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B l i n d f o l d 

T e s t 

 

por Marcos Richter

 

('Blindfold Test' é um colóquio direcionado - gravado e depois transcrito -

em que registros musicais são ouvidos, espontâneos comentários feitos -

perguntas lançadas desordenadamente, 'às cegas'.

O entrevistado não tem ciência de quais são os álbuns ou

dos músicos que neles tocam.

Poderá identificá-los ou não. Reações são captadas.

Aqui, Otacílio Melgaço tem como interpelador - a nosso convite -

o musicoterapeuta -

e colaço de O.M. - Marcos Richter. Intermitentemente serão

realizados tais testes com

Melgaço, sempre a abordar um estilo diferente de música em

intervenções autênticas, breves, informais, reveladoras...)

 

J a z z

 

(Antes de mais, registro que minhas impressões a respeito de Otacílio Melgaço quase se assemelham às de Kazantzákis diante de Kaváfis: "À meia-luz de uma morada senhorial, eu tentava distinguir seu rosto. Entre nós há uma mesinha, cheia de copos com licor de lentisco de Quios - e nós bebemos. Falamos sobre grande número de pessoas e idéias, rimos, calamos, e a conversa recomeça, com certo esforço. Eis diante de mim um homem íntegro que realiza a proeza da arte, orgulhosa e silenciosamente; um nômade solitário que submete a curiosidade, a ambição e a sensualidade...ao ritmo severo de uma ascese epicuréia. Distingo na obscuridade, sobre o divã, sua figura - ora ele é todo expressão mefistofélica e ironia; seus belos olhos amendoados brilham logo que cai sobre eles um pequeno raio da luz das velas... Sua voz, nessa noite, é cheia de denguices e colorida - e encanta-me que sua velha alma pecadora, ornamentada, cheia de galanteria e astuta se exprima com tal voz. Compreendo quão sabiamente uma tal alma, complexa, conseguiu achar sua forma na arte - a forma perfeita que lhe convém - e subsistir. Melgaço tem todos os traços típicos de um homem extraordinário - sábio, irônico, hedonista, sedutor. Vive como um indiferente, um ousado. Olha pela janela, esperando que os bárbaros apareçam. Segura um pergaminho com elogios finalmente caligrafados. Os bárbaros não vêm, e, perto da noite, ele suspira tranqüilamente, e sorri ironicamente da simplicidade de sua alma a esperar. Em voz alta, Melgaço sibila: 'Quando partires em viagem para Ítaca faz votos para que seja longo o caminho, pleno de aventuras, pleno de conhecimentos. Os Lestrigões e os Ciclopes, o feroz Poseidon, não os temas, tais seres em teu caminho jamais encontrarás, se teu pensamento é elevado, se rara emoção aflora teu espírito e teu corpo. Os Lestrigões e os Ciclopes, O irascível Poseidon, não os encontrarás, Se não os levas em tua alma, Se tua alma não os ergue diante de ti. Faz votos de que seja longo o caminho. Que numerosas sejam as manhãs estivais, nas quais, com que prazer, com que alegria, entrarás em portos vistos pela primeira vez; pára em mercados fenícios e adquire as belas mercadorias, nácares e corais, âmbares e ébanos e perfumes voluptuosos de toda espécie, e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes; vai a numerosas cidades egípcias, aprende, aprende sem cessar dos instruídos. Guarda sempre Ítaca em teu pensamento. É teu destino aí chegar. Mas não apresses absolutamente tua viagem. É melhor que dure muitos anos e que, já velho, ancores na ilha, rico com tudo que ganhaste no caminho, sem esperar que Ítaca te dê riqueza. Ítaca deu-te a bela viagem. Sem ela não te porias no caminho. Nada mais tem a dar-te. Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou. Sábio assim te tornaste, com tanta experiência, já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.' Inclino-me e encho o seu copo com mais licor de lentisco de Quios e, por um momento, seus olhos pareciam brilhar de sarcasmo e gentileza.")

 

1 - Expressions,

Chick Corea

 

(Momento de silêncio. Nosso teste começa e Melgaço, antes deitado em divã - de olhos fechados -, levanta-se, vai até a janela novamente e começa a observar o movimento não dos bárbaros mas dos automóveis na rua. De um rompante, se pronuncia) 

 

"Também há música desprovida de alma... Eu é que tenho o péssimo vício de exigir que tudo não se descole do anímico..." OM 

 

"Mas e a técnica, não supre isso?" MR 

 

"Não sei... Muitas vezes simplesmente a técnica nos coopta ao inanimado... Da passarada de pianistas que passou por debaixo das asas de Miles, ele (Melgaço se refere a Chick, o reconhece), ao acompanhar nosso orfeu negro, me agradava no elétrico. Mas fazendo agora um retrospecto de sua carreira individual, sou tomado por flashes inconstantes que se derretem como os relógios, não persistem na memória... Sempre os músicos hão de se reinventar, imolar si mesmos para tomarem senda-de-fênix mas, levando em conta os que têm coragem de arriscar, e por isso mesmo (esses de que tanto gosto!) a responsabilidade deles se torna bem maior. Quase insustentável porque carecem de ter muita coragem! Não podem passar impunemente já que vislumbraram algum Olimpo, qualquer Olimpo, e depois nos jogam na cara somente a própria Queda!? Eu me nego a ampará-los! Não se faz uma Travessia pela metade... Tenho horror a desníveis qualitativos na diversidade, tantos se perderam depois de Davis, suas viúvas... Lhes faltou 'expressividade' (Maquiavélico, Melgaço faz um trocadilho com o título do álbum?); o virtuosismo pode ser um caminho para a proliferação de autômatos... Depois, o onanismo ouvidos adentro?! Ah, excusez-moi... Veja, com Jarrett isso não se deu. Tenho certa veneração por Keith. Mas Chick... Onde fica o lavabo?" OM

 

2 - Duet,

Archie Shepp

& Dollar Brand

 

(Otacílio volta, nota-se que seu rosto passou por um fluxo intenso de água)  

 

"Sim, Shepp. Desde que emergi - emergir no sentido de me manifestar - na corrente sanguínea do Free Jazz, trago alguns músicos enxertados em mim, fossem propriamente Freemen ou transbordassem bem perto. Quando comprei meu primeiro saxofone, um alto, tinha Ornette em mente, adquiri o instrumento só para tocar 'Lonely Woman' e depois o venderia no dia seguinte porque já tinha a certeza mais absoluta que me voltaria ao tenor. Há uma versão (Melgaço sorri sutilmente) de Shepp para 'Garota de Ipanema' que reaviva com eletrochoques excitantíssimos nosso Jobim. E ele, além de tudo, era um ativista, um homem engajado na questão da luta contra o racismo, escrevia peças, se pronunciava... Admirável, a arte como o eixo de tantas topias! Monk tinha um piano-com-arestas, fazia uma música cubista - é o que sinto em Shepp, deixa espasmos arcaicos, dissonâncias de uma acupuntura que me atrái, ele (Pára um pouco, coloca a mão sobre a boca por um alguns segundos) trái os espaços, compreende?, os espaços que vão se formando como lápides do que nos é expectativa, e eu expect-ativo...e isso é bom, há de ser assim..." OM 

 

"E o pianista?" MR 

 

"Gosto dos desdenhosos, são os grandes sonhadores..." OM   

 

3 - ETC,

Wayne Shorter

 

(O.M. senta-se no chão, em posição meditativa)  

 

"Coltrane o elogiava... Não sei se me lembro bem, alguma analogia com domínio na feitura de ovos!" OM 

 

(Ele gargalha e contrasta com sua postura, seus paradoxos sempre em voga) 

 

"A maneira como improvisa..." MR 

 

"Sim, Shorter, sempre o tive como um tipo raro de arquiteto, quero dizer, é possível perceber com minúcia e extática o modo como vai construindo seus temas, improvisações... - posso escutar a música em seu projeto original, sua 'planta' assim como visualizar uma casa que está ainda 'no papel'... Até mesmo, holograficamente, (Toma fôlego) holografonicamente... (O.M. transforma o ato da fala em algo literalmente palatável; ele se alimenta das palavras, mastiga, engole, regurgita e tudo se faz banquete para nossos ouvidos, regurgitofagia!) ...já se nota pelo maravilhoso poderio abstrativista com que nos enfeitiça, os futuros andaimes de uma estrutura shorteriana! Em geral é uma característica suspeita mas nunca na música que Ele faz! Fecho os olhos e vejo Escher quando ouço Wayne! A hipótese plantada em nós de que há concreção no Impossível!" OM 

 

"Sabe, as baladas dele, me transmitem sensações indescritíveis... São mesmo donas de uma impossibilidade..." MR

 

"Como?" OM 

 

"Bem, me soam descoladas de tempo e espaço se comparadas às de outros tenoristas, eu digo na forma de compor e interpretar também... É como se Wayne trouxesse inspiração de coisas que estão além do domínio da expressão humana... Não sei se me faço entender..." MR 

 

"Claro, compreendo. E ainda há seu soprano que é às vezes lâmina, puro corte... (Levanta-se e começa a ativar o corpo na mesma cadência dos sons, Otacílio cria uma coreografia - a partir do que ouve - por um ou dois minutos) Talvez eu discorde um pouco de você, se me permite. O que diz me reporta a algumas peças de Messiaen, Schoenberg, Orff ou Webern... Isadora Duncan dizia que procurava na natureza as formas mais belas, o movimento que lhe expressava a alma estaria na natureza, essa arte dançarina. Wayne, eu acho, consegue - além de ser o único shorteriano - ser duncaniano: suas notas são tiradas de nuvens, ondas; dos membros que se interpenetram - das afinidades entre paixões e tempestades..." OM

 

4 - It's a Blue World,

Barney Kessel

 

(Aproxima-se do aparelho de som, não quer observar nada além de poder encostar os ouvidos nas caixas que pulsam)

 

"Como você sabe, dos guitarristas - o que se tornou uma referência seminal para mim foi John McLaughlin. Seus primeiros discos, bem antes da Mahavishnu Orchestra... Por mais que eu ouça inúmeros músicos cosmopolitas - a versatilidade dele, sua capacidade de transitar por infindáveis nichos sempre me cativou e arrebatou. Apesar de não estar in a silent way como eu, quem sabe..." OM

 

"E...?" MR (Ele me fita com um ar vago mas intimidador) 

 

"E...tudo isso abriu meus horizontes para uma gama bem idiossincrática de guitarristas, escapei do demônio-surdo das predileções... Quem toca é Kessel?...sim?" OM

 

"Sim, é." MR 

 

"O que eu queria dizer é que há uma odisséia que escraviza mas que inicia esse homem... (Melgaço agora retorna à janela e deixa com que a ventania passe a lamber seu rosto, uma tempestade se aproxima) Mister Kessel padece de tão iniciático, maiêuta de si mesmo..." OM 

 

"O que isso significa?" MR 

 

"Sua sonoridade o isola do rendado das notas dos outros instrumentos... Ouço uma guitarra, uma guitarra que se volta para dentro do próprio ventre, tudo vai se tornando cada vez mais e mais tácito, mais silencioso e, de um instante a outro, estamos eu e Barney ali. Somente os dois... O grandioso no homem é que é uma ponte e não um fim - não sei porque Nietzsche me vem à mente agora... Kessel é uma ponte e ele nem mesmo tem ciência disso, uma ponte que lança o homem numa aventura que é genesíaca... Seu jazz, nesse sentido, dissimula: o que é benéfico porque desestimula os que não devem acompanhá-lo depois..." OM 

 

"Depois de quê?" MR 

 

"Quem sabe? Quem pode mesmo saber? O que realmente nos aguarda do outro lado da ponte?" OM

 

5 - Waltz for Debby,

Bill Evans Trio

 

(Aproxima-se como se fosse confidenciar algo)  

 

"Miles Davis e os anedotários. Quando convidou Bill para participar de seu grupo, depois de ouvi-lo tocar - e, obviamente, o queria por perto -, Davis lhe disse: 'Você poderá fazer parte mas há um ritual pelo qual todos os que pretendem tocar comigo devem passar.' 'Qual?' pergunta Evans, desconfiadíssimo! 'Você deve d.. para todos os membros da banda! Façamos assim, pense a respeito, vamos sair um pouco - eu e os outros - e quando voltarmos - me diz se fica no grupo ou não'. (Otacílio conta o fato com uma seriedade performática) Daí, depois de refletir bastante - ou seria sodomizado por quatro afro-americanos provavelmente bem dotados ou estaria fora de um dos maiores combos da história do jazz! -, quando retorna Miles, Bill lhe diz: 'Me desculpe, eu quero muito tocar com vocês mas isso eu não vou fazer!' Miles começou a rir, todos começaram a rir e Davis replica: 'Okay, my man, meu homem! você está dentro!'... É uma passagem da qual me recordo com uma exatidão qualquer, acho que a li na biografia de Davis... (Pausa para o efeito 'descontraído' de uma estória que é história - consta na autobiografia, pude comprovar depois) Mas, a propósito, Bill Evans e seu decantado lirismo, cativo de tantos impressionismos arrendados... Mais próximo de Seurat que de Monet... (O.M., que fitava alguns dos meus livros enquanto falava, retira um da estante, o traz até mim - reproduções de vestidos feitos de papel do estilista J. Nakao) Ele lança uma névoa clara, mesmo invisível...aos uníssonos da arquetipia pianística, pontilhista... Sua música é feita de papel, não são notas... No final - e é isso que amo em Bill Evans -: picotamos, rasgamos tudo, tudo, e, ficamos ouvindo o sonido da própria leveza..." OM 

 

6 - Look What I Got,

Betty Carter

 

(Balança a cabeça em contraposição ao movimento dos pés)  

 

"Sou um homem sádico diante das divas... Aí está mais uma das vacas sagradas do jazz norte-americano... (Me pergunto do teor de sarcasmo em uma inflexão que conseguiu ser dotada de tanta delicadeza) Se cito o divino Marquês, exceção faço a Billie, claro." OM 

 

"Isso é bom ou...?" MR 

 

"Impossível prever ou categorizar... Depende de meu... (Hiato dramático) ...estado de Espírito. (Betty faz alguns malabarismos enquanto isso) Há guirlandas nessas vozes, enlevos que perturbam mas de forma inofensiva talvez... Ou o contrário, reconfortam e isso me inquieta. Mas inquieta por necessidade de movimento próprio, evasão, motim... (Sincronicidade assustadora. O alarme de algum automóvel estacionado na rua defronte meu apartamento dispara, O.M. me pede desculpas e se afasta, sai do campo de minha visão. Após poucos minutos, de volta, me pergunta, com uma picardia travestida de ingenuidade, o porquê do disco ainda não ter chegado ao fim) Tive a oportunidade de assistir a Betty Carter - há muitos anos - no Palácio das Artes... (Espaço cultural tradicional de Belo Horizonte/MG) ...e lhe garanto: foi uma noite agradabilíssima. Uma experiência laboratorial... Se bem me lembro, houve uma versão de 'Inútil Paisagem' realmente hipnótica... É isso!, quando uma diva se desprende do figurino ou, melhor ainda, ...da mortalha, ...da Persona que a torna estatuetária - nos é permitido espionar a materialização do Ideal. A euritmia! A nudez do mito é um prólogo à euritmia e me perdi por átimos naquela paisagem límbica... Depois que Betty se despiu do limbo que era sua segunda pele, o palco se tornou um altar venusiano... (Havia um brilho prismático no olhar de Melgaço) Mas, infelizmente, previsivelmente, ulteriormente...o script foi retomado com a competência habitual; lá estávamos de novo diante de uma standárdica (Quase soletra) 'diva do jazz norte-americano' e tudo se tornou para mim um anticlímax, o que é pior... E...'Un Viva! au divertissement...'" OM

 

7 - Tauhid,

Pharoah Sanders

 

(Melgaço começa a dar voltas por todo espaço físico disponível. Traça círculos amplos e os vai diminuindo, aos poucos, bem lentamente como obra de um predador - até ficar estático no centro da sala)  

 

"Ah... Tenho uma fascinação peculiar por ele..." OM

 

"Sim... Sei que é do seu 'panteão'." MR

 

"Não poderia ter feito mais impecavelmente ao inseri-lo nesse 'teste edipiano'... (Ironia é comum em Melgaço, não de maneira depreciativa mas como um dínamo alavancador) São seres como ele, esses predestinados pela vida, homens de alma pagã, o arrojo desses sopros faraônicos - ou faroânicos? - por sobre tudo o que é pedra inerte... (O.M. toma a direção da porta e se despede com um gesto grandiloquente enquanto continua a falar e falar na mesma intensidade. Não abandonou o evento que se dava ali - ele me parecia contribuir para que a música de Sanders se proliferasse pelos vãos todos - como se, ao sair, permitisse que o espaço - ocupado há poucos segundos pelo próprio corpo - também fosse empossado pelas notas e ruídos do saxofonista!) ...são todos como montanhas incendiadas, nos desgarram dos continentes... (Ainda pude ouvir suas últimas palavras ao longe) ...essas medusas-às-avessas, não pode imaginar como amo cada uma delas, uma por uma, uma por..." OM 

 

(O já não mais audível e Pharoah concluiram a frase melgaciana)

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