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A valer-nos da 'meticulosa geometria do nada' engendrada pelo poeta português Herberto Helder, devíamos - perante a tropelia pós-moderna - ter precisão de perscrutar o enigmático dramaturgo Otacílio Melgaço tal e qual, a deitar contas ao tempo, a personagem de 'Os Pasos sem Volta' que faz, 'com o inexplicável ardor de quem se inicia na eternidade', uma 'viagem sem fé, inconseqüente', 'possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar'? Ou, exculpatório de uma literato-etnografia demiúrgica em si mesma, prescindia das palavras a, como maiêuta, pairar por uma ‘lévi-straussiana’ espaço-cronologia intermediária: ‘aquém do pensamento e além da sociedade’?

É mister que nos dediquemos a uma postura propedêutica diante de sua 'incógnita' obra, a mimetizar a nós radicalmente em confessas vítimas do ontológico e vital ímpeto de nos reportar, em bom agoiro, à Antiguidade.

‘Na Grécia antiga o teatro estava indissoluvelmente ligado aos ritos religiosos. Os espectadores reuniam-se muito antes do nascer do sol. Ao raiar da aurora, os sacerdotes entravam em cena fazendo uso de máscaras. O palco, assim como um pequeno altar nele colocado, ficava iluminado pelo sol. O sangue do animal imolado era recolhido num prato enorme. Um sacerdote com uma máscara divina, dourada, mantinha-se escondido atrás de outros sacerdotes. Depois, quando o sol já ia mais alto, num momento preciso, dois dos sacerdotes erguiam o prato a fim de que os espectadores pudessem ver a máscara divina, dourada, refletida no sangue. Uma orquestra de tambores e flautas tocava, e os sacerdotes cantavam. Por fim, o sacerdote oficiante baixava o prato e bebia o sangue’.

Façamos sintomática analogia a partir de uma história ‘afro-carnívora’ narrada pelo mesmo Helder: ‘A história foi colhida algures, de leitura, e respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome do povo: baobab, devoravam os cadáveres, deles iam urdindo a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. E apanho aqui o símbolo: uma imagem de si mesma, uma imagem absoluta, universal, devora esta gente, e esta gente põe a assinatura na imagem devolvida ao mundo. É quase tudo o que há para dizer no plano prático da poesia’.

Pois pois! No plano vaporoso do teatro de Otacílio Melgaço - que se nega a jogar o jogo das escondidas - o mesmo ocorre... Ébrios de nosso próprio e ritualístico sangue, somos absoluta imagem de nós mesmos - a amadurecer-nos a nós - por meio da especularidade de tal ‘devoração’ que é amante da soledade? e resplandecida ad hoc. Afinal das contas, se ‘a substância de alguém que pôs a mão no fogo é igual à substância do fogo enquanto grita’, ‘a substância de um homem e de uma estrela’ é, em sua essencialidade, ‘a mesma’.
C’est un droit qu’à la porte on achète en entrant!

Gabriel Salgueiro
(Lisboa, Portugal)

“Castelos desmantelados, Leões alados sem juba... Do final da poesia gosto muito, muitíssimo, por a terminar quebradamente, em desalento de orgulho: leões que são mais que leões, pois têm asas e aos quais no entanto arrancaram as jubas, a nobreza mais alta, toda a beleza das grandes feras douradas. O que eu desejo, nunca posso obter nem possuir, porque só o possuiria sendo-o? Destarte, o que eu quis dar foi a loucura, incoerência das coisas que volteiam – daí a junção bizarra de coisas que aparentemente não têm relação alguma... Vida nunca é onde."

 

I - Prólogo

DEUS NOBIS HAEC OTIA FECIT
ou
DO HOMEM CONTEMPORÂNEO

"Canção, neste desterro viverás,
Voz nua e descoberta,
Até que o tempo em eco te converta."
CAMÕES

A era anterior ao nascimento e a era após a morte são idênticas. Seu conteúdo: abolição do eu. Abolição de toda a realidade. Abolição da vida. ‘Exaltação’.
Concretização do ideal: o nobre Passado e o reluzente Futuro convergem e esmagam entre si o impuro Presente. Uma espécie de atemporalidade de esplendor terrível! A antiga língua hebraica expressa isto em sua estrutura profunda: ela não possui o tempo presente. Em vez disso, existe apenas o particípio. ‘E Abraão sentado na entrada da tenda’. Quer dizer, não ‘certa vez Abraão sentou-se’, nem ‘Abraão costumava sentar’, ou ‘por ocasião da escrita destas palavras Abraão está sentado’, não no tempo em que elas são lidas, mas como na marcação da representação de uma peça: ‘Toda vez que o pano sobe, vemos Abraão sentado na entrada da sua tenda’. Para toda a eternidade. Ele sentou e está sentado e ficará sentado para sempre na entrada daquela cabana.
Mas, paradoxalmente, o desejo de destruir o Presente em nome do Passado e do Futuro envolve sua própria contradição: abolição de todos os tempos. Congelamento. Eterno agora. Quando se renovarem os dias como antigamente e for estabelecido o Reino do Céu tudo deixará de se mover. O universo será parado. O movimento cessará e o horizonte também se afastará. Reinará um presente infinito. A história, junto com os poetas, é banida da república ideal de Platão. E de Jesus e de Lutero e de Marx e de Mao e de todos os outros. E habitará o lobo com o cordeiro - não com uma trégua temporária, mas para sempre: o mesmo lobo, o mesmo cordeiro. Sem murmúrio nem brisa. A anulação da morte lembra a morte em todos os aspectos. A expressão hebraica mística ‘o final dos dias’ significa: o final dos dias. Literalmente. No reino da redenção não há, portanto, lugar para um redentor. A vitória da revolta é a sua destruição, como o fogo do obscuro Heráclito. A Cidade de Deus libertada não necessita de libertadores.
‘Ele vê sombras de montanhas como se fossem montanhas’...
A negação do Presente é um disfarce para a autonegação: o Presente é percebido como um pesadelo, como um exílio, como um ‘eclipse’, porque o eu - foco do senso do Presente - é experimentado como uma depressão insuportável. Tempo bidimensional: passado e futuro. Em sua mente atormentada refletem-se um no outro sem cessar a glória antiga, original, que foi destruída pelas forças da corrupção, e a glória prometida, que voltará e se restabelecerá com ‘a renovação dos nossos dias como outrora’, após a grande purificação. O propósito de sua luta é: Libertar-se das garras do Presente. Destruir o presente até as bases.
De fato, o senso contemporâneo de presente não é bi mas sim unidimensional: o paraíso que houve é o paraíso que haverá.
O Presente é, portanto, um episódio turvo, uma mancha na tela da eternidade: deve ser apagado (com sangue e fogo) da realidade e até da memória, a fim de anular qualquer barreira entre a radiância do Passado e a radiância do Futuro, e possibilitar a fusão messiânica destas duas radiâncias. Deve ser feita uma distinção entre sagrado e profano, e o profano (o Presente, o eu) deve ser totalmente eliminado. Somente assim o círculo se fechará, o elo quebrado será reparado.
Você certamente não esqueceu a regra famosa no início de Anna Karenina quando Tolstoi envolve-se com um manto de divindade campesina tranqüila, pairando sobre o vazio de tolerância e bondade, e declara das suas alturas que todas as famílias felizes se parecem, enquanto as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Com todo o respeito a Tolstoi, eu digo que o contrário é correto: os infelizes na maioria estão imersos em sofrimentos convencionais, vivem numa única rotina estéril entre quatro ou cinco clichês de miséria gastos. Enquanto a felicidade é um objeto fino e raro, uma espécie de vaso chinês, e os poucos que chegaram a ele cinzelaram-no traço por traço durante anos, cada um à sua imagem, cada um segundo as suas medidas, portanto não há uma felicidade que se pareça com outra. E ao moldar sua felicidade, instilaram também seus próprios sofrimentos e humilhações. Como se refinassem ouro.
Toda a felicidade é basicamente uma banal invenção católica. A felicidade é kitsch. Não há nada em comum entre ela e a eudaimonia dos gregos. Por exemplo: no judaísmo não existe nenhum conceito de felicidade, nem sequer correspondente na Bíblia. Excluindo, talvez, a satisfação pela aprovação, uma retribuição positiva do Céu ou do próximo: ‘Bem-aventurados os íntegros’, por exemplo. O judaísmo reconhece apenas a alegria. Como no versículo ‘Rejubile-se, jovem, com a sua juventude’. Alegria efêmera, como o fogo de Heráclito, o enigmático, cuja vitória é a sua destruição, uma alegria que contém dentro de si o seu oposto, que na verdade a condiciona.
La commedia è finita.
Fé nascida da falta de fé: à medida que a fé em si próprio vai sendo destruída, fortalece-se a fé ardente na redenção, revigora-se a necessidade urgente de ser salvo. O redentor é tão poderoso quanto se é pequeno, nulo, insignificante. Henri Bergson diz: não é verdade que a fé mova montanhas. Ao contrário, a essência da fé é a capacidade de não distinguir mais nada, nem mesmo montanhas movendo-se diante de nossos olhos. Uma espécie de tela hermética, totalmente imune aos fatos. ‘Sua insuficiência para si próprio’, conforme a expressão de Pascal (ele mesmo um contaminado). Quanto à palavra fanatismo, é possível que a origem seja fanum, que significa ‘templo’ ou ‘local de oração’.
Torturador e vítima. Inquiridor e mártir. Crucificador e crucificado. Dependência mútua. A mútua admiração oculta...
'Que os mortos enterrem os mortos’ - os vivos enterrarão os vivos. ‘Os que vivem pela espada, pela espada morrerão’ - até a vinda do Messias com uma espada de fogo rodopiando em sua mão. ‘Amarás ao próximo como a ti mesmo’ - mas se o ódio por si próprio já o tiver devorado, esta ordem carrega-se de uma ironia mortal, ou seja: amarás e logo, ou a aniquilação dele será o melhor veredito. E quanto à prometida ‘ressurreição dos mortos’? Sempre sem o corpo. Despojar-se da corporalidade: aniquilá-la. E novamente Pascal: todos os males do mundo derivam do fato de que não somos capazes de permanecer tranqüilamente num aposento. Nossa futilidade vem, e nos destrói.

‘Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro’.

 

II - Logos e Verbo

DE TE FABULA NARRATUR
ou
DO HOMEM MELGACIANO

A sonora palavra ‘ritual’ provém do latim ‘ritus’, que significa ‘a situação correta’. Ou talvez: ‘hábito fixo’. E ‘humildade’? ‘Humildade’ vem de ‘humilus’, que pelo visto provém de ‘humus’, ‘terra’.
A árvore da vida (HUMUS) é para aqueles que a mantêm (RITUS)!
Sacrifício no altar do Ideal?
E assim, ‘coup de théâtre’ ou paulatinamente, a vida se reseivifica. A amizade toma o lugar da estima. O respeito substitui a auto-negação. Participação em vez de obediência. Fraternidade no lugar de sujeição. Fala substitui gritos. Dúvida no lugar de suspeita. Alegria no lugar da tortura. Saudade no lugar da depressão. Meditação no lugar da degradação. Separação em vez de traição. Cisão em vez de assassínio. Mudança em vez de morte. Contudo, sempre que necessário, Morte em vez de ‘viagem purificadora’ (sic) ou Vida em vez de ‘imortalidade’ (sic). A ser assim, a dizer ao cabo de um silêncio: o Tempo melgaciano é ‘matéria do entendimento, escolopendra’ como diria o seminal João Guimarães Rosa.
Em missiva destinada a mim, Otacílio, ao escriturar, faz-se Imoralista e elucida, e aqui inauguro a terminologia, seu 'HOMO MELGACEUS': "...Eu vivia sem exame, sem lei, tratando simplesmente de viver, como fazem o animal ou a criança. Via que a minha vida voltava a ser certa e consciente. Depois de longa agonia, pensei ter voltado a ser o mesmo e haver ligado de novo o presente ao passado; numa terra desconhecida eu podia me iludir assim; aqui, não; aqui tudo me revelava o que ainda me surpreendia: eu estava mudado. Quando, em Siracusa e mais adiante, quis retomar meus estudos, mergulhar como antigamente no exame minucioso do passado, decobri que alguma coisa havia, se não suprimido, ao menos modificado em mim o gosto por aquilo tudo: era o sentimento do presente. A história do passado tomava agora a meus olhos essa imobilidade, essa fixidez terrível das sombras noturnas no pequeno pátio de Biskra, a imobilidade da morte. Antes, eu me sentia bem com essa mesma fixidez que permitia a precisão do meu espírito; todos os fatos da história apareciam diante de mim como as peças de um museu, ou melhor, como as plantas de um herbário, cuja secura definitiva me ajudava a esquecer que, um dia, ricas de seiva, elas tinham vivido sob o sol. Agora, para poder achar algum prazer na história, eu precisava imaginá-la no presente. Os grandes fatos políticos deviam, portanto, impressionar-me muito menos do que a emoção que renascia em mim pelos poetas, ou por certos homens de ação. Em Siracusa, reli Teócrito, imaginando que os seus pastores de nomes bonitos eram os mesmos que eu havia admirado em Biskra. Minha erudição, que a cada passo despertava, era um estorvo à minha alegria. Eu não podia ver um teatro grego, um templo, sem logo reconstruí-lo abstratamente. Diante de cada ruína que ficara no lugar de uma festa antiga, sentia a tristeza profunda de saber que ela estava morta; eu tinha horror à morte. Evitava por isso as ruínas; preferia, aos mais belos monumentos do passado, esses jardins baixos chamados Latomias, onde os limões têm a doçura ácida das laranjas, e as margens do Cíane, que, entre papiros, corre ainda tão azul como no dia em que correu para chorar Prosérpina. Cheguei a desprezar dentro de mim essa ciência que era antes o meu orgulho; esses estudos, que antes eram toda a minha vida, pareciam ter comigo apenas uma relação perfeitamente acidental e convencional. Descobria-me outro, e existia, feliz de mim, fora daquelas coisas. Como especialista, sentia-me estúpido. Como homem - será que me conhecia? -, sentia apenas que estava nascendo sem poder saber quem eu nascia. Era o que precisava descobrir. (O acervo espiritual dos conhecimentos adquiridos desaparece como uma maquilagem, e deixa ver a nu a própria carne, o ser autêntico que se escondia.) Foi 'este', desde logo, que eu pretendi descobrir: o ser autêntico, o 'velho homem'; aquele que o Evangelho já não queria mais; aquele que tudo em torno de mim, os livros, os mestres, meus pais, e eu mesmo tínhamos tentando suprimir. E ele me aparecia já, graças aos elementos superpostos, mais apagado e difícil de descobrir, mas, por isso mesmo, ainda mais útil de descobrir e mais valioso. Desprezei, desde então, esse ser secundário, aprendido, que a instrução desenhara por cima. Era preciso apagar esses elementos superpostos. E eu me comparava aos palimpsestos; gozava o prazer do sábio que, sob escrituras mais recentes, descobre sobre o mesmo papel um texto mais antigo, infinitamente mais precioso. Que era, afinal, esse texto oculto? Para lê-lo, não seria necessário, antes de tudo, apagar os textos recentes? Assim, eu já não era mais o ser enfermiço e estudioso, a quem convinha a minha moral precedente, perfeitamente rígida e restritiva. O que havia aqui era mais do que uma 'convalescença'; havia um aumento, uma recrudescência de vida, o afluxo de um sangue mais rico e mais quente que devia tocar meus pensamentos, tocá-los um a um, penetrar tudo, impressionar, colorir as mais remotas, delicadas e secretas fibras do meu ser. Porque a robustez ou a fraqueza se fazem; o ser se forma segundo as forças que tem; mas, para que estas aumentem e permitam poder mais, e... Na verdade, eu não pensava mais; uma fatalidade feliz me guiava. Temia que um olhar mais apressado viesse perturbar o mistério da minha lenta transformação. Era preciso dar tempo para que os caracteres apagados reaparecessem, e não procurar formá-los. Deixando, pois, o meu cérebro não ao abandono, mas em repouso, entreguei-me voluptuosamente a mim mesmo, às coisas, ao todo, que me pareceu divino. Tínhamos deixado Siracusa, e eu corria sobre a estrada escarpada que une Taormina a La Molla, gritando, para atraí-lo a mim: Um novo ser! Um novo ser! Meu único esforço, esforço então constante, era o de sistematicamente desprezar ou suprimir tudo o que supunha dever unicamente à minha instrução passada e à minha primeira moral. Num gesto voluntário de desdém pela minha ciência e pelos meus gostos de sábio, recusei ver Agrigento, e alguns dias mais tarde, no caminho que leva a Nápoles, não me detive junto ao belo templo de Pesto, onde ainda palpita a Grécia, e aonde fui, dois anos depois, rezar a não sei que deus. Que digo? Único esforço? Poderia interessar-me por mim, senão como um ser perfectível? Nunca minha vontade se exaltara tanto como para atingir a perfeição desconhecida, que eu imaginava confusamente... Saber libertar-se não é nada; o difícil é saber ser livre."
Sobre a etimologia do termo ‘Desiderium’ – em prol de um empreendimento discográfico, o revedor Melgaço - talvez sem ter, de todo, se dado conta ou a desandar à roda - ‘define’ o espírito de sua obra. Tentemos nos comportar hermenêuticos se encostados à rima do mapeamento lexical parido pelo autor: “ ‘Constelação’, em latim, significa ‘Sidus’. Em seu plural, ‘Sidera’ seivaticamente nos reporta à devoção, celebração voltada ao que nos transcende – o Alto habita. Eis ‘Sideratus’, por conseqüência, a revelação – ao Humano de como os Astros fomentam fluências em Seu ‘profundo-eu’. Tal palavra, perpetuando labiríntica-teia, engendra outra (através da meticulosidade perscrutadora do Profano, a Oracularidade – designação do Alto – transmuda-se em referenciação de nossas vidas): ‘Considerare’. Antitética, ‘Desiderare’ epifanicamente nos remete a um ‘Elogio órfico da mistagoga Cegueira’. Ao deixarmos de vislumbrar os Astros, ...somos contemplados com todos os legados que uma Eleita Orfandade pode nos oferendar... ‘Desiderium’, pois, como foz d’outra lexical prole (‘Desidero’), por fim, banhado em lusitanos sargaços, passa a ter como luzidio ancoradouro a palavra ‘Desejo.’” A clamar ‘Desiderioso Homem’, o autor encarna a mais fiel tradução de si mesmo... ‘Pois sábio sempre foi Ulisses que começa por se fazer de louco’... E, O.M. reitera o questionamento sem fim: ‘Se fazer’?

III - Epílogo

DE VISU ET AUDITU

Em focalizados anteriores ditames de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa ou Amós Oz transcendemos a sujidade, o tédio do contemporâneo aviltamento de um ‘Eu-profundo’ projetável pelo espaço fora para, em cimeira conclusão, testemunhar no brasileiro Otacílio Melgaço, a (mais) verossímil arquitetura - a de maior monta - de seu existencial e dantesco portrait: ‘O luce etterna che sola in te sidi, sola t’intendi, e da te intelletta e intendente te ami e arridi! Se non che la mia mente fu percossa da un fulgore in che sua voglia venne’.

- apêndice -

A por de parte o intuito de abordar a 'incógnita' biografia do autor - abrilhantada, pelo próprio, por peremptório 'understatement'- , pretenderemos aqui revelar meandros de sua dramática TRILOGIA - inauguradora da melgaciana produção teatral - a redundar em sua divulgação ao internáutico público. Resguardados serão títulos, excertos de Obras etc, a charadista pedido de seu paridor. Que seja obscuro objeto de ulteriores desejos... Tratamos, pois, de pragmática jornada pelas áleas de um modesto panegírico.

TRILOGIA

 

PARTE PRIMEIRA

Atque in perpetuum, frater, ave atque vale! (Catulo) ‘I am too pure for you or anyone. Your body hurts as the world hurts God. I am a lantern – My head a moon or japanese paper, my gold beaten skin infinitely delicate and infinitely expensive’ (Sylvia Plath – Fever 103) ‘Entretanto, lá pelo final dessa liquidação melancólica do ativo de uma cultura moribunda, estava-me reservada uma surpresa. Era o início da noite, quando todos aproveitavam as últimas horas da fogueira a fim de se preparar para dormir. O chefe Tapefahi já estava deitado em sua rede; começou a cantar com uma voz distante e indecisa que mal parecia lhe pertencer. Imediatamente, dois homens (Walera e Kamini) foram se acocorar a seus pés, enquanto um arrepio de excitação percorria o grupinho. Walera lançou alguns apelos; o canto do chefe ganhou nitidez, sua voz firmou-se. E, de repente, compreendi a que assistia: Taperahi estava representado uma peça teatral, ou, para ser mais exato, uma opereta, com mistura de canto e texto falado. Ele sozinho encarnava uma dúzia de personagens. Tratava-se de uma farsa cujo herói era o pássaro ‘japim’ (um orolídeo de plumagem preta e amarela cujo canto modulado dá a ilusão da voz humana), tendo como parceiros os bichos tartaruga, onça, gavião, tamanduá, anta, lagarto etc., os objetos bastão, pilão, arco, e por último, espíritos, como o fantasma Maíra. O enredo girava em torno das aventuras do ‘japim’, que, ameaçado primeiro pelos outros bichos, mistificava-os de diversas maneiras e terminava por vencê-los. A representação, que se repetiu (ou continuou?) por duas noites consecutivas, durou cada vez cerca de quatro horas. Por instantes, Taperahi parecia tomado pela inspiração, falava e cantava abundantemente, em outros, parecia esgotado, sua voz enfraquecia. À medida que a noite avançava, percebia-se que essa criação poética acompanhava-se de uma perda de consciência e que o ator deixava de ter o controle de seus personagens. Suas diferentes vozes tornavam-se-lhe estranhas, cada uma adquirira uma natureza tão acentuada que era difícil acreditar que pertencessem ao mesmo indivíduo. No final da segunda sessão, Taperahi, sempre cantando, levantou-se abruptamente da rede e pôs-se a circular de forma incoerente, pedindo cauim; fora ‘agarrado pelo espírito’; de repente, pegou uma faca e precipitou-se sobre Kunhatsin, sua mulher principal, que a muito custo conseguiu escapar, fugindo para a floresta, enquanto os outros homens o seguravam e o obrigavam a voltar para a rede, onde ele logo dormiu. No dia seguinte, estava tudo normal’. Cantemos as loas do truísmo: o relato do antropólogo Claude Lévi-Strauss, à luz de estruturalismos sem viciação, nos conduz, indefectível, à dramática ‘taumaturgia’ melgaciana!
‘Intensidade. Era apenas isso, tudo o que eu sabia fazer’. (Mora Fuentes – O Cordeiro da Casa)
“Com freqüência já se comparou o teatro Nô à tragédia grega. Os coros, as máscaras, a escassez de personagens, a importância da música e da dança e sobretudo a aliança da poesia passional e lírica com a meditação sobre o homem e seu destino recordam, de fato, o teatro grego. Como as obras de Ésquilo e Sófocles, o teatro Nô é um mistério e um espetáculo; quero dizer: é uma visão estática e simbólica da condição humana e da intervenção, ora nefasta, ora benéfica, de certos poderes diante dos quais, alternativamente, o homem se depara ou se imola. Mas, a tragédia é mais ampla e humana: seus heróis não são fantasmas, são seres terrivelmente vivos, possuídos, sim, mas lúcidos também. Por outro lado, é uma meditação sobre o homem e o cosmos infinitamente mais arriscada e profunda: seu verdadeiro tema é a liberdade humana diante dos deuses e do destino.”
‘...No soy el Cristo-Dios,
que te perdona,
Soy un Cristo mejor:
soy el que te ama’
(Almafuerte)
“O pensamento dos trágicos gregos”, 'coadunável' à estilística do autor brasileiro, “brota de uma raiz religiosa e todo o seu teatro é” – quiçá – “uma reflexão sobre a ‘hybris’, isto é: sobre as causas e os efeitos do ‘sacrilégio’ por excelência: a desmesura, a ruptura da medida cósmica e divina. Essa reflexão não é dogmática mas, ao contrário, de tal modo livre que não retrocede diante da blasfêmia, como se comprova em Eurípides e ainda em Sófocles e em Ésquilo” – 'perorativo', Octavio Paz incita-nos à mastreação. Um deus vem ao mundo e se aloja numa pessoa. Primeiro é apenas uma voz, um conhecimento, ou ainda uma ordem que pesa sobre essa pessoa. Ameaçador ou suplicante, repelente, mas também excitante. Ele se faz notar cada vez mais até a pessoa sentir sua força, até aprender a amá-lo, a fazer sacrifícios por ele? Crística prismaticidade de Otacílio inaugura o tríptico dramático.
'Desfaço-me do conhecido, Lanço comigo todos os homens e mulheres no Desconhecido' (W. Whitman)
A parafrasear estudos rosianos de Telma B. da Silva, loucura e realidade ganham existências iguais nesta gênese dramatúrgico-triádica. A loucura 'assombra' a realidade e ambas perpetuam-se a viceversificar-se... Em tal reciprocidade, uma se esconde n'outra, o 'Eu' e o 'Outro' se con-fundem...
Aqui, uma 'manifesta' personagem principal, como ritualmente xamânica, 'heuristicifica-se' fadária em cantilena que despertaria 'adormecidas loucuras', rompendo a membrana que separa uma multiplicidade de eus. Melopéia de consciência e desterro que cava vãos na existência e faz emergir essências a partir de uma nova lógica: o Rizoma. Para G. Deleuze, o rizoma não começa e não acaba nunca, não permite códigos superpostos; é uma Travessia dinâmica, pronta a se estender até um ponto em que as linhas de fuga se espalhem e se encontrem em alianças infinitas. Ei-lo! O 'fora do tempo' melgaciano, ex-centricidade-mor, fluir incessante,
GRND
SRT...
Retrospectiva subjetivista - na atualidade do que se tem vindo a resenhar - do teatro clássico chama a terreiro, ad instar, helênica arquetipia. William Blake, ‘Introduction of Songs of Experience’: ‘Hear the voice of the Bard! Who Present, Past & Future, sees; whose ears have heard The Holy Word that walk’d among ancient trees, Turn away no more: why wilt thou turn away? The starry floor, the wat’ry shore, is giv’n thee till the break of day’. Diria neste caso, até o romper dos sete selos do não-findar dos dias...

 

PARTE SEGUNDA

‘Conheço quem vos fez, quem vos gerou, rei animado e anal, chefe sem povo, tão divino mas sujo, mas falhado, mas comido de dores, mas sem fé, orai, orai por vós, rei destronado, rei tão morrido da cabeça aos pés’ (Jorge de Lima – Invenção de Orfeu) Ficaríamos tentados a contrapor dois tipos de sociedades: as que praticam a antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos indivíduos detentores de forças tremendas o único meio de neutralizá-las, e até de se beneficiarem delas; e as que, como a nossa, adotam o que se poderia chamar de antropemia (do grego emein, ‘vomitar’). Colocadas diante do mesmo problema, elas escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar os seres tremendos para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim. Na maioria das sociedades que chamamos de primitivas, tal costume inspiraria um profundo horror; em seu entender, isso nos marcaria com a mesma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por causa de seus costumes simétricos.
‘...mágicos, heróis, encantadores de ratos, todos esses que à força de correrem após si, foram de novo tomados da paixão de ser, e aos quais a própria lucidez levou a procurarem o máximo de cegueira’. (Francis Jeanson)
A abandonar a frialdade de amalgamável escolasticidade, o elizabetano drama, em Melgaço, resgata, preopinante, ‘A Queda – a descrição de uma queda fantástica, onde enfim jazemos esmagados sobre nosso próprio-eu’. Em outros léxicos: morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino: estagna só deus fingido, doente da sua ficção. Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la. Uns morrem; aos outros, tirando o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida.
‘O God, I could be bounded in a nutshell and count myself a King of infinite space’. (Shakespeare – Hamlet II, 2)
'Toda tragédia pergunta se o homem encontra a sua medida em sua particularidade ou se ela reside em algo que o transcende; e a tragédia pergunta - na entremeia parte da trilogia melgaciana - para fazer ver que a segunda hipótese é a verdadeira' brado eu, a partir de afirmação gerdbornheimiana.
No herói, no santo e no gênio os Deuses se lembram dos homens. (...) Os Deuses são amigos do herói, compadecem-se do santo; só ao gênio é que verdadeiramente amam. (...) Assim ao gênio caberá, além da dor da morte da beleza alheia, e da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, êxul ao mesmo tempo em duas terras. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Estes morreram jovem, porque os Deuses lhes tiveram muito amor.
Definiria assim, a me valer de providenciais arquetipias, a estilística filosófico-dramatúrgica do sr. Melgaço: Eis 'o diálogo entre o poeta e o santo! É difícil porque o primeiro, antes de falar, deve ouvir os outros, quero dizer, a linguagem, que é de todos e de ninguém; em compensação, o santo fala com Deus ou consigo mesmo, duas formas de silêncio.'

 

PARTE TERCEIRA

‘Havia em suma três, não, quatro Molloys. O das minhas entranhas, a caricatura que eu fazia desse, o de Gaber e o que, em carne e osso, em algum lugar esperava por mim. ...Havia outros evidentemente. Mas fiquemos por aqui, se não se importam, no nosso circulozinho de iniciados’ (Samuel Beckett – Molloy) A contemporaneidade teatral engendrada por nosso enfocado equivale ao 'instante' nietzschiano, uma tênue membrana que separa duas eternidades: o antes e o depois do homem, que é o lugar onde elas se chocam e se contradizem. O 'instante' não dá um centro ao homem. É lugar de passagem, uma membrana que o separa de si mesmo, de seus duplos: loucura/razão, tristeza/alegria, ódio/amor, morte/vida. 'Voragens que se entrelaçam através de fluxos acentrados' segundo a ensaísta Borges da Silva. Deparar-nos-íamos, destarte, com a 'desterritoriedade-do-eu'? 'A desterritorialização', retomo Deleuze, 'é um processo de dissolução, em que o indivíduo se deixa pilotar por outros componentes'. Quanto mais desterritorializado, mais o indivíduo que experimenta esse processo com ele se afina; mais se desloca do centro e descobre que 'a alegria deve ser buscada não na harmonia, mas na dissonância'. A peça teatral que culmina 'nossa' trilogia, via lexicais coloquialismos, visa a obreirização dissonantemente dodeca(co)fônica de transinsurrecta 'Instantaneidade'. O drama em Melgaço são deleuzianos rizomas! Nietzschianas (e, por que não?, alegres) dissonâncias... Fundamentais fantasmas de Lacan... Visto que, sua escrita...
Coisa estranha é a escrita. Tudo indicaria que sua aparição não poderia deixar de determinar mudanças profundas nas condições de vida da humanidade; e que essas transformações deveriam ser, acima de tudo, de natureza intelectual. Depois de eliminarmos todos os critérios propostos para distinguir a barbárie da civilização, gostaríamos de reter pelo menos este: povos com ou sem escrita, uns capazes de acumular as aquisições antigas e progredindo cada vez mais rápido rumo ao objetivo que se fixaram, ao passo que os outros, impotentes para reter o passado além dessa franja que a memória individual é suficiente para fixar, permaneceriam prisioneiros de uma história flutuante à qual faltariam sempre uma origem e a consciência duradoura de um projeto.
Contudo, nada do que sabemos sobre a escrita e seu papel na evolução justifica tal idéia.
'A borda do buraco no saber, que a psicanálise designa como de abordagem da letra, não seria o que ela desenha? (...) Entre gozo e saber, a letra constituiria o litoral' (Jacques Lacan)
Uma das fases mais criativas da história da humanidade situa-se no início do Neolítico, responsável pela agricultura, pela domesticação dos animais e por outras artes. Para chegar a isso, foi preciso que, durante milênios, pequenas coletividades humanas observassem, experimentassem e trasmitissem o fruto de suas reflexões. Essa imensa empreitada desenrolou-se com um rigor e uma continuidade atestadas por seu sucesso, enquanto a escrita ainda era desconhecida. O único fenômeno que a acompanhou fielmente foi a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e sua hierarquização em castas e em classes. Em todo caso, esta é a evolução típica à qual assistimos, desde o Egito até a China, no momento em que a escrita faz sua estréia: ela parece favorecer a exploração dos homens, antes de iluminá-los. Há que se admitir que a função primária da comunicação escrita foi facilitar a servidão. O emprego da escrita com fins desinteressados, visando extrair-lhes satisfações intelectuais e estéticas, é um resultado secundário, se é que não se resume, no mais das vezes, a um meio para reforçar, justificar ou dissimular o outro. E quanto a Otacílio - de si para si, de tempos a tempos - : ‘aquém da palavra, além da sociedade’?
‘E suspeitei que o próprio homem era uma metáfora temporariamente vestida de carne’. (Manuel Scorza)
‘Ao estirpar a noção de divindade, o racionalismo reduz o homem’? Aqui, escusado, questiono o mexicano pensador e poeta Octavio Paz. 'Equivoca-se aquele que de todos se fia como aquele que de tudo se receia'. Libertar-nos de Deus ‘nos encerra num sistema ainda mais férreo’? ‘A imaginação humilhada se vinga e do cadáver de Deus brotam fetiches atrozes’?
‘Ser si mesmo é condenar-se à mutilação, pois o homem é apetite perpétuo de ser outro. A idolatria do eu conduz’, a título de exemplo, ‘à idolatria da propriedade; o verdadeiro Deus da sociedade cristã ocidental chama-se domínio sobre os outros. Concebe o mundo e os homens como ‘minhas propriedades, minhas coisas’. O árido mundo atual, o inferno circular, é o espelho do homem cerceado em sua faculdade poetizadora. Fechou-se todo contato com os vastos territórios da realidade que se recusam à medida e à quantidade, com tudo aquilo que é qualidade pura, irredutível a gênero e espécie: a própria substância da vida.’ Através do artístico parimento de Otacílio Melgaço, a ‘poesia’ – quintessência originadora de irresistível halo empático – ‘é consciência da separação e tentativa de reunir o que foi separado (o homem e sua criação, o homem e seu semelhante). No poema, o ser e o desejo de ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu, ele, nós. Tudo está presente: tudo será presença’.
A contemporaneidade satírica (a fazer menção, não alheada, direta a Beckett, ‘Hoje, falho de ti, sou dois a sós. Há almas pares, as que conheceram onde os seres são almas. Como éramos um só, falando! Nós éramos como um diálogo numa alma. Falho de ti, estou um a sós’) do triádico desfecho melgaciano nos faz solidários (Deus o oiça!?) aos apontamentos do mesmo Lévi-Strauss citado anteriormente. E, ao deixarmos descair a fronte sobre as mãos e seu flectir, como nos furtar a inevitabilidade de consagrar particularíssimas referências à ‘Trilogia’ (e sua benignidade crítica) e sacramentar híbrida junção
do heurístico etnólogo francês
e
de um perorativo – auf dem Weg in eine andere Moderne – ‘zeitgeist goethiano’?:


 

‘É porque então eu era louco que hoje sou sábio’!
 


 

 

Cia IMAGO DEI 

 

 

 

(Da Primeira Trilogia de O.M.)

I M A G O  D E I
Gabriel Salgueiro – PT
Clara Scliar – BR
Alice Pereira – BR

Mensagens  destinadas a 'I.D.':
imagodei@europe.com

A ortografia vigente em Portugal não foi obrigatoriamente mantida ao longo deste sítio.

Gentil e auspiciosamente o sr.
Otacílio Melgaço
acompanhou este labor. Agradecimentos pelos benevolentes serpenteamentos interventivos. Os internautas hão de encontrar, propositada e inadvertidamente, inúmeras intervenções e citações de O.M. ao longo deste nicho para nosso maior júbilo.
O "Virtual", nas palavras de Lèvy, não é antagônico a mas é uma outra forma do "Real", pois pois?

Méritos há para a honrosa colaboração, "tendo andado a matar a cabeça para imaginar a arquitetura de nossa cibernética morada", do resenhista portenho e colaço de Melgaço,
sr. Pablo Suarez Paz.


“As coisas belas são as que, quando vistas, nos agradam.”

São Tomás de Aquino

Por meio de correio eletrônico – em meados de maio deste ano – postado a mim, o autor brasileiro Otacílio Melgaço citara, grosso modo, James Joyce. Relativa à passagem que gostava de reproduzir a seguir é a dissertação acadêmica daquele que nos legava ‘Exilados’. Intitula-se ‘Drama e vida’:

“Primeiro pegou o teatro grego; (...) Joyce disse que ele estava acabado, morto pelas adaptações de bastidor forçadas pelas condições do palco clássico. Quanto ao grande drama seguinte, o shakespeariano, este também estava morto, mera ‘literatura em diálogo’. Outros dramaturgos antes dos modernos, Corneille, Metastasio, Calderón, praticaram malabarismos de trama e não podiam ser levados a sério. Com o pronunciamento de Verlaine, ‘Et tout le rest est littérature’ na mente, (...) discutiu que não se devia confundir teatro com literatura. Literatura lidava com sutilezas individuais em termos de convenções contemporâneas, enquanto o teatro lidava com as leis imutáveis da natureza humana. Era paradoxal mas inegável que só os ‘novos’ dramaturgos percebessem o que era intemporal e dizia respeito a eles próprios. (...) O artista no teatro (...) adianta-se ao seu próprio eu e faz-se mediador na terrível verdade diante da face velada de Deus.”
IMPERTURBÁVEL, O MUNDO JULGA...
“Joyce aplicou a frase de Santo Agostinho, ‘securus iudicat orbis terrarum’, à arte; o artista não se preocupa em tornar seu trabalho religioso, moral, belo ou ideal, apenas se preocupa em ser verdadeiro com as leis fundamentais, sejam expressas em mitos, como nas óperas de Wagner, sejam em ficções realistas.”
(...)
“Ainda penso que se pode esboçar na árida mesmice da existência uma medida de vida dramática. Até o mais comum dos lugares-comuns, o mais morto entre os vivos, pode ter um papel num grande drama. É uma pecaminosa tolice suspirar pelos bons velhos tempos, alimentar nossa fome com as frias pedras que eles nos oferecem. Temos de aceitar a vida como a vemos diante de nossos olhos, homens e mulheres como os encontramos no mundo real, não como os apreendemos no mundo da fantasia. A grande comédia humana de que todos partilhamos dá um campo de ação ilimitado para o verdadeiro artista, hoje como ontem, e em anos passados. As formas das coisas, como a crosta terrestre, mudaram. Os mastros dos navios de Tarshish tombaram em pedaços ou foram devorados pelo desenfreado oceano; o tempo rompeu-se na rapidez dos poderosos; os jardins de Armida tornaram-se desertos sem árvores. Mas as paixões imortais, as verdades humanas que assim se expressaram, na verdade são imortais, no ciclo heróico, ou na era científica; ‘Lohengrin’, drama, que se desenrola numa cena de reclusão entre meias-luzes, não é uma lenda da Antuérpia mas um drama universal. ‘Espectros’, cuja ação se passa numa sala comum, é de importância universal – um ramo baixo da árvore, Igdrasil, cujas raízes se enfiam na terra, mas entre cuja folhagem superior brilham e tremem as estrelas do céu. Talvez muitos nada tenham a ver com essas fábulas, ou pensem que sua alimentação habitual é tudo de que precisam. Mas quando hoje em dia nos postamos sobre as montanhas, olhando o antes e o depois, ansiando pelo que não existe, mal e mal discernindo além das manchas do céu aberto; quando as esporas ameaçam, e a trilha se cobriu de selvagens urzes, de que adianta termos nas mãos uma bengala nebulosa em vez de um bastão de alpinista, ou que tenhamos tênues sedas para nos proteger do áspero vento das montanhas? Quanto antes entendermos nossa verdadeira posição, tanto melhor; e tanto mais cedo estaremos então de pé segundo nosso caminho. Enquanto isso, a arte, principalmente o teatro, poderá nos ajudar a preparar nossos lugares de repouso com maior visão e previsão, e que suas pedras sejam construídas com bravura e as janelas sólidas e belas.
‘(...) o que a senhora fará em sua sociedade, srta. Hessel?’, perguntou Rörlund. ‘Deixarei entrar o ar puro, pastor’, respondeu Lonta.”

Caro sr. Salgueiro, não obstante a aragem
‘t i n ager’
do ensaio (?) JOYceano, postulo augúrios – acolá – à dramática tríade que, aproado, aprecia.
Ironizaria, oxalá, suas
– re(a)portemo-nos a/em J.A.J. –,
'mineralógicas’ origens..?
Do que sei (se) é que: tomo como petrecho (‘jocax’) o foco (‘joyeux’) da referida crítica (‘dublinonsense’?) e, em/a favor dela, ulteriormente, o reverto...
(?)
Ass.:
C O l i d e s C A p e R

“Em direção a muitas mortes, muitas vidas, meu caminho de agora.” (Hilda Hilst)

APÊNDICE

 

Se apresentar o Teatro 

melgaciano como fruto de expressiva originalidade criadora é o ponto capital de nossa exegese:

Melgaço é Melgaço

- a melhor das definições! Nenhuma superior a essa tautologia.
Seu clima é o da genialidade criadora. É o poeta que faz a poesia. É o dramaturgo que faz o teatro. É a ‘inspiração’ que conduz o autor à obra. Toda lei é supérflua, secundária, acidental. A lei suprema é a ausência de lei, no ato da criação. Depois, é outra coisa. Depois do ‘Sopro’, então a lei, sob todos os aspectos, vai ressurgir como um dos pólos capitais da vida e portanto da arte.


O diálogo Liberdade-Lei,
como
o diálogo Homem-Deus,
como
o diálogo Passado-Futuro,
como
o diálogo Amor-Dever
e outros semelhantes, tudo isso vai reaparecer e constituir mesmo a trama dessa imensa tapeçaria em inúmeros quadros. Mas no princípio era o verbo, como
‘In principium erat Verbum’. Isto é, a arte repele a verdade em sua mais pura expressão. Assim como, tomando a metáfora da mística cristã, o Cristo é o Verbo de Deus e esse Verbo é a fonte da Vida. Assim também a Palavra é o verbo do espírito e a arte a função do verbo - decorrência desse verbo - que pode assumir vários aspectos e servir-se de muitos instrumentos, inclusive da ‘palavra’ para o ‘poeta’.
O verbo do artista é como o Verbo de Deus: o espírito criador, em Deus absolutamente desligado de qualquer limitação (e portanto ‘liberdade pura’) é, no artista, limitado apenas pela natureza, contra a qual vive em luta perene, dada a impossibilidade de ‘criar do nada, como Deus’.
Impossibilidade realmente?
Essa luta é consubstancial à obra do artista. Mas sua função é a criação pura, nos limites de sua natureza. De modo que, para Otacílio, cada artista nasce com o poder de recriar o mundo. E assim ele o fez lançando ao mundo contemporâneo uma obra que é, ao mesmo tempo, a expressão de uma personalidade desligada de todo o convencionalismo e libertada de todas as regras ‘exteriores’, mas dotada do espírito de ‘objetividade’. Seu paradoxo, sua maior originalidade talvez, será precisamente essa coexistência entre uma liberdade criadora que impõe o seu próprio estilo, pois parte, antes e acima de tudo, ‘de si próprio’, e ao mesmo tempo, uma obra que procura avidamente o objeto, o não-eu, o outro, a verdade, enfim. A verdade e a totalidade. Daí serem os pontos cardeais do teatro melgaciano: o homem e Deus, num sentido, e o Ocidente e o Oriente, em outro, de modo a compreender o mundo natural e o sobrenatural, conjugados e fundidos; assim como o homem em todas as formas de civilização e em todos os continentes, do Ocidente ao Oriente, segundo uma terminologia insuficiente, que quer dizer: ‘Universalidade’.
No centro de sua obra não está o seu ‘eu’ criador, nem o universo. Está o Homem unido ao Universo. Indissociavelmente... Esse Homem, conjunto de todos os homens, é, pois, o âmago do poliedro melgaciano.
Se escolheu o palco, como ambiente próprio de sua expressão literária, é que a Poesia - sua vocação profunda - tal como jorrava de seu temperamento tempestuoso, não se podia contentar com a expressão escrita. Era uma poesia essencialmente 'oral'. A oralidade é a sua nota capital. Poesia para ser dita e para ser ouvida. Há sem dúvida, em Melgaço, o mesmo sentido profundo de 'mistério' essencial a todas as coisas. E precisa de ser lido, como já disse, antes ou depois de ouvido, para que esse mistério não se confunda com qualquer esoterismo. Jacques Madaule nos lembra como os maiores poetas da humanidade, um Homero, um Virgílio, um Dante viveram 'no fim' de uma fase de civilização e contaram a súmula dessa civilização extinta ou moribunda. Cremos que, através das tramas melgacianas, 'estamos em face de uma gigantesca Suma poética, em que o futuro virá procurar a imagem dos nossos tempos... É a epopéia dos tempos modernos pois já entramos em uma nova idade do mundo.'
Reproduziremos aqui parte de um depoimento do próprio Otacílio Melgaço - dado a 'Cia. Imago Dei' - em que faz menção direta a Ezra Pound e nos sugere uma saraivada de inquerimentos:
" 'Anatole France, criticando os teatrólogos franceses, assinalou que, no tablado, as palavras devem dar tempo à ação; devem dar tempo a que os espectadores se apercebam do que está se passando.' Tal afirmação faz jus a reticentes relativismos, em minha franca opinião. 'O teatro grego depende muito do conhecimento que os espectadores ou os leitores tenham de Homero. Enquanto MATERIAL DE LEITURA não creio que os dramaturgos gregos cheguem aos pés de Homero. Mesmo Ésquilo é retórico. Mesmo no 'Agamenon' há quantidades de palavras que não funcionam como material de leitura, i.é, que não são necessárias ao entendimento do assunto. Estou convicto de que há muitos defeitos no teatro grego. Mas nunca tentaria impedir que alguém 'lêsse' Ésquilo ou Sófocles. Em última análise, penso que todo homem animado de uma razoável curiosidade literária há de ler o 'Agamenon' de Ésquilo. Mas se ele pensar no teatro como meio de expressão, verá que enquanto o veículo da poesia são PALAVRAS, o veículo do teatro são pessoas em movimento sobre o palco usando palavras.' ? 'Isto é, as palavras constituem apenas uma parte do veículo e as lacunas entre elas, ou as deficiências dos seus significados, podem ser preenchidas por 'ação' ? 'Pessoas que examinaram o assunto com critério e isenção estão absolutamente convencidas de que a máxima carga de significado verbal não pode ser usada no palco, exceto por breves instantes.' ? 'Leva tempo para que ela seja apreendida, etc' ? 'Seria injusto para um dramaturgo considerar suas PALAVRAS ou mesmo suas palavras e sua versificação como se fossem a plenitude da sua obra' ?"
Um novo sentido de 'ação' é, pois, a base do estilo melgaciano e daí a convergência dos dois afluentes de seu gênio poético, o lírico e o épico, para o grande rio dramático que vem a ser o seu teatro. Essa primazia prática da ação, diga-se desde logo, é o contrário do pragmatismo, pois aquela ação é 'a medida' da meditação. Em Otacílio a ação é o 'fruto' da contemplação, que conserva ontologicamente o seu primado, como o lirismo conserva também a supremacia, ao longo de toda a parábola dramática de Melgaço.
A escolha do teatro para a convergência das duas fontes, lírica e épica, era natural, pois teatro é antes de tudo Ação. O teatro como uma 'continuação da vida', mas não como uma 'imitação' da vida. Teatro é teatro. O espectador deve saber que não é a vida, é uma 'transposição' da vida, mas com 'sua vida própria', sua própria existência, seu 'estilo', em suma. É um ponto essencial para compreender o teatro melgaciano. Bem como a indicação do possível 'modo' de representá-lo. Não é a 'verossimilhança' que importa. Como o verossímil nem sempre é verdadeiro. O teatro é o teatro. A vida é a vida. O teatro, como a poesia ou o romance, representa a vida, mas com sua própria vida, com o seu próprio modo de viver e de dizer. Essa 'autonomia' não é independência, nem muito menos hostilidade para com a vida e para com a verdade. Tudo é 'transposto' para o palco, a verdade e o erro, o bem e o mal, a ordem e a desordem, de modo que 'vida' e 'teatro' estão em íntima correlação. O poeta-dramaturgo está sempre 'em relação com' a vida. Porém não 'finge' de vida. Possue a sua 'vida' própria.
O estilo Poético-Dramatúrgico de Otacílio nos leva ao conceito de Palavra-Ação. Assim como a vida termina na 'ação cênica', no teatro melgaciano, essa ação, por sua vez, se realiza plenamente na 'palavra'. A palavra, a enorme fluência verbal vai desde a desarticulação da mesma até o emprego de termos arcaicos e raros, sem falar na extraordinária profusão verbal, em que ordem e desordem intencionalmente coexistem. Chegamos ao paroxismo do emprego de palavras que perderiam o sentido para voltar a ser 'sons' como quando Melgaço utiliza ou cria léxicos sânscritos, gregos ou latinos.
O encontro com a 'Palavra', enfim, vai ser a grande revelação do poeta, em face de si mesmo. Eis como o poeta explica a fonte de sua poesia, o inconsciente, o que vem d'além da inteligência, do fundo indistinto de todas as faculdades, pois a poesia é fruto sensível e verbal do 'homem todo' e não desta ou daquela faculdade particular.
Traçando um paralelo barjoniano quando nos introduz à obra claudelina, "Otacílio Melgaço transita entre a alegoria e o símbolo. Concretiza abstrações e também, paradoxalmente, parte do real para atingir 'a idéia'. É preciso advertir aqui o caráter eminentemente sensual da poesia-em-ação de um Melgaço, as palavras, para ele, antes de instrumentos de significação, são realidades concretas e vivas, das quais prova e frui, na boca e na alma, o sabor e a imanência, antes de lançá-las no papel. No momento de seu encontro com o real, nenhuma consideração intelectual vem alterar no poeta dramático a virgindade da visão.
Como alegórico, aproxima-se da figura de um 'creador'. Busca traduzir em 'fórmulas' diretamente inteligíveis (a palavra, a ação, a cenografia etc) aquilo que permaneceria inacessível ou mesmo inimaginável a nosso 'afunilamento intelectivo'. Simultaneamente, não abdica de outra não menos relevante 'via de acesso': nossa perceptividade, intuitividade, degustar 'sensacional'. Isto é, dar à luz o considerado 'abstracionismo' é uma prova cabal de sua ascendência artística e necessariamente flertante com o Numinoso. Muito além de flertante, em conjunção, e ainda mais, irrevogavelmente Una.
Por outro lado, realista, mas realista total, seu simbolismo não saberia, entretanto, ater-se à apreensão direta do objeto, que constitui o primeiro tempo de seu movimento. Ambicioso de uma presa menos magra, rebelde a limitar a verdade das coisas que nos podem ser reveladas pelos nossos sentidos e definidas por nossa razão, vemo-lo aventurar-se mais longe, em busca de melhor conhecimento. Mas é ainda em um realismo autêntico que se vai inspirar o método desta mais exigente investigação. Longe de enriquecer gratuitamente, como se pretende, este dom inicial de todo um conjunto de atributos, lançados no arsenal de sua imaginação, vemos o poeta cavar, sempre mais adiante, ainda o tufo da realidade, sequioso primeiro de instruir-se, de progredir com respeito neste domínio reservado, até lhe ser dado por fim atingir, para além da simples superfície, a zona profunda onde jaz o mistério vivo do que é criado. É lá que cada realidade, objeto de seu férvido estudo, lhe vai aparecer, nimbada de uma franja espiritual, através da qual seu ser se prolonga. Eis o dramaturgo poeticamente instalado, não mais no plano do simples fenômeno, não mais - e nunca - no plano da noção que empobrece, ressequida e mutilada, mas no segredo mesmo da vida, onde tudo são ligações, contatos, trocas.
É então, e só então, que, melhor instruído quanto à verdade do mundo e quanto à maneira pela qual todas as coisas coexistem e 'co-nascem', cada objeto, assim reconhecido em suas ligações com o todo, vai aparecer-lhe 'significante', 'símbolo', carregado, ou melhor, participante de um valor que o ultrapassa. A afirmação deste valor simbólico não é, então, em nada antecedente ao exame objetivo da realidade. Longe de atentar na verdade das coisas e dos seres, o olhar do simbolista Otacílio a restaura em seu clarão original, a reconstitui, a ajunta. Quanto mais um ser é verdadeiro, vivo, 'real', mais ampla lhe aparece sua 'participação' nas riquezas do ser universal, e, portanto, mais cresce sua capacidade de significação.
Também o universo dos simbolistas, e o de Melgaço em particular, não deveria ser, sem dúvida alguma, senão injustamente considerado como uma espécie de supra-estrutura intelectual, vinda de fora, gratuitamente, a ajuntar-se ao edifício do 'real'. Seria bem antes - sem querer atribuir a esta palavra um sentido de menos valor - como uma infra-estrutura, perfeitamente objetiva, que uma escavação paciente trouxe à luz. Negar a existência desta última é condenar-se a ver a 'realidade' permanecer tão inexplicável quanto o seria, biologicamente, a planta, sem o reconhecimento da raiz invisível, através da qual se realizam suas trocas com as seivas da terra nutriente. Vê-se que estamos longe da ideologia, mas em plena história viva. Dá-se o mesmo quanto à personagem simbólica. Aqui também vai verificar-se este movimento que procede do concreto em direção à idéia. A respeito destas personagens, de que é Otacílio - ele mesmo - o demiurgo, pretende-se gerar conformes ao verdadeiro, o autor de teatro não se comportará diferentemente do que o poeta (como, aliás, deixamos claro o fato de que ambos são indissociáveis), posto em presença do universo realmente criado. Melgaço olha antes e escolhe as figuras de suas personagens, segundo a verdade mais enraizada em seu ser. Ao vê-las agir e viver é que nos é dado assistir à gênese de sua simbolicidade.
Quem não tenha um mínimo de 'ouvido musical', como se diz, não poderá entender O.M. Porque sua frase é antes de tudo um canto, que, por seu valor de encantamento, predispõe o coração a ouvir o segredo do qual ela está repleta. Ante uma página de Otacílio, os mais desavisados se encontram como o melômano bisonho ante o preto e o branco da partitura. Esta, tocada pela orquestra, começará a revelar-lhe seu sentido. É hierático sentir seu movimento e cadência, e assim, nos 'entregarmos' à sinfonia na magicidade de cada nota, tal como também é mister 'deixarmo-nos levar' pelo fluxo visionário dos versos melgacianos."
Essa dramaturgia poética, filosófica, biológica e teológica - pois inspirada ao mesmo tempo na respiração do corpo, na meditação especulativa e na forma da palavra 'polideísta', não é entretanto de molde a manter o poeta em comunicação com o seu contemporâneo habitat. De feita que o artista, queira ou não queira, será sempre 'um solitário', e quando se trata então de um poeta que revoluciona a própria poética vivencial de seu povo, a solidão é ainda maior. Todavia, em toda história da autêntica Arte, indubitavelmente bem acompanhado O.M. já está.
Assim como o nigromante de Claudel diz ao Imperador, Melgaço acaba por, ostensiva e imanentemente, proclamar a cada um de nós: 'Magnificentíssimo, vós não sabeis falar aos Mortos, como se deve' e começa então a gargarejar, a meia voz: 'Om! a, a, i, i, u, u, ri, ri, li, li, e, ai, o, ou!... Ouve! Ouve! Eu te conjuro pela força das letras, as vogais que a alma expulsa do corpo que se abre até o fundo. As graves e as agudas, o 'a' e o 'i', e as consoantes pela quais a boca dá passagem por suas três portas, a língua, os lábios e os dentes! Ouve os elementos! Formando as letras, uma por uma, como se ensina as crianças a soletrar, eu aplico a minha boca ao teu ouvido. Ouve, morto, a língua bem viva, ouve a língua bem humana! A palavra que, na alma côncava, pensa a si mesma e produz a si mesma. Ouve e fala!'
De Ésquilo a Dante, Shakespeare a Nietzsche, Mallarmé a Beckett... a alquimia do verbo em Otacílio Melgaço reflete um mundo de influências e, no entanto, a singularidade da criação. Já que o dramaturgo brasileiro permanece sendo por toda a vida aquele que procura senão ‘dire clairement des choses obscures’?
Ou seria exatamente o contrário?

 


Cia IMAGO DEI,
adaptação do ensaio de A. Lima que exalta o autor de "L'Otage",

ensaio este que nos espantou pelas similitudes para com nosso homenageado Melgaço.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

N O T A

 

"Todo o conteúdo desta página honrosamente abriga ensaio da luso-brasileira Cia Imago Dei

a respeito da e em tributo à Trilogia Primeira de O.M." [Confraria O|M]
 

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