fr a g m e n t o s
GEWOLLT
HER(R)ENVOLK
ANATOMIA DE UM ENIGMA
"Dados biográficos de Otacílio Melgaço sempre foram um desafio a qualquer pesquisador. Ecoando a postura de alguns
na História da Arte, ainda é daqueles que acreditam que de um Artista contam as Obras - quando contam, naturalmente. É por isso que não dá informações biográficas, ou, se dá, são falsas. E procura sempre modificá-las. Perguntemos o que queiramos saber e ele irá responder mas jamais dirá a verdade. Para não perpetuarmos uma grave lacuna, consta e conclui-se que a verdade (sua verdade) são
as próprias Obras e nelas Melgaço nos revela a única grafia de sua vida a ser realmente considerada.Repleto de idiossincrática fluidité da qual lança mão um autor que faz jus
a estar situado em contemporaneidade,
Otacílio Melgaço,
em presente trilogia, objetivou menção ao teatro
clássico,
elizabetano
moderno
respectivamente.
Oxalá um sutil Manifesto em consonância vital - e, repito, iconoclástica - ao esgar de seu conterrâneo poeta Carlos Drummond de Andrade: "Cansei de ser moderno, agora quero ser Eterno." (A. Reis)
_________FRAGMENTO 'GEWOLLT'
(EM CENA, AS PERSONAGENS
GEWOLLT / DIABO)
(GEWOLLT PERCEBE UMA PRESENÇA - ANTES OCULTA TALVEZ POR UM ‘PARADOXAL?’ DIÁFANO-BREU. DEPARA-SE COM UMA PERSONAGEM VESTIDA DE NEGRO, O ROSTO MASCARADO A SUGERIR, QUIÇÁ, A MAIS ENIGMÁTICA ‘CARNAVALIDADE VENEZIANA’?TAL ANDRÓGINA FIGURA AJOELHADA ESTAVA, ERA O DIABO)
GEWOLLT
Levanta... (APROXIMA-SE, DANDO-LHE A MÃO) Reconheço-te...Tu és a prova da eterna ressurreição, não és?
DIABO
Não, não G e w o l l t, (ÚNICA VEZ EM QUE
O NOME 'GEWOLLT' É CITADO EM TODA A PEÇA. FALA PROFUNDAMENTE SUAVE) não sou...
GEWOLLT
Como é possível saberes meu nome, se...nem mesmo eu...o supunha? (O QUE HÁ, DURANTE TODO DIÁLOGO, É UMA REVELADORA CONFIDÊNCIA DE UM CRESCENDO EMOCIONAL REPLETO DA MAIS FRATERNAL E ENTERNECEDORA CUMPLICIDADE)
DIABO
Não te preocupes... Saibas que nunca se deve trazer novamente ninguém à vida...! Pois
a nada se compara a dor de morrer
além de uma única vez!
GEWOLLT
Somente agora o Memorial-das-Eras presenteia-me com tal sapiência! Antes,
era-me impossível vislumbrar...
DIABO
Antes? (PAUSA) ...O Tempo ...o que é para Ti?
GEWOLLT
O Tempo...é Escolopendra! Ampulheta de maculada areia (COM AS MÃOS, UM GESTO SIMILAR AO DE ‘VIRAR UMA AMPULHETA DO ALTO PARA BAIXO’ COM O INTUITO DE FAZER
COM QUE A AREIA POSSA DESLIZAR PARA
SUA PORÇÃO INFERIOR - TUDO, NOTORIAMENTE, COM A MAIOR E MAIS MINUCIOSA DELICADEZA) que leva para outra órbita, outra ‘gravidade’ nula! - alhures, nenhures... - cada sagrado grão. Grãos
esses que, ao longo de tal infinda semeadura, engendram sublime Deserto: a Eternidade. Suprema depuração da Inexistência... Uma voz! Uma voz que me persegue, sibila, sussurra, estremece...: isso é o Tempo!...
assim no Céu como na Terra!
DIABO
E sobre o que ‘tal voz’ fala...?
GEWOLLT
Sobre ti...
DIABO
Sobre mim? Não creio... (FALA IRONICAMENTE)
GEWOLLT
Eis a mais pura e absoluta Verdade... O Diabo (OBSERVA VEEMENTEMENTE SEU INTERLOCUTOR) jovem já não é, e somente quando envelhecermos poderemos tentar compreendê-lo...Ou melhor, compreender-te!
DIABO
Astuto é o que és...
Mefistofamelicamente astuto!
GEWOLLT
De forma alguma... Ouço tais palavras como um elogio, meu caro interlocutor cativo... Entretanto, nada disso vem ao caso...
Este é nosso último encontro...
Manifesto-me derradeiro em despedida
a teu vulto...
DIABO
Por tal razão aqui estou. Afinal...onde mais haveria de estar senão aqui, velando a ti e
o que de Deus há em cada um... até mesmo
em mim! (MIRAM A PLATÉIA)
GEWOLLT
(VOLTAM PEREMPTORIAMENTE A SE OLHAR) Não é verdade... Talvez, seja exatamente
o contrário. (PAUSA) Pouco importa... (PAUSA) Ouve...: tu vieste de minha primordial
e argilosa costela, tu és meu cúmplice mais confiável; devo Me confessar contigo. (FALA HUMILDEMENTE)
DIABO
Quem sabe?, é o único favor que não posso, a ti, prestar...
GEWOLLT
Será que, depois de tudo, ainda permanece enigmático...o motivo de tua existência?
Tua revolta, teu exílio, desterro e degredo...?
DIABO
Minha infinita diáspora...é a maior prova de que não desejo ter a resposta para
tal pergunta...
GEWOLLT
Agora é diferente!
DIABO
Não, não é e nem poderia ser!
GEWOLLT
Por quê?
DIABO
Não depende de mim, de ti... Nem mesmo d’Ele! (OLHA PARA O CHÃO, JÁ NÃO MAIS PARA
O CÉU)
GEWOLLT
...d’Ele? De Deus, lembra-te?: imagem e
semelhança de Sua mais perfeita criatura?!? Observa o mundo! Maldito curtume-dos-corpos, erigido por tal privilegiada prole
...se revela ...Seu avesso mais fiel...?!
Não poderia ser Deus o Seu criador...! Tu! Ouve bem: somente Tu poderias ser tão equivocado, irracional Demiurgo!... (IMENSA PAUSA) Quanto a Ele... Olha, olha bem ...Do Meu rosto, recorda-te...do Meu rosto? E
o quanto depositei em ti Meus desejos de Órfão? Quando poderia imaginar que seduzirias..., Tu..., as Almas – crias Minhas – encarcerando-as...na Via-Crucis-do-Corpo, ...clandestina felicidade, sopro de vida, visão do esplendor?!!! (INTERRUPÇÃO SOLENE) Basta!!! Nada mais importa aos corações selváticos!... Não vês? O Meu Verbo,
Meu hálito de estátua, Minha própria apostasia...? (OLHA PARA CIMA) Ordeno-te, suplico-te! Olha para Mim! Estás agora, pródigo filho, diante (‘RALENTA-SE’ PAULATINAMENTE A FALA) de teu Verdadeiro Pai!... (O DIABO SE APROXIMA LENTAMENTE ATÉ ESTAR
A UM PALMO DE DISTÂNCIA. SURPREENDE-SE...
BEIJA-LHE, NESTE INSTANTE, OS LÁBIOS, DEMONSTRANDO RECONHECÊ-L(A)O MEIGAMENTE. RETIRA-LHE A MÁSCARA E REVELA O VERDADEIRO ROSTO - ENTREMENTES ASSEMELHANDO-SE, DE ALGUMA FORMA, AO DA PERSONAGEM PRINCIPAL)
DIABO
A Ti...? jamais poderei representar o papel de nobre Confessor... Tu és Tua própria absolvição!... (MUITO LENTAMENTE, AO LONGO DO MONÓLOGO QUE SE INICIA, TODA
A ILUMINAÇÃO DECRESCE E SOMENTE A QUE DESTACA GEWOLLT É MANTIDA)
GEWOLLT
É aí que te enganas... Tu (DESTAQUE PARA
O TOM IMPLACÁVEL DA FALA) é que és Minha absolvição! (AJOELHA-SE) Somente posso ser julgado por aquilo que não Fiz... Tu..., não! O veredicto que é incumbido a ti torna-se fruto de tuas ações, ...do que realizas, reversamente constróis... És tu ...Meu mais garrido antagonista à medida que permaneces sendo quem és... Imune...à minha Orfandade! Assim não fosse, ...o Diabo tu não serias... Por desideriosa decorrência, estás no encalço de fazer com que todos, todos (FITAM
A PLATÉIA) possam absolutamente se impregnar de seu Deus... à espera de encontrar o que resta de si mesmos em Mim... Ou , de Mim em si mesmos...!...eis o que estás a buscar ao longo de todo Triunvirato! (PAUSA) Absolve-Me Tu por deteres, acima de qualquer um, o sentido de Minha existência... Sentido esse que se perdeu, por culpa minha e só minha, ...infindáveis, infinitas vezes...... Sempre estás a rebuscá-lo... Redescobrindo-o...
H o m o u m a n i z a n d o - o... Absolve-me Tu por demonstrares que a ressurreição antecede a morte... E, sobretudo,
a Encarnação de Deus antecede a vida... Absolve-Me por criar-te para que enfim haja uma nova e derradeira gênese...em que... (PAUSA PRESTÍSSIMA), ...poderias tu imaginar?,
...a Criatura possa parir seu Criador, possa ela perpetuar amparada, acalantada, abnegada, (HÁ NESTE EXATO INSTANTE O CUME DA ESCURIDÃO EM QUE SOMENTE A FIGURA DE GEWOLLT PERMANECIA ILUMINADA E, A PRIORI DA PRÓXIMA DERRADEIRA PRONUNCIADA PALAVRA, O PALCO FICARÁ EM TOTAL ESCURIDÃO. QUANDO TAL ATMOSFERIZAÇÃO OCORRE JÁ HÁ UMA ANTEVISÃO DO - REVELADO AQUI - RETORNO AO MOMENTO INICIAL DA PEÇA, HAJA VISTA:
UM ‘PARIMENTO’...) absolvida!!!
________FRAGMENTO 'HER(R)ENVOLK'
(EM CENA, AS PERSONAGENS
REI / RAINHA / MAGO)
Obs.: Todas as personagens representam
os arcanos maiores do Tarot
rei
Tornarmo-nos reféns de um futuro que tem
a desgraça como premonição! Revela-se desesperador sim: o mero ventilar de
tão lasciva conjectura, amada minha.
rainha
Deixemos o vulto do desespero em outra face encarnar! Somente seres miseráveis rogam por tal privilégio!
rei
Pandemoniada minha mente lateja na ‘dentridão’ de quem, a vivenciar o Inolvidável, é sentenciado! Meu corpo: insurgente lápide! ...Minha ruína: mortífera musa a inebriar-me desarvoradamente de medo! De meu padecer entorpecido, condenar-me-ei ao doce martírio dos santos?
rainha
Reconheço...do Cântico-dos-cânticos das sereias, a volátil atraência! Todavia, tu és suficientemente lúcido, estás peremptoriamente sóbrio para recusar a alcunha de mártir! que a ti pretendes impingir!
rei
Como, então, deveria agir? ...se, a cada decair dos grãos virulentos da divina ampulheta – rarefeita em narcísica e regressiva contagem –
a máscara mortuária que em mim é colocada se confunde com a nítida feição de teu rei?
rainha
Empedernida máscara! És fácil presa de ti mesmo ao creres que te transmuta em escultor do próprio ocaso, Real Majestade! Como a ti tanto ousa fragilizar tal nascedouro de nigérrima peste?
rei
Eu? Uma espécie vulgar de Midas?
Um Midas-às-avessas?...
rainha
Se continuares sacramentando funesto dom de, tudo o que tocas, supor transformado em escombros: estarás com a razão e... Calar-me-ei!
rei
Meu império desafortunado se encontra!
O que fazer diante do que profere odioso Hierofante?, maldita seja sua figura!
rainha
Contra o mau agouro de malsoante profeta, há somente um elixir celestino! Uma benfazeja personagem!
rei
Pensas em quem? A quem confiar predestinado drama que nos aflige?
rainha
Dúvida alguma haverias de ter? Algum lacaio
teu além do Mago é dotado de predicados suficientes para conosco compactuar desferido segredo?! Será ele...a possuir alquímicos dotes...o único capaz, entre Reino e Fortuna, de resgatar almejada harmonia!
rei
Por que não o sumo sacerdote? Quiçá
o Papa?
rainha
Nada prudente serias tu se o santo homem interpelasses! Uma das maiores astúcias do Diabo é em sua não-existência nos fazer crer!
rei
Queres dizer que...
rainha
...uma das mais eficazes artimanhas de todo e qualquer Clero é a da beligerante persuasão, o convencimento justificável e necessário da inevitabilidade de sua própria existência! Vê, bom suserano, como a diabolicidade antípoda se faz do sacerdócio...em prol
de com ele equiparar-se!
rei
Se assim o fosse, todos... absolutamente todos coniventes seríamos com demoníaco pacto! Vendemos nós as almas ao Diabo pensando em nos alforriar dele! Não vês
o quanto tua proposição absurda é?
rainha
Absurda é a vida e cega dissimula o olhar,
a perspectiva que dela passaríamos a cultivar... Contudo nada é cotejável à infernal arquitetura templária da Decadência Humana!
rei
Sim! Convenceste-me! Ouçamos o que a nos dizer tem o Mago!
VÃO AO ENCONTRO DO MAGO EM UM DOS RECANTOS DO CASTELO
rainha
Oh, Mago, figural arcabouço de retas sendas, tortuosas retidões... Viemos requerer decisório parecer, oxalá todo um Reino não seja da arte que ministra ...uma Vítima!
mago
A honra de vos servir é mais peremptória que o mais divino dos decretos...
rei
Ouça-nos em resguardo, servil criatura...
rainha
Muito está a par da principesca insanidade! Fôra um dos eleitos servos a ser consultado em nome do adequado desfecho a tão desconcertante tragédia!
mago
Toda tragédia somente digna é daqueles que têm a Imortalidade como esteio, ilustre rainha.
rei
Com que verossímil propriedade faz, ...inoportuna..., absurda afirmação?
mago
Suplico sagaz e dolente compreensão, Vossa Grandeza... O povo que clama por um Deus, nunca será digno de por Ele ser salvo... Será repudiado pela mortandade sacra
das profecias!
rainha
Pouco importaria a mim, a meu soberano... teologais questões advindas de si!
mago
Perdão... Não verso sobre teologias, vã retórica dos sofistas... Tudo é metáfora!
rei
Sua vida... Sua vida está, dia a dia – sol a sol,
a se tornar uma delas, Mago infame!
rainha
Deixemos com que conclua estapafúrdia explanação...
mago
Real senhora... A insanidade de vosso filho deveria tal como lucidez ser tomada... No entanto, lucidez vigente em reino d’outro mundo...: em um terrenal...jamais!
rei
Começo a supor que a mesma língua
passamos a versar!
mago
Clamo em uma só voz, em que posso humildemente vos servir?
rei
Farei um breve relato pois...
rainha
Não! Que cumpra seu papel em vil farsa que aparenta agora estar em andamento! Em...desalento!... Se diante de um alquimista estamos, que revele os augúrios que nos estão reservados!
mago
Augúrios são fossas-do-tempo... dilatadas
em vossas imperiosas, prismáticas pupilas.
Deixai-me obsequiosamente observá-las tal qual com as estrelas confabulo...
O MAGO SE APROXIMA DA RAINHA E OBSERVA, COMO A CONSULTAR UM ORÁCULO,
AS PUPILAS DA REAL SENHORA
rainha
Mago, o que vê?
mago
Nada que já não tenha a nobre figura
do Hierofante desvendado!
rei
Como sabe?!
rainha
Olvidas tu, meu senhor, de que viemos recorrer a um iniciado em adivinhatórias artes?
mago
Eis! Tal pergunta deveria ser dirigida, suplico vossa benevolência, à própria Magia... Sou
um reles instrumento do Inominável!
rei
Eu! sou o porta-voz do Inominável Poder que a tudo subverte, prostra, condena ou absolve! Sua figura é um mero instrumento
de outro...e outro...e só!
rainha
Cala-te! Meu senhor, não percebes que podes estar a caminho da suprema Antifonia?!
Mago, diga-me agora sem hesitação ou
a morte terá como precoce companheira! Fiz uma pergunta a si: o que vê, ordeno que se pronuncie!
mago
O enforcado, real senhora. O enforcado vislumbro!
rainha
O que simboliza, o enforcado?
Diga!
mago
O único herdeiro deste reino vive, em segredo, trancafiado em cativa loucura! A cela em que se encontra, a mais lúgubre desse castelo, é, como tão bem sabeis, um fiel simulacro de si mesmo!
rei
Continue, continue!
mago
Desde que fora trazido à vida, instalara-se uma...maldição em vosso reino... Não mais haveriam Vossas Grandezas de conceber nova prole real! Condenados foram à irremediável infecundidade! De que valeria descomunal império fadado a ser, ...em desgraça, estéril?
A menos que...
rainha
A menos que...
mago
Todo mal só se extingue se ceifado em abismal raiz!
O enforcado, tal filial arquétipo, denuncia a pena de Morte ao desafortunado varão! Somente quando imolado, um outro terá
a permissão de vir ao mundo e perpetuar, magnânimo, vosso reinado!
rainha
Quem deteria o poder de conceder ou não incomparável permissão? Quem?
mago
Nem mesmo o sumo artífice de todo messianismo que existira, existe e não-mais-existirá poderia elucidar abjeta questão...
rei
Abjeta é a magia que professa!
mago
Ainda que demiúrgico oráculo de
vossa salvação?
rei
Como ousa!...
rainha
Detenha teu egóico brado, Real Majestade!
O mago deve estar paramentado de crua e
nua razão!
Para que o almejado varão - ânsia altaneira, majestática - possa ser dada à luz, teremos nós de presentear o insano filho engendrado... - singular fardo que, recalcitrante, nos assombra - ...com o amargo fel das trevas!
rei
Tal e qual o estorvo que sempre representou, qual destino além das trevas poderia merecer?
mago
Certamente não o de herdeiro das trevas que, mancomunadas, o destituirão do posto que até então ocupa: a própria vida!
rainha
Pois minuciosa reflexão nos é exigida
pela Providência!
Qual o valor de uma morte se dela tantas vidas estariam a depender? Um nobre valor... Nobilíssimo! Tal crença se estenderia à tua pessoa, Majestade?
rei
Se tantas sobre as quais trata se resumissem
a unicamente nossas duas existências, minha rainha; eis o mais intransponível ensejo
a inevitável sacrifício!
rainha
E o mago, o que teria a nos exclamar?
mago
Viver poderá significar seu antônimo em inesperado futuro, real senhora.
A eternidade imposta a um ser por intermédio da Morte teria o poderio de condecorar
os sobreviventes à efemeridade infinita?
rainha
Tais palavras nada revelam se cotejadas
à funesta profilaxia humana que, nos tempos atuais, o mundo nos receita...
mago
Cura alguma aplainaria a doença que nos assola... Somos o osso e a medula de
um divino crepúsculo...
rei
Matamos os deuses, se assim, Mago,
o quisesse... Gritemos em louvor à Santa Orfandade!
rainha
Atormenta-me, Real Grandeza, o escrutínio que vomita em mim a infalibilidade intuitiva de nós mulheres! Nossa liberdade supostamente órfã poderá ser, em contraface, incurável aprisionamento! Seremos a memória desse cárcere?
mago
Por ela, minha rainha, seremos consumidos!
rainha
Haveremos de desfrutar cada nuança da condenação que o homem impinge à Humanidade até onde nossas forças alcançarem! O último desejo da realeza
dos réus, que seríamos, ...a nós nunca
seria negado...
Que nos sirva de alento o fato de
definhar a alteridade se esta é usurpadora
de derradeiras forças que, por direito,
nos pertencem!!!
Assim os últimos seremos a tomar a morte nos braços... e, cerimoniosamente seguir
a grande vereda do Oriente Eterno. Lançaremos a sorte de todos se
açambarcada por regras de um jogo concebido pelas grandezas às quais
unicamente pode prestar, Oh Mago,
insuspeita vassalagem: refiro-me
a vosso real senhor e a mim mesma.
mago
Um abismo atrai outro abismo,
inestimável rainha.
rainha
Todavia, águias não geram pombas...
rei
Muito menos a paz com que elas haveriam
de nos agraciar...
A RETIRAR-SE DO RECINTO, A RAINHA, MUNIDA
DE METASTÁTICA IRONIA, VEREDICTA
rainha
Fechai agora os riachos, meninos;
os prados já foram saciados o bastante...
_________FRAGMENTO 'ANATOMIA
DE UM ENIGMA'
(EM CENA, AS PERSONAGENS
QUISIDA / KANZEON)
Q
- Quer saber?...sinto como se o nosso Tempo estivesse a desfalecer, ...cada vez mais
se esvaindo, desmilingüindo... Quando fecho
os olhos, posso ver a sombra de uma ampulheta diabólica contando, de grão
em grão, o quanto ainda nos resta...
Posso ouvir sua pulsação!...
K
- No final das contas, você acaba por confirmar uma velha hipótese que sempre rondou doentiamente a minha cabeça:
o quanto é ‘antiquado’ o andor,
a cinza-das-horas... O quanto o Tempo
é antiquado!
Q
- ‘Antiquado’?
K
- Ora... Moansday, Tearsday, Wailsday, Thumpsday, Frightday, Shatterday, (PRIMEIRA SÍLABA SUSSURRADA) “Unsaneday”... Existe algo mais fúnebre, enfadonho, démodé que
o Tempo?! Espelho espelho meu!:...esse mágico-das-traições consegue chegar ao disparate de ser, simultaneamente, a própria ampulheta, seus privilegiados grãos e, por fim, a mão (REPRODUZ O MOVIMENTO SUGERIDO, ‘TATEANDO O AR’) que gira, gira e...revira tal apetrecho sórdido, artefato mórbido, obsessivamente eterno pra que tudo recomece... de novo, de novo e mais uma vez...
Q
- E nós, detidos no centro de tudo isso!
K
- No ‘olho do furacão’ !
Q
- E, o pior: cegos! sem poder fazer absolutamente nada!
K
- Pelo menos há uma consolação: a Roda da Fortuna não se põe a girar pra qualquer um...
Q
- E que consolo isso pode trazer?!
K
- Quisida!? Nós somos os únicos que podem chegar a esse demasiado lugar!...
Q
(SORRI)
K
- Já estamos aqui faz muito tempo!... Ninguém veio ancorar suas naus e queimá-las, uma
a uma, em louvor ao nosso...calibanato!...
Só nós dois temos ciência desse Destino maior que devora todos...outros... Se mais alguém tivesse de aparecer, já teria dado o ar
da graça, não acha?!...
Q
- A menos que tenha encontrado o tal lugar antes da gente!... E nos deixasse aqui, sufocando, asfixiando...
K
- Eu não acredito!
Q
(NOVAMENTE SORRI TODAVIA ESPALHAFATOSO)
K
- Não seria justo!
Q
- E quem disse que a Justiça, seja representando o papel de Madame Butterfly ou, ainda pior: de Lady McBeth!, viria se intrometer em tudo isso?! Nem Ópera, muito menos Tragédia...: não nos damos a esse luxo...
K
- Quando as peças se encaixam perfeitamente, todo o restante desse maquinário diabólico se ajusta! La Machine Infernale ! Se já tivessem achado o lugar antes de nós, seríamos como dois farsantes..., os...bobos...da...corte! Abram alas ao Teatro-dos-Horrores e sua dupla decrépita de bufões!..
Q
- Desde o começo...tudo pode ter sido
um grande e tétrico espetáculo e mais:
um brutal equívoco!
K
- Se fosse, saberíamos...
Q
- Como?:‘saberíamos’?!
K
- É a mim que pergunta? Deixe-me ver...: seria através de um sexto sentido? Um sinal qualquer, uma revelação vinda do Alto,
um tremor de terra, um chamado de dentro, um satori, uma iluminação...?!
Q
- Lógico demais pro meu gosto... E a lógica, até agora, só nos trouxe problemas!...
K
- É verdade... A lógica deve ser a filha bastarda desse Enigma...
Q
- Olhe, Kanzeon, só nos resta fazer (SALIENTA) uma coisa: vamos sair ‘agora mesmo’ daqui!
Já devíamos ter feito isso há muito tempo!
K
- E pra onde?
Q
- Pra qualquer lugar que não seja aqui! Até agora só demos viciosas voltas em torno
de um mesmo círculo... Eu não quero ficar “preso dentro” dele, essa é a última coisa que eu poderia...desiderar!... Preferível, tenho plena convicção!: ser encarcerado fora dele!
K
- Então vamos! (AO PRONUNCIAR TAIS PALAVRAS, DESENCADEIA INESPERADA SURPRESA
A AMBOS) Você tem razão... Se alguma coisa relevante, decisiva fosse acontecer por aqui, já teria sido consumada... Não nos
pegaria, assim..., de surpresa!
A gente já teria percebido!...
Q
- E tem mais!: se aqui fosse mesmo “o” lugar,
e se a gente sabe que não faltou com a pontualidade em hora alguma; tudo
seria bem diferente...!
K
- Sabe... Essa decisão devia ter
sido tomada bem antes...
Q
- Eu bem que tentei!...
K
- Eu sei, eu sei... Não precisa de matraquear ladainha alguma! Preciso só d’um pouquinho de fôlego pra poder enfrentar o por-vir: a...senda-dos-milagres!...
Q
- ( EM SINAL DE REPROVAÇÃO ) Por favor! Já vai anoitecer e eu odeio ter de enveredar pela dentridão de um Oriente Eterno...
K
- Quanto a isso, pode ficar sossegado, Quisida. Essa noite a lua vai estar cheia e, por mais pródiga que seja, luz pr’alumiar, dar deslumbramento ao caminho...é o que não vai nos faltar!...
Q
- É o demando de minh’alma... (ESPREITA O CÉU) Mire: (PERPETUA ALTANEIROS VISLUMBRES) ...não que eu tenha medo do escuro..., dos...escuros... mas... veja: é que nunca se sabe, nem nunca se sabe, não é?...
K
- Tal qual o coração da gente... (NUNCA HAVIA ANTERIORMENTE OCORRIDO COM VITAL TEOR: SEUS SENTIMENTOS SE PRONUNCIAM ATRAVÉS DOS MEANDROS DE UMA EMOTIVA, TOCANTE, CONTAGIANTE SINCERIDADE)
Q
- Isso!... Parabéns! Com presteza aprendeu a ler meus pensamentos!... O coração das gentes... O invisível é mesmo essencial aos olhos...
K
- Mesmo porque, como diz a máxima: todo ‘descanso não passa de um remorso’!
(A CUMPLICIDADE ENTRE AS DUAS PERSONAGENS CHEGA AO PAROXISMO)
Q
- E eu que sempre decantei o coração como um degredo-dos-santos, aragem-do-habitar, (PAUSA) tenente-lugar...
K
- Lá vem você pronunciar de novo a palavra mágica: ‘Éli, ú, gê, a, érri...’! (NÃO COMO RECRIMINAÇÃO... HÁ UM TOM DE HUMOR
E FASTIO SIMULTANEAMENTE)
Q
- Na verdade, eu pressagiava tudo..., tudo isso muito antes da demarcação desse encontro... Mas, no dilúvio-das-horas, melhor tomar tento e fôlego pra que a gente possa... (KANZEON, BRUSCO, O INTERROMPE)
K
- Está bem, eu já sei... Só mais um átimo de instante... (OLHA PARA OS LADOS À ESPREITA DE ALGO QUE ESTÁ ALÉM DOS LIMITES DO PRÓPRIO PALCO) e aí poderemos ir... (COMEÇA A ANOITECER. É LUA CHEIA, COMO KANZEON HAVIA PREVISTO)
Q
(FITA KANZEON COMO UM INQUISIDOR
O FARIA)
K
- Eu estou pensando em... qual direção
vamos tomar!...
Q
- E faz alguma diferença?!
K
- Claro que faz!
Q
- Qualquer direção, qualquer Travessia
vai nos levar ao mesmo lugar!...
K
- De onde tira essas idéias, Quisida? Me diga!...
Q
- Você me pergunta: (O MESMO SORRISO QUIÇÁ NAÏF, QUIÇÁ CRUEL) de que ‘lugar’
eu tiro?
K
- Chega!... Eu não agüento, não suporto mais escutar essa palavra!... (OBSERVA SEMICIRCULAMENTE O ALTO) Vamos logo que já é noite e nem percebemos a famigerada transbordança-dos-breus!... (QUISIDA FAZ
O MESMO)
Q
- E olhe que eu prefiro – aos bardos, aos brados – enfrentar o vão-da-noite a ter de ficar mais um segundo encalhado, entrevado aqui, nesse fundo de poço, nesse poço sem fundo...
K
- Depois de tudo, de toda espera em vão, confesso que eu também!... Securus Iudicat Orbis Terrarum!
Q
- Eu suplico, Kanzeon: feche essa babélica matraca... (COM AR EMOCIONADO TODAVIA ‘ESCARNIANTE’ DE DESPEDIDA) Addio Terra! (PAUSA) Finalmente...podemos ir agora?!, (PAUSA) ...vamos então???
K
- (NO ABISMO DE UM SEGUNDO, HESITA) ...então... ( EM PRÓXIMO HIATO , DECIDIDO) ...vamos!!!...
(O TEMPO PASSA, O TEMPO SE ARRASTA! E... ELES NÃO SE LEVANTAM, NÃO SAEM DO LUGAR.
AS LUZES LENTAMENTE SÃO APAGADAS – FAZ-SE NIGÉRRIMA ‘A NOITE’ - E... AMBOS ESTÁTICOS, PETRIFICADOS... O PÚBLICO SE MANIFESTA.
A DENOTAR O FIM DO ESPETÁCULO –
AS LUZES NOVAMENTE SE FAZEM PRESENTES,
E... ESTATUETÁRIOS PERMANECEM...
NÃO SE LEVANTAM,
NÃO SAEM DO LUGAR)
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