum. Mas o negro pode lentamente recriar comunidades e a cultura no Novo Mundo. As cantigas eram extremamente valorizados e contribuíam também decisivamente para conservar entre o povo negro a língua materna. Então podemos dizer que  a musica e a poesia, através dos cantos que embalavam rituais,  foram e são instrumentos importantes para resistência e a história dos povos e nações do continente africano. Neste mundo globalizado, as influências musicais e estilos novos viajam, com muita velocidade, porém poucas civilizações como a africana, especialmente através de sua migração para outros continentes, influiu na música de forma universal.’

(Gil Bandeira)

 

‘Numa reacção contra a sofisticação intelectual da música moderna, alguns compositores passaram a adotar um estilo simples e literal, e dessa forma criaram uma música extremamente acessível. Na obra de La Monte Young e Morton Feldman, por exemplo, o tratamento tradicional da forma e da evolução foi substituído pela exploração do timbre e do ritmo, elementos musicais estranhos aos ouvintes ocidentais. Outro grupo - Phillip Glass, Steve Reich, Cornelius Cardew e Frederic Rzewski - foi influenciado pela música da Índia, de Bali e da África ocidental. A música minimalista nasce com a série Composições 1960, criada por La Monte Young. O destaque é Terry Riley, autor de Em Dó. Na década de 70, os compositores minimalistas repetem padrões ritmo-melódicos que fazem referência a músicas do passado ou de outras culturas. Reich, autor de Music for 18, usa elementos do gamelão javanês. Glass, de Einstein na Praia, explora o barroco. A Música Brasileira e o Minimalismo compartilham de várias feições comuns: ambos incorporam elementos de culturas não ocidentais consideradas primitivas por etnocentristas europeus e/ou acadêmicos intelectualistas; ambos foram manifestações musicais nascidas no continente americano; ambos apontam para a solução do grave impasse compositor/audiência criado nas décadas de 50 a 70 devido ao individualismo exacerbado, experimentalismo excessivo, além de concepções complexistas e evolucionistas da arte musical.’

(Luciano Camargo Martins / Dimitri Cervo)

 

‘Convém compreender que os corpos sonoros não dão nada daquilo que deles se espera. O microfone capta o que há de mais imprevisível. Muitas vezes nos perdemos, e recomeçamos então, até obtermos um objeto sonoro interessante. E, para nos desculparmos, dizemos ser ele, sem tirar nem pôr, o que incondicionalmente desejáramos. Exagero um pouco para me fazer compreender; e, neste ponto, posso dizer que se apenas gravássemos o que pretendemos - inclusive quando procuramos um resultado muito complexo -, só obteríamos coisas muito pobres. Com efeito, o desejo é bem mais banal do que a realidade, o sonho bem mais pobre do que a matéria. Uma chapa metálica, um abat-jour, um ventilador, qualquer dessas coisas, dá resultados sonoros imprevistos.’

(Luc Ferrari)

 

‘Os meios eletrônicos não permitem fazer música, no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos eletrônicos o tentam representam apenas uma música de substituição... A nova produção sonora exige antes novas idéias criativas de composição, e estas só podem provir do próprio som: da matéria sonora... Hoje, o compositor já não tem que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades entre pp e ff, quartos ou oitavas de tom, mas sim com freqüências elétricas de cerca de cinquenta a qinze mil vibrações por segundo, com mais de quarente intensidades exatamente medidas e com um imensidade de durações (centímetros de fita) que saem

do quadro habitual da notação.’

(Herbert Eimert)

 

‘Se buscamos um paralelo para a lição da teoria quântica devemos nos voltar para aqueles tipos de problemas epistemológicos com os quais já se defrontaram, no passado, pensadores como Buda e Lao-Tsé em sua tentativa de harmonizar nossa posição como espectadores e atores no grande drama da existência. As noções gerais acerca da compreensão humana, ilustradas pelas descobertas da Física atômica, estão longe de constituir algo de inteiramente desconhecido, inédito, novo. Essas noções possuem uma história em nossa própria cultura, desfrutando de uma posição mais destacada e central no pensamento budista e hindu. Aquilo com o que nos depararemos não passa de

uma exemplificação, de um encorajamento,

e de um refinamento da velha sabedoria.’

(Niels Bohr / Julius Robert Oppenheimer)

 

‘Nada garante que haja correspondência direta entre o efeito produzido pela obra de arte e as intenções do criador. Por que se haveria de imaginar que existe - ou que deveria haver - uma exata correspondência entre uma partitura, a sua produção e a sua percepção pelo auditor? O exemplo das obras contemporâneas é esclarecedor: não existem relações simples entre as estratégias de composição, as características imanentes da partitura - para não falar do próprio objeto sonoro - e os elementos retidos pelo auditor. A percepção da música fundamenta-se na seleção, dentro do contínuo sonoro, de estímulos organizados em categorias e, em grande parte, com origem nos nossos hábitos perceptivos. A intercompreensão musical, isto é, a correspondência mais exata possível entre produção e recepção, é apenas um caso limite,

um tipo ideal jamais atingido.’

(Jean Molino)

 

‘As propriedades dos modelos básicos da matéria, as partículas subatômicas, só podem ser entendidas num contexto dinâmico, em termos de movimento, interação e transformação. As partículas não são entidades isoladas, mas modelos de probabilidades. No mundo subatômico nunca podemos predizer quando e como tal fenômeno vai acontecer; apenas podemos

predizer sua probabilidade.’

(Fritjof Capra)

 

‘A realidade fundamental em si é essencialmente indeterminada, não há um algo fixo e nítido subjacente a nossa existência diária que possa ser conhecido. Tudo na realidade é e continua sendo uma questão de probabilidade. Temos agora que reconhecer que o microcosmo não é governado por leis deterministas que regulam com precisão o comportamento dos átomos e seus elementos componentes, mas pelo acaso e a indeterminação.’

(Danah Zohar / Paul Davies)

 

 ‘Aquele que quiser possuir o certo
Sem o errado
A ordem sem a desordem,
Não percebe os princípios do céu e da terra.
Não percebe como as coisas se unem.
Pode um homem apegar-se apenas ao céu
E nada saber da terra?
São correlatos: conhecer um
É conhecer o outro.
Recusar um
É recusar a ambos.’

(Lao-Tsé / Chuang-Tzu)

 

‘As partituras de Stockhausen para conjunto de Música Eletrônica Viva não são composições, mas sim processos, os quais envolvem o amplo emprego e interpretação intuitiva, e onde as partes instrumentais contêm apenas sinais gerais que indicam como cada executante deve reagir em relação a si mesmo e aos demais músicos, e aos sons produzidos por eles. Esta cena musical é flexível o bastante para permitir a cada músico usar a sua própria imaginação, porém suficientemente rígida e precisa para impor sentido aos símbolos musicais que caracterizam as partituras de Stockhausen, solicitando a mudança constante, a mediação entre extremos, e a produção de

simetrias sonoras dissimuladas.’

(Paul Griffiths)

 

‘O oriental não crê num mundo externo independente, ou existindo separadamente, em cujas forças dinâmicas possa se inserir. O mundo externo e seu mundo interior são, para ele, apenas dois lados do mesmo tecido, no qual os fios de todas as forças e de todos os eventos, de todas as formas de consciência e de seus objetos, se acham entrelaçados numa rede inseparável de relações intermináveis e que se

condicionam mutuamente.’

(Anagarica Govinda)

 

‘Designamos por microcosmos o mundo das partículas elementares, dos átomos e das moléculas. Nele se desenrolam todos os processos físicos elementares. O acaso tem sua origem na indeterminação desses processos elementares. Os processos individuais só caracterizam os fenômenos da matéria ao nível macrocóspico se forem em grande número. A estatística permite calcular médias a partir do comportamento aleatório dos processos elementares. Resulta, então, um comportamento determinista. No entanto, em certas condições especiais, pode suceder que um dos acontecimentos elementares venha a afetar o macrocosmo, refletindo-se assim ao nível macrocóspico a imprevisibilidade do jogo de dados microcóspico. O mundo apresenta-se como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alteram, se sobrepõem ou se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo.’

(Manfred Eigen / Werner Heisenberg)

 

 ‘Por música intuitiva quero significar um esforço no sentido de que a produção musical seja realizada virtualmente sem obstáculos e sem restrições, e que se origine diretamente dos processos intuitivos. A orientação dos músicos não é, enfatizo, puramente arbitrária ou a decorrência de uma imaginação musical negativa, mas uma concatenação articulada em um texto escrito que objetiva provocar a faculdade intuitiva de uma maneira definida.

Originalmente, na música sacra e na música tribal, a própria produção dos sons estava capacitada e qualificada a nos colocar em estado de transe e meditação, adoração e êxtase. Porém, isto desapareceu do mundo contemporâneo, e tudo o que resta agora é a atitude mais ou menos falsa do freqüentador de concertos ou alguém com seu rádio ou gravador que usa a música como uma tapeçaria sonora ou, na melhor das hipóteses, como um recurso para identificar uma emoção particular que a domina momentaneamente. Mas uma nova função dos sons, de certas constelações de sons compostas por pessoas que têm este conhecimento mais sutil de como as vibrações sonoras agem sobre os seres humanos, pode sugerir gravações tendo em vista propósitos muito particulares.’

(Karlheinz Stockhausen)

 

...tendo em vista propósitos muito particulares, assim como Música para Camaleões enseja: multietnicamente, conhecer um é conhecer o outro. Respeitando e admirando mais a alteridade, conhecemos mais nosso eu-profundo; uma das lições que, a percebermos - com mais humanitarismo - alguns dos princípios convivenciais da Terra e o Céu, Melgaço e seu Stabat Mater Afro-Contemporâneo encantadora, encantatoriamente nos deixa.

 

DU SPIRITUEL DANS L'ART

(DER BLAUE REITER - MELGAÇO'S MUSIC PROJECT)

 

CD I

 

B a u h a u s

 

VI Ritmo Mais Severo E Mais Livre ou Caminhos Principais

E Caminhos Secundários ou Meditação Individualizada Dos Níveis ou Andares

XI A Posição Dos Gêmeos ou Ad Parnassum

 

CD II

 

D e  S t i j l

 

I Composição Com Superficies Coloridas

VI Composição Com Traços Negros

 

 

P a r t e   P r i m e i r a

 

“Diante de uma investida tão conceitual, quanto ambiciosa, de Otacílio Melgaço, faz-se necessário um Léxicon que desvende, na medida do que seja possível, o complexo itinerário ‘intersígnico’ proposto pelo compositor neste álbum duplo. Procurei colocar - lado a lado - algumas das perspectivas referenciais para que tenhamos - mais ou menos aproximativos - prismas amplificadores de nossas (re)leituras dos elementos que compõem tal (em princípio voltado ao exterior)

Melgaço’s Music Project.

 

G l o s s á r i o

 

I- Do Espiritual na Arte

Du Spirituel dans L'Art, obra literária de Wassily Kandinsky.  Relato em tom de manifesto apaixonado deste autor que era um erudito e um filósofo. Este livro contém dois aspectos: a investigação da manifestação espiritual na arte e a pesquisa objetiva das condições e possibilidades da arte moderna.

Do Espiritual na Arte foi concluído em 1910, mesmo ano em que Kandinsky pintou seu primeiro quadro abstrato. Teoria e prática deveriam caminhar juntos para este artista investigador e revolucionário

assim como a arte deveria corresponder

a uma “necessidade interior”.

A cor liberta da forma e a abstração da imagem inspirou Kandinsky em sua pesquisa visual. Suas improvisações demonstraram seu caráter inovador. Ela já não considerava inabalável a realidade percebida pela visão, sendo então motivado a questionar o valor de veracidade do mundo percebido

pelos sentidos humanos.

Algumas de suas afirmações: “A cor é a tecla. O olho é o martelo.

A alma o piano de inúmeras cordas.”

“A natureza não como um fenômeno externo, mas acima de tudo como o elemento de uma impressão interior que recentemente foi denominada expressão.”

“Cada obra surge de uma necessidade interior.”

 

II - O Cavaleiro Azul

Der Blaue Reiter

 (O Movimento):

Fontes de inspiração:

- Máscaras negras, exemplos da arte popular, esculturas arcaicas, gravuras japonesas, exemplos e arte religiosa gótica.

O que buscavam?
- Sair do domínio da racionalidade para encontrar a criatividade a invenção;

- Criatividade como valor;

- Burgueses na negação da  burguesia;

- Influências de Marx e Nietzsche.

Pesquisa das formas expressivas

- Interpenetração da matéria e de todas as impressões visíveis pelos valores abstratos, subjacentes à fusão de um mundo externo com

a vibração interior da alma,

- Interpenetração da forma musical

pela linha e pela cor,

- Busca da inserção do objeto em um contexto cósmico.

Estes são os elementos que devem ser - pelo almanaque Blaue Reiter - os fundamentos de toda arte moderna.

 

III - Bauhaus

Nenhum movimento do design moderno tem recebido tanta atenção de críticos e escritores — e provavelmente nenhum tenha sido tão mal compreendido — quanto o Bauhaus. Em muitos sentidos, o Bauhaus, menos do que um movimento, foi um centro de estudos que reuniu, em uma escola dedicada a testar novas concepções artisticas, as idéias acumuladas nas duas primeiras décadas do século.

A influência do Bauhaus no design de página impressa é baseada principalmente nas contribuições de cinco mestres: Paul Klee, Wassily Kandinsky, Moholy-Nagy, Josef Albers e Herbert Bayer Allen Hurlburt

A Bauhaus congregou importantes criadores de vanguarda, que fixaram algumas diretrizes estéticas que iriam prevalecer em todo o mundo durante o século XX.

Em 1919, o arquiteto alemão Walter Gropius integrou duas escolas existentes na cidade de Weimar, a Escola de Artes e Ofícios, do belga Henri van de Velde, e a de Belas-Artes, do alemão Hermann Muthesius, e fundou uma nova escola de arquitetura e desenho a que deu o nome de Staatliches Bauhaus (Casa Estatal de Construção), com sede em um edifício construído em 1905 por Van de Velde.

As origens mais remotas da Bauhaus provêm do movimento Arts and Crafts, do inglês William Morris, que procurou restabelecer a dignidade medieval do artesanato e do artesão. Todavia, o ensino da Bauhaus opunha-se às concepções de Morris, contrárias à revolução tecnológica e à produção em série. Também não agradava a Gropius o estilo art nouveau, devido a seu caráter decorativo e esteticista. A ascendência mais próxima da Bauhaus está na associação Deutscher Werkbund, fundada em 1907 por Hermann Muthesius para incentivar as relações entre os artistas modernos, os artesãos qualificados e a indústria. Muthesius desejava criar o que chamava de Maschinenstil (estilo da máquina). Gropius, que foi membro da Werkbund, materializou esse objetivo,

em grande parte, na Bauhaus.

A Bauhaus combatia a arte pela arte e estimulava a livre criação com a finalidade de ressaltar a personalidade do homem. Mais importante que formar um profissional, segundo Gropius, era formar homens ligados aos fenômenos culturais e sociais mais expressivos do mundo moderno. Por isso, entre professores e alunos havia liberdade de criação, mas dentro de convicções filosóficas comuns. O ensino era suficientemente elástico, com a participação, na pesquisa conjunta, de artistas, mestres de oficinas e alunos. Para Gropius, a unidade arquitetônica só podia ser obtida pela tarefa coletiva, que incluía os mais diferentes tipos de criação, como a pintura, a música, a dança, a fotografia e o teatro. De tal maneira a filosofia da Bauhaus impregnou seus membros que sem demora se definiu um estilo em seus produtos despidos de ornamentos, funcionais e econômicos, cujos protótipos saíam de suas oficinas para a execução em série na indústria. O estilo Bauhaus era fruto do pensamento dos professores, recrutados, sem discriminação de nacionalidade, entre membros dos movimentos abstrato e cubista. Ao iniciar a Bauhaus, Gropius apoiou-se principalmente em três mestres: o pintor americano Lyonel Feininger, o escultor e gravador alemão Gerhard Marcks e o pintor suíço Johannes Itten. A eles se juntaram depois artistas da categoria de Oskar Schlemmer, Paul Klee, Wassili Kandinski, László Moholy-Nagy e Ludwig Mies van der Rohe. Em 1925, Josef Albers e Marcel Breuer passaram a fazer parte do grupo.

Ameaçada de dissolução pela forte oposição dos conservadores a suas inovações, a escola mudou-se em 1925 para Dessau, onde ficou até o advento do nazismo. Para abrigá-la, Gropius projetou e construiu um conjunto de prédios que eram, em si mesmos, um manifesto de arquitetura moderna e uma das mais extraordinárias obras da década de 1920.

As atividades da Bauhaus intensificaram-se em Dessau com o lançamento de publicações e a organização de exposições. Uma clara mentalidade racionalista presidia à elaboração dos projetos. Em 1928, Gropius passou o cargo de diretor ao suíço Hannes Meyer, abandonando a escola, já então consolidada, junto com Moholy-Nagy e Breuer. A nova direção deu realce ainda maior à arquitetura e assistiu à chegada das influências do construtivismo russo. Em 1930, Meyer, cuja postura esquerdista não era bem vista pelas autoridades, foi substituído pelo arquiteto alemão Mies van der Rohe. Este reorganizou a escola

e deu-lhe um novo impulso.

Em 1932, com a chegada dos nazistas ao poder em Dessau, a Bauhaus se transferiu para Berlim, onde continuou a funcionar até seu fechamento definitivo em 1933. As possibilidades da vanguarda alemã, com isso, se fecharam também, mas o ensino inovador da Bauhaus já havia se difundido a essa altura nos principais centros de arte. Tal difusão tornou-se ainda maior quando os grandes mestres da escola, devido às perseguições nazistas, passaram a emigrar, principalmente para os Estados Unidos e a Inglaterra.

Em 1928, Sandor Bortink fundou em Budapest o Mühely, também chamado Bauhaus de Budapeste, que existiu até 1938. Em 1933, Josef Albers instalou um departamento do tipo Bauhaus no Black Mountain College (Carolina do Norte, Estados Unidos) e depois na Universidade de Harvard. Em 1937, Moholy-Nagy criou em Chicago a New Bauhaus, mais tarde incorporada ao MIT (Massachusetts Institute of Technology). Gropius passou a lecionar em Harvard e Mies van der Rohe tornou-se um dos principais arquitetos da remodelação de Chicago. Em 1950 inaugurou-se em Ulm, na Alemanha, a Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), dirigida por Max Bill, ex-aluno da Bauhaus de Dessau. A essa última instituição, em especial, coube dar seguimento programático às formulações da antiga Bauhaus -- uma escola que se integrou perfeitamente no contexto da civilização do século XX para dar-lhe uma visualidade própria. a Bauhaus é um marco no percurso da modernidade, pelo seu caráter inovador e pelo papel fundamental de conseguir reunir a teoria com a prática, as artes com a indústria,

a escola com a comunidade.

  Tiago Teixeira

 

IV - De Stijl

 Em 1917, os pintores holandeses Piet Mondrian e Theo van Doesburg fundaram um grupo artístico conhecido como De Stijl (O estilo). Além deles, faziam parte do grupo o pintor Bart van der Leck, o escultor Georges van Tongerloo e o arquiteto Gerrit Rietveld. Como os suprematistas e construtivistas, muitos dos artistas do De Stijl estavam comprometidos com a idéia da arte abstrata e com a perspectiva que atribuía à arte um objetivo que ia além do simplesmente decorativo. Eles sentiam que a arte podia alterar a natureza da sociedade e criar um novo tipo de ambiente humano. A Composição em vermelho, amarelo e azul (1937-1942, Tate Gallery, Londres), de Mondrian, revela a tendência do De Stijl de reduzir a pintura a seus elementos mais essenciais. Linhas pretas horizontais e verticais dividem a tela branca em retângulos e alguns deles são pintados de vermelho, amarelo ou azul. A superfície da pintura não revela nada impulsivo ou intuitivo, tudo parece, embora nem sempre seja, planejado anteriormente na mente do artista. Com a intenção de fazer suas obras parecerem impessoais e mecanizadas, os artistas do De Stijl imitaram os cubistas e futuristas ao acreditarem que uma nova sociedade pudesse ser construída através da rejeição da individualidade e da adoção de um desejo coletivo. Apesar da geometria retilínea de Mondrian estar a quilômetros de distância das imagens dinâmicas e apocalípticas de Kandinsky, os dois artistas se dedicaram a conceber arte abstrata e acreditavam que ela poderia transmitir significados filosóficos. Exatamente como Kandinsky via suas obras abstratas transmitirem um sentido de espiritualidade, Mondrian via as grades assimétricas de suas composições como metáforas do equilíbrio de forças opostas: o homem e a natureza, o indivíduo e a sociedade e assim por diante. Essas idéias eram tão centrais na obra de Mondrian que ele acreditava que suas composições funcionariam como fundamento para a arquitetura e a decoração de interiores, uma perspectiva que Rietveld e outros arquitetos colocaram em prática posteriormente.

O nome De Stijl (que literalmente significa “O Estilo”) foi particularmente apropriado para o movimento que, em muitos sentidos,

firmou o estilo do design do século XX.

Durante os anos do conflito mundial, os artistas holandeses tiveram condições de montar o cenário em seu país, neutro, e de preparar o caminho para a extensão do movimento à Europa, mais tarde, no pôs-guerra.

Entre os líderes do grupo De Stijl nos primeiros anos estavam dois dos mais notáveis artistas da época: o pintor Piet Mondrian e o arquiteto J.J.P. Oud. Todavia, a ampla influência do movimento foi gerada por seu principal fundador e teórico, Theo van Doesburg, profeta, pintor, poeta, critico, arquiteto, tipógrafo e pioneiro do moderno design gráfico.

Os designers do grupo De Stijl fizeram-se notar pela rigorosa precisâo com que dividiam o espaço, algumas vezes contrastando as divisões com linhas negras; pela tensão e pelo equilíbrio, alcançados com a assimetria; por seu arrojado e criativo uso das formas básicas e das cores primárias; e pela máxima simplicidade de suas soluções. Eles criaram o termo neoplastícismo, para designar sua concepção de pintura bidimensional, e o termo acabou se

toRNando sinônimo do estilo do grupo em geral.

  Allen Hurlburt

 

Apêndice

 

E-Music

(Música Eletrônica)

"L'art est à l'image de la création.
C'est un symbole, tout comme le monde terrestre
est un symbole du cosmos."
(Théorie de l'art moderne, P. KLEE)

"L'art ne reproduit pas le visible; il rend visible."
(Id. ibid.)

"L'affinité générale des œuvres entre elles qui,
au lieu d'avoir diminué, a été renforcée au cours
des millénaires, ne réside pas dans l'écorce des
choses, mais dans la racine des racines, dans le
contenu mystique de l'art."
(Du spirituel dans l'art, W. KANDINSKY)

 

Para Baudelaire, modernidade é "o transitório, o fugitivo, o contingente, do qual a outra metade é o eterno e o imutável", que, segundo entendo, seria "a raiz das raízes", "o conteúdo místico da arte", elemento essencial da afinidade existente entre as obras de arte de todos os tempos, como nos diz Kandinsky.

Cleone Augusto Rodrigues

 

 É cada vez mais freqüente que os músicos produzam sua música a partir da digitalização, amostragem (sampling) e da reordenação de sons, algumas vezes trechos inteiros, previamente obtidos do estoque das gravações existentes.

A composição da música de forma eletrônica é um fractal,

seguindo os seguintes princípios:

Retroalimentação: Cada música final é usada como matéria prima para composição das próximas. A gravação deixou de ser o principal fim ou referência musical. Não é mais do que o traço efêmero (destinado a ser sampleado, deformado, misturado) de um ato particular no seio de um processo coletivo.

Auto-organização: Não existe um "músico" que faz a composição inteira, mas sim uma inteligência coletiva que se alimenta do estoque musical existente, sendo que cada pessoa anonimamente participa do processo de criação das partes. Cada um é ao mesmo tempo produtor de matéria-prima, transformador, autor, intérprete e ouvinte em um circuito instável

e auto-organizado de criação cooperativa.

Auto-similaridade: Cada trecho da música possui uma história de composição que segue o mesmo padrão. Cada um dos subconjuntos do processo deixa aparecer uma forma semelhante à de sua configuração global. Não existe a "música final", mas sim referências intermediárias em um fluxo contínuo em circulação na vasta rede tecno-social. Essa matéria é misturada, arranjada, transformada, depois injetada na forma de uma peça nova no fluxo de música digital em circulação.

Podemos encontrar na música tecno os princípios do movimento social da cibercultura: interconexão, comunidade virtual e inteligência coletiva.

 - Rodrigo Siqueira

 

E quiser situar a e-music num contexto mais próximo de nossa realidade, pode-se pensar no Movimento Futurista, do italiano Filippo Marinetti, no começo do século XX. Foi nesse período que homem e máquina foram associados, dando abertura para uma nova linguagem musical. Em 1912, Luigi Russolo lançou o manifesto Arte do Barulho, em que "músicas" surgiam

do "som" produzido pelas máquinas.

A definição seca do que seria a e-music é a música criada por sons produzidos em laboratórios, por aparelhos de freqüência. Os primeiros ensaios do que se transformaria na atual música eletrônica começaram em meados dos anos 50, quando instrumentos acústicos se misturaram aos eletrônicos. Essa interação só foi possível devido aos avanços da informática, mais recentemente. A rapidez com que música eletrônica se transforma, evolui, retrocede e se reinventa não seria possível se não fosse, porém, a agilidade de troca de informações - principalmente pela Internet - e a globalização dos artistas envolvidos.

A e-music é a confluência de uma cultura que não encontra barreiras. E para os leigos, que insistem em dizer que não há diferença entre as suas inúmeras batidas, a quantidade de classificações não acompanha o surgimento das novidades. Caótica, a música eletrônica evolui em ramificações que não são passíveis de controle: elas se misturam e acabam criando novos gêneros numa reprodução de sons que parece ser infinita.

Hoje, há quatro principais gêneros de música eletrônica: a house music, o tecno, o trance e o drum´n´bass. A partir deles, surgem outros estilos, que agregam ritmos tradicionais e produzem sons inesperados e variados. Durante os anos 80, a House Music surge em Chicago e Nova York como uma música dançante, em contraposição ao ritmo depressivo da cultura punk. O seu nome vem do clube gay Warehouse, de Chicago, um dos lugares onde o gênero foi bastante difundido. O house é o estilo que mais origina vertentes e permite que outros gêneros musicais - como o jazz, o samba e a disco music - somem-se ele. O conceito de DJ ganhou força assim como os elementos de pós-gravação como os remixes, loops e samplers. Entre os DJs de destaque deste gênero, a dupla britânica Basement Jaxx e os brasileiros Marcos Morcef, Renato Ratier e Luiz Pareto.

Foi mais ou menos nessa mesma época também que a cidade industrial de Detroit começou a produzir o Tecno, que ainda hoje serve de inspiração para o trabalho de DJs. Esse ritmo não deixa de ser, ele próprio, uma variação do house. Mas o seu som é mais pesado e intenso, as batidas são mecânicas e nada suaves. Costuma usar samplers de diálogos de filmes e sons inusitados. Os três DJs que se destacaram nesse período, produzindo esse tipo de som, foram Juan Atkins, Derrick e Kevin Saunderson. Atualmente, os destaques desta cena,

o inglês Dave Clarke, Mau Mau e Magal.

O Trance é diferente de todo o resto, apesar de ser uma variação do tecno. O seu som é mais melódico e relaxante, ainda que a sua batida seja acelerada. Ao contrário da house music, perfeita para os chill in, o trance é curtido durante os chill out por ser uma música de meditação, quase de transe. Ela costuma ter influência de sons orientais, como os da Índia e, não raro, tende para versões mais psicodélicas. O trance nasceu nos clubes alemães no começo da década de 90 e busca levar o ouvinte a um estágio de viagem espiritual. DJ Dag e Jam El Mar foram os primeiros a fazer experimentações com o tecno resultaram

nesse ritmo. O holandês Tiësto (considerado o top 1 do mundo),

Paul Van Dyk, Sasha e Feio destacam-se neste gênero.

O Drum´n´bass ou drumambeis é a batida mais forte de todas. Chega a ter de 175 a 180 batidas por minuto (bpm) - o house tem de 125 a 135 bpm - o que produz um som alucinado. Ele é facilmente confundido com o jungle, ritmo do qual se originou, mas tem influências do hip hop, reggae e jazz. Alguns nomes de DJs que se destacam produzindo a batida quebrada do drum´n´bass são Goldie, J-Majik, Alex Reece e Brian Gee. O brasileiro Marky é considerado um dos melhores DJs deste gênero no mundo. Patife e Koloral também são atrações deste gênero no Brasil.

Natália Suzuki

 

No inicio do século 20, época das primeiras gravações elétricas e do surgimento dos novos meio de reprodução sonora, o Theremin é considerado o primeiro instrumento musical completamente eletrônico e trabalho com freqüência de rádio, osciladores, etc. Este instrumento foi desenvolvido em 1920, pelo russo Leon Sergeivithc Termen (Leon Theremin). O aparelho possui duas antenas sensíveis aos movimentos do músico, uma delas cuida da afinação (altura, tom da rota) e a outra do volume. O músico manipulava as antenas como se fosse um maestro. Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin,

é um dos principais divulgadores do aparelho.

Dez anos depois (1930), surgia o Rhythmicom, o primeiro gerador de ritmo eletrônico que foi usado por Tangerine Dream e Pink Floyd.

Em 1935, começou a produção de pick-up’s e também o primeiro gravador de fitas magnéticas em Berlim, Alemanha. Este aparelho contribuiu para um enorme passo de aperfeiçoamento nas técnicas de gravações em estúdio que permitem que os dj’s criem suas próprias músicas por meio de montagens

feitas com colagem de fitas.

Nos anos 40, o Blues foi eletrificado pelos negros americanos e deu origem ao Rhythm and Blues. John Cage compôs Imaginary Lardscape n° 1,

usando elementos eletrônicos.

Na década de 50, em Paris, Pierre Schaeffer e Pierre Henry já faziam músicas misturando instrumentos com sons gravados de passos, carros, etc. Sinfonia para um Homem só (P.S.), é a primeira composição feita com montagem de fitas magnéticas. O movimento concreto foi engendrado por compositores e intelectuais que recriavam obras a partir de trechos de músicas e sons do dia a dia e isto se difundiu na poesia, artes, etc.

Negros jamaicanos (o líder Lee Tubby) inventaram e aperfeiçoaram as técnicas de gravações que dariam origem ao Dub. Em 1967 foi lançado o primeiro álbum totalmente eletrônico por um grupo chamado Silver Apples. Em 1970, a Technics lançou a SL 1200 com sistema Direct Drive, a pick-up virou instrumento musical. Em Nova York dj’s como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash popularizaram técnicas como o Cuts e Scratch (que significa arranhar em inglês).

O primeiro disco de 12 polegadas (apropriado para tocar na noite)

foi lançado pela Salsoul Records em 1976.

Em 77 que surgiu os pioneiros da música eletrônica como já conhecemos, era o grupo Kraftwerk de Ralph Hutter e Florian Schneider. Nesse mesmo ano eles lançaram o antológico Trans Europe Express que serviu para derrubar preconceitos de músicos tradicionais sobre o uso de drum machines, sintetizadores e teclados. O grupo usou sons repetitivos e hipnóticos e foram também alguns dos inventores do groove ou loop. O DJ Afrika Bambaataa da sua versão ao clássico Trans Europe Express criando o épico Planet Rock em 82 que foi considerado o maior clássico de todos os tempos da música eletrônica dançante que foi feita com base de baterias eletrônicas

(linha TR da Roland), raps e teclado.

Devemos citar também nomes como New Order (inventor da eletronic dance music) e tantos outros que somados a outras influências, deram origem ao Techno, House, Drum’n’Bass, Trance e todos os outros gêneros tão familiares para nós atualmente. Estilos, sub-estilos, terminologias:

Acid House, Acid Jazz, Ambient, Amen, Anokha, Big Beat, House, Breakbeat, Chill in, Chill out, Club House, Dark Roller, Deep House, Disco, Downbeats, Downtempo, Drum'n'Bass, Dub, EBM, Electro, Euro, Experimental, Flipside, French House, Funk, Funky, Gabba ou Gabber, Garage, Goa Trance, Groove, Groovy, Hardcore, Hardstep, Hi NRG, House Music, IDM, Illbient, Indie Dance, Jazzdance, Jazzstep, Jazzy, Jungle, Leftfield, Nu School, Nightmare, Old School, Psychedelic Trance,

Progressive, R&B, Techno, Trance, Tribal, Trip Hop, Underground… 
RAVETRONIC

 

P a r t e   S e g u n d a

 

"Antes de mais nada, um esclarecimento torna-se indispensável. Na minha opinião, temos de estabelecer um denominador comum em se tratando daquilo que se convencionou chamar ‘Música Eletrônica’. 

O próprio compositor/

instrumentista/

arranjador/

misturador

Otacílio Melgaço, em nossas vastas conversações, sempre chamou a atenção para isso.

Dos pioneiros que já em1887 supunham produzir sons com a ajuda da eletricidade (Cahill, de Forest, Martenot...), passando pelos desenvolvimentistas Teremine, Pashtchenko, Schillinger até ancorarmos nos sedimentadores Stockhausen, Cimert, Krenek, Koenig, Badings, Raaifmakers, Boulez, Barraqué...: confecciona-se uma nova linguagem musical e não mera ‘produção de ruídos’... Linguagem formada por sons que podem sofrer diferentes tratamentos: variações de velocidade, modulações, filtragem de freqüência e amplitudes, passagem à câmara de eco... Gravados numa fita magnética, acrescenta-se: efeito de espacialização; a matéria inicial, produzida pelo gerador elétrico, nos proporciona um som puro ou complexo, por métodos sintéticos ou analíticos etc, etc, etc.

Notem que estamos lidando com um processo de cunho segmentado, ou diria, eruditista, chancelado por homens de espírito científico, intelectual, construtores da 'alta cultura': acadêmicos enfim...

Se há uma seara à Música Eletrônica, aí está.

Existe uma distância considerável entre esta Música Eletrônica e a moderna E-Music apresentada acima em meu ligeiro Glossário. Farejarmos a ancestralidade similar não significa que ambas pertençam progressivamente

a um mesmo tronco genealógico.

O que ocorre, talvez, seja a apropriação (proposital ou 'inconsciente') de alguns dos elementos conceituais e/ou empíricos do 'alfabetário eletrônico tradicional’ por parte de músicos leigos (não necessariamente estudiosos/teóricos catedráticos), isto é, advindos de nichos tais como o ‘pop’, jazz, funk, hip hop, reggae e tantas outras linguagens e ‘selos’. Isso não denigre suas criações (caso sejam de qualidade) somente é um diferencial para que continuemos a utilizar terminologias em justa adequação.

Sem maiores delongas; se, através dos computadores e da Internet, um Correio passa a ser Eletrônico e temos a imperiosa e globalizada designação: E-Mail, adotada pela maioria, eu sugiro, mesmo ironicamente, a bifurcação vernacular:

 

Música Eletrônica

(a qual me refiro nesta Parte Segunda)

 

E-Music

(situada em Léxicon prévio)

 

Dos que se aventuram pela E-Music, particularmente acho os artistas que a vinculam à Música Eletrônica, os mais interessantes.

Pontualmente, cito o duo californiano Matmos.

Otacílio Melgaço, à medida que, numa experiência surpreendente, busca se expressar por meio da E-Music, faz o mesmo porém de forma mais equilibrada. Interpenetra ambas com desenvoltura e sofisticação, debruçando-se sobre a maturação colhida em Discos seus anteriores como Minotauromancia e Salomé.

Não satisfeito, O.M. inclui Poesia Sonora, flertes com a estilística do também brasileiro Amon Tobin, livre improvisação, música concreta (cito novamente os Matmos),  reminiscências/flashes de um dos seus trabalhos populares brasileiros (Desiderium) e muito mais...no amineirado embornal que seu Cavaleiro Azul

traz rente ao elétrico corpo sonoro.

Imagino se aproximar do que descreverei, sua ‘Cartografia’:

 

1 – Parte Melgaço do princípio de que especificamente o ‘Espiritual’ na arte é o continente que receberá sua conteudização conceito-composicional;

2 – Lúdico, elege um ícone, ou totem, para tal:

O Cavaleiro Azul

 (É uma personagem dos contos de fada com o qual Kandinsky teve contato em sua infância. Representa o virtuoso combatente do mal,

simbolizando luta e renovação);

3 - Subdivide em dois planisférios a ‘encarnação’ desse ‘índigo Espírito errante’: Bauhaus e De Stijl;

4 – Alinhava todos os passos anteriores por meio dos rastros de algumas personagens vitais: Kandinsky, Klee e Mondrian.

 

Nenhuma surpresa trazem minhas enumerações acima, tenho certeza, após termos absorvido com minúcia as decorrências de cada subdivisão do Glossário em Parte Primeira. A título de complementaridade, a ‘Filosofia da Criação’ de Paul Klee seria um dos pilares melgacianos estabelecido ao longo de todo processo: a força criadora escapa a toda denominação; segue sendo, em última instância, um mistério indizível. Mas não um mistério inacessível, incapaz de nos comover até as entranhas. Nós mesmos estamos impregnados desta força até o último átomo da medula. Não podemos dizer o que é, mas podemos nos aproximar de sua fonte em uma medida variável. Necessitamos de algum modo revelá-la, manifestá-la em suas funções tal como se patentiza em nós. Provavelmente também ela é matéria, uma forma de matéria não perceptível pelos mesmos sentidos que percebem os outros tipos de matéria. Mas é necessário que se permita seu reconhecimento na matéria conhecida. Incorporada a ela, deve funcionar. Unida à matéria, deve tomar corpo, converter-se em forma, em realidade. A gênese como movimento formal constitui o essencial da obra. Ao princípio, o motivo, inserção de energia, esperma. Obras como produção da forma em sentido material: originalmente feminino. Obras como determinação espermática da forma: originalmente masculino (coloco meu desenho no campo masculino). Há, a este respeito, que circunscrever o domínio dos meios plásticos em sentido ideal e dar prova da maior economia em seu emprego. Nesta a ordem do espírito se afirma melhor que na abundância de meios. Evitar o emprego maciço de dados materiais (madeira, metal, vidro etc...) em benefício dos dados ideais (linha, tom e cor, que não são coisas tangíveis). Desde logo, os meios ideais não estão desprovidos de matéria; senão, não poderíamos 'escrever'. Quando escrevo com tinta a palavra vinho, esta não representa o papel principal, somente permite a fixação da idéia de vinho. A tinta contribui deste modo para assegurar-nos permanentemente vinho. Escrever e desenhar são, no fundo, idênticos. A produção (geração) da forma se vê energicamente atenuada em relação à determinação (concepção) da forma. Última conseqüência destas duas espécies (causa eficiente e causa material) da formação é a forma. Dos caminhos à finalidade. Do que se faz ao perfeito. Da vida a instituição. A forma em sentido vivo (Gestalt) é uma forma com funções subjacentes; em alguma medida é uma função de funções. Ao começo, a masculina propriedade da sacudida enérgica. Em seguida, o crescimento carnal do óvulo. Ou melhor; o relâmpago fulgurante, e logo a vaporosa nuvem. E onde está mais seguro o espírito? No começo. Desde o ponto de vista cósmico, o movimento é, naturalmente, um dado prévio e absoluto e não requer, em sua condição de força infinita, nenhuma particular sacudida enérgica. A inércia das coisas na esfera terrestre não é mais do que o bloqueio material do dado dinâmico fundamental. Tomar esta fixidez por norma é uma farsa. A obra é em primeiro lugar, gênese, e sua história pode representar-se brevemente como uma fagulha que brota misteriosamente não sabemos de onde, que inflama o espírito, aciona a mão e, ao transmitir-se como movimento a matéria, converte-se em obra. Palavras como 'excitado' e 'provocado' dizem tudo a este respeito. A noção de provocação designa a pré-história do Ato Criador, as implicações 'pré-históricas' do fiat cosmogerador, a vinculação do Começo com o temporal, com o 'atrás'. A possibilidade que tem o sentimento de superar um começo está contida, por sua vez, na noção de infinito, que prolonga àquele 'adiante'. O conceito de infinito não só se relaciona com o Começo, mas ainda vincula este ao Fim e nos leva as noções de ciclo e circulação. A circularidade com o movimento como norma, que elimina o problema do começo. E então alguém, também tomado pelo movimento normal, sente despertar em si uma disposição criadora. Se sente mobilizado e mobiliza por sua vez. As principais etapas do todo do trajeto criador são deste modo: o movimento prévio em nos mesmos, o movimento atuante, operante, voltado para a obra, e por fim ao demais, aos espectadores, o movimento consignado na obra. Pré-criação, criação e re-criação. Ao deixar desta maneira que se desenvolva pouco a pouco uma obra muito simples, primitiva, nos foi dado poder verificar mais de perto duas coisas importantes: antes de tudo, o fenômeno da formação; da formação em sua dupla relação com o desencadeamento inicial e com as condições de vida, da formação como desprendimento do misterioso impulso até à adequação à finalidade visada. O fenômeno já era perceptível em seu mais rudimentar começo, quando a forma começava a se constituir minimamente (estrutura). A fundamental relação da formação com a forma conserva, uma vez considerado o plano estrutural ('celular'), toda sua significação nos posteriores estágios, precisamente porque se há reconhecido nela um princípio. Esta significação pode enunciar-se assim: a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade interior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orientação determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e é, em conseqüência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquirido, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como movimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso. Boa é, portanto, a forma como movimento, como fazer; boa é a forma em ação. Má é a forma como inércia fechada, como detenção terminal. Má é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumprido. A forma é fim, morte. A formação é Vida. Isto se revelou por ocasião do crescimento de uma obra muito primitiva.

O posterior desenvolvimento do organismo nos permite fazer uma segunda comprovação: como o trajeto criador penetrava em um caminho mais amplo, nos demos conta do inconveniente de um itinerário demasiadamente uniforme. Como se prevenir de um andar tedioso quando o caminho é o fundamental da obra? Faz-se necessário, logo, que o caminho ganhe em complexidade, se ramifique de maneira excitante, suba e desça, se extravie, se torne preciso ou embaraçado, se amplie ou reduza, se acelere ou se entorpeça. Trata-se com isso de vigiar o porque as diversas seções do itinerário se acomodam entre si a fim de formarem uma coesão; em outros termos, para que sempre se possa abarcar com o olhar toda a sua extensão como um organismo individual. Mas a coesão da obra, com a mediação da identidade do trabalho e do processo de sua elaboração (a obra em sua história), constitui-se durante o caminho, em virtude de proporções elementares que ligam as partes entre si e ao conjunto. Todo trabalho é a relação do particular com o geral. Aqui, a obra que surge (bipartida). Lá, a obra que é. Pensar, portanto, antes que na forma ('natureza morta'), na formação. Manter-se com energia no caminho, relacionar-se sem descontinuidade com o primordial surgimento ideal. O produtivo, o essencial, é o caminho. O devir se mantém sobre o ser. A criação vive, em sua condição de gênese, sob o revestimento da obra. Isto é o que vêem todas as naturezas espirituais retrospectivamente. Prospectivamente, no futuro, só o vêem as naturezas criadoras. Todas as coisas são, finalmente, perecíveis. E o que resta do passado, o que resta da vida, é o espírito. O Espiritual na arte: o que na arte é artístico. A exigência do absoluto é a mesma em todas as direções em que atuemos.

 

Bauhaus,

traços orientais que nos elevam ao 'artisticamente artístico', quero dizer, Otacílio vislumbra em Índia, Paquistão, Rússia...a Espiritualidade decantada, Orientada pela exigência do que é Absoluto em nós.

 

De Stijl,

a eclosão errojada do 'electric body' melgaciano expondo-nos a uma música voltada à tecnologia de ponta porém alicerçada em raízes estilísticas consubstanciadas, magmático-cosmopolitas.

Além de toda a engenhosidade carpida pelo compositor mineiro

ao projetar e executar

 

Du Spirituel Dans L’Art

(‘Der Blaue Reiter’

Melgaço's Music Project),

 

chego à conclusão de que ele presta uma contribuição singular à modernidade (via fusão Música Eletrônica/E-Music) como ‘outra metade do eterno e imutável’, como um revigorado pescador de pérolas depositadas na excitabilidade e efervescência do fugidio e transitório. E, para desempenhar uma proposta de tal envergadura, elege o elemento essencial da afinidade existente entre

as obras de arte de todos os tempos: seu conteúdo místico."

 

 

Trilha Sonora_____________________

 

MORT PEUT DANSER 

 

Fragmento de Faixa Única - Tempo Total de Duração: 00:54:49

 

DEAD CAN DANCE

 

Como as primeiras manifestações musicais não deixaram vestígios, é praticamente impossível dizer qual a data exata do nascimento da música. Alguns estudiosos nem tentam; outros enfrentam o problema com base naquilo que se sabe sobre a vida humana na Pré-história e preenchem as lacunas com certa dose de imaginação. Mas nenhuma hipótese diz com exatidão o momento em que os primitivos começaram a fazer arte com os sons.

Ao que parece, o homem das cavernas dava à sua música um sentido religioso. Considerava-a um presente dos deuses e atribuía-lhe funções mágicas. Associada à dança, ela assumia um caráter de ritual, pelo qual as tribos reverenciavam o Desconhecido, agradecendo-lhe a abundância da caça, a fertilidade da terra e dos homens. Com o ritmo criado - batendo as mãos e os pés -, eles buscavam também celebrar fatos da sua realidade: vitórias na guerra, descobertas surpreendentes. Mais tarde, em vez de usar só as mãos e os pés, passaram a ritmar suas danças com pancadas na madeira, primeiro simples e depois trabalhadas para soarem de formas diferentes.

Surgia, assim, o instrumento de percussão

(Vide Carnivàle, Obra percussiva de O.M.).

Os barulhos da natureza deviam fascinar o homem desses tempos, dando-lhe vontade de imitar o sopro do vento, o ruído das águas, o canto dos pássaros. Mas, para isto, o ritmo não bastava, e o artesanato ainda não permitia a invenção de instrumentos melódicos. De modo que estranhos sons tirados da garganta devem ter constituído uma forma rudimentar de canto, que, junto com o ritmo, resultou na mistura de palmas e roncos, pulos e uivos, batidas e berros. Era o que estava ao alcance do homem primitivo.

E terá sido um estilo que resistiu a séculos.

Contudo, segundo os atuais conceitos de música, essas tentativas de expressão foram demasiadamente pobres para se enquadrarem na categoria de arte musical. Mas, do ponto de vista histórico, elas tiveram uma importância enorme. Porque a sua rítmica elementar acompanhou o homem à medida que este se espalhava sobre a Terra, formando culturas e civilizações. E evoluiu com ele, refletindo todas as transformações que a humanidade viveu

até chegar a ser como é agora.

(Grupo virtual“NósAchamos”)

 

Da pueril introdução, friso: ‘ao que parece, o homem das cavernas dava à sua música um sentido religioso. Considerava-a um presente dos deuses e atribuía-lhe funções mágicas. Associada à dança, ela assumia um caráter de ritual, pelo qual as tribos reverenciavam o Desconhecido.’ Tais palavras poderiam servir de frontispício a Mort Peut Danser de Otacílio Melgaço. Composição para um ballet imaginário, talvez um dia ainda a ser levada à coreografia pelos entendidos, a peça possui sentido religioso, seu caráter é ritualístico (como toda criação melgaciana) e presta reverência ao Desconhecido por meio do eclipse Música/Dança... Ohno territorializa um Desconhecido que se revela Oriental pelos traços nipônicos encontrados na impoluta trilha. O Butoh que tanto fascina Otacílio e que sofre devoção direta através do título 'Morte/Morto pode dançar'. Nijinsky personifica, hominifica o lema quiçá como um elo anunciador (pois russo, vereda intermediadora na mente do compositor) ao Ocidente da própria mortificação necessária ao parimento de um novo corpo-em-movimento: suposto enlouquecimento que se reverte em lucidez elevadíssima.

Música como 'uma organização temporal de sons e silêncios'. Mort Peut Danser coloca O.M. no patamar dos mais gabaritados a interceder sonoramente em nichos da dança contemporânea. Isso porque, com veracidade e autenticidade,

Melgaço, assim como Nietzsche, somente crê,

tenho absoluta certeza,

 em um Deus que saiba dançar...

 

 

Acima,

foram disponibilizados alguns fragmentos;

para escutar mais trechos de tais Obras melgacianas

- e agora em versões integrais -,vide aqui.

 

+

 

Elos a exegeses complementares

das vertentes sonoras de O.M.:

Música Contemporânea

Instrumental (Brasileira)

Popular (Brasileira)

Poesia Sonora

Melting Pop

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