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caleidoscopiando

De todos os modos de expressão e de excitação, existe um que se impõe com um poder desmedido: ele domina, deprecia todos os outros (?), age sobre todo o nosso universo nervoso, superexcita-o, penetra-o, submete-o às flutuações mais caprichosas, acalma-o, destrói-o, prodigaliza-lhe as surpresas, as carícias, as inspirações e as tempestades; é dono de nossas existências, de nossos estremecimentos, de nossos pensamentos: esse poder é a Música, e ocorre que a música mais poderosa é soberana... Ao mesmo tempo diabólica e sagrada. É culto e vício; ensino e tóxico; ela realiza, como o faz uma função litúrgica aliás, a fusão de todo um auditório onde cada membro recebe a totalidade do sortilégio, pois um milhar de seres reunidos que, pelas mesmas causas, fecham os olhos, sofrem os mesmos arrebatamentos, sentem-se sós consigo mesmos e, no entanto, identificados através de sua emoção íntima com tantos próximos que se tornaram realmente seus semelhantes, formam a condição religiosa por excelência, a unidade sentimental de uma pluralidade viva.

O maestro subia à estante. Poderíamos dizer que subia ao altar, que tomava o poder supremo; e, na realidade, ele o tomava, ele ia promulgar as leis, manifestar o poder dos próprios deuses da Música. A batuta era levantada: todas as respirações suspensas; todos os corações esperavam...

O problema afinal não é mais inútil ou mais ingênuo que discutir o que fez uma bela obra de música ou poesia; e se ela nos nasceu da Musa, ou veio-nos do Acaso, ou se foi o fruto de um longo trabalho? Dizer que alguém a compôs, quer se chame Mozart ou Virgílio, não é dizer muita coisa; isso não vive no espírito, pois o que cria em nós absolutamente não tem nome; trata-se apenas de eliminar de nossa profissão todos os homens menos um, em cujo mistério íntimo encerra-se o enigma intacto.

O som de nossa voz garante-nos muito mais do que esse firme propósito interno que ela pretende sonoramente que formemos. O timbre do violoncelo, sozinho, exerce em muitas pessoas um verdadeiro domínio visceral. Há palavras cuja freqüência em um autor revela-nos estarem dotadas de ressonância de uma qualidade completamente diferente nele e, em conseqüência, de uma força positivamente criadora, que normalmente não possuem. Esse é o exemplo dessas avaliações pessoais, desses grandes valores-para-um-só, que certamente desempenham um lindo papel em uma produção do espírito onde a singularidade é um elemento de primeira importância. Há uma contínua ou conservada ligação entre um ritmo e uma sintaxe, entre o som e o sentido.

Reconheço em mim todos os objetos possíveis do mundo comum. Todos os objetos possíveis do mundo comum, externo ou interno, os seres, acontecimentos, sentimentos e atos, permanecendo o que são normalmente quanto às aparências, encontram-se de repente em uma relação indefinível, mas maravilhosamente ajustada ao gosto de nossa sensibilidade geral. Isso significa que as coisas e esses seres conhecidos - ou melhor, as idéias que os representam - transformam-se em algum tipo de valor. Eles se chamam entre si, associam-se de forma completamente diferente da dos meios normais; acham-se (permitam-me esta expressão) musicalizados, tendo se tornado ressonantes um pelo outro e como que harmonicamente correspondentes. O universo poético assim definido apresenta grandes analogias com o que podemos supor do universo do sonho.

Compreender consiste na substituição mais ou menos rápida de um sistema de sonorização, de durações e de sinais por algo totalmente diferente que é, em suma, uma modificação ou uma reorganização interna da pessoa a quem se fala. E eis a comprovação: é que a pessoa que não compreendeu repete, ou pede que lhe repitam palavras.

Permitam-me fortalecer a noção de universo poético lembrando um noção parecida, a de universo musical. Peço-lhes um pequeno sacrifício: o de reduzir por um instante a faculdade do ouvir. Um simples sentido, como o da audição, oferecerá tudo aquilo de que precisamos para nossa definição, dispensando-nos de entrar em todas as dificuldades e sutilezas às quais nos levariam a estrutura convencional da linguagem comum e suas complicações históricas. Vivemos, através do ouvido, no mundo dos ruídos. É um conjunto geralmente incoerente e alimentado irregularmente por todos os incidentes mecânicos que podem ser interpretados por esse  ouvido, à sua maneira. Mas o próprio ouvido destaca desse caos um outro conjunto de ruídos particularmente observáveis e simples - ou seja, bem reconhecíveis por nosso sentido e que lhe servem de referência. São elementos que mantêm relações entre si, tão sensíveis quanto esses mesmos elementos. O intervalo entre dois desses ruídos privilegiados é tão nítido quanto cada um deles. São os sons, e essas unidades sonoras estão aptas a formar combinações claras, implicações sucessivas ou simultâneas, encadeamentos e cruzamentos que podem ser denominados inteligíveis: é por isso que na música existem possibilidades abstratas.

Assim, o músico se encontra em posse de um sistema perfeito de meios bem definidos, que fazem com que sensações correspondam exatamente a atos. Resulta de tudo isso que a música formou um campo próprio absolutamente seu. O mundo da arte musical, mundo dos sons, está bem separado do mundo dos ruídos. Enquanto um ruído se limita a estimular em nós um acontecimento isolado qualquer - um cachorro, uma porta, um carro...-, um som produzido evoca, por si só, o universo musical. Nesta sala em que estou falando, onde vocês ouvem o ruído de minha voz, se um diapasão ou um instrumento bem afinado começasse a vibrar, imediatamente, assim que fossem afetados por esse ruído excepcional e puro que não pode ser confundido com os outros, vocês teriam a sensação de um começo, o começo de um mundo; uma atmosfera diferente seria imediatamente criada, uma nova ordem seria anunciada, e vocês mesmos se organizariam inconscientemente para acolhê-la. O universo musical, portanto, estava em vocês, com as suas razões e proporções - como, em um líquido saturado de sal, um universo cristalino espera o choque molecular de um minúsculo cristal para manifestar-se. Ei-la: a idéia cristalina de tal sistema.

E eis o que contraprova a experiência: se, em uma sala de concerto, enquanto a sinfonia soa e domina, acontece de cair uma cadeira, de uma pessoa tossir, de uma porta se fechar, imediatamente temos a impressão de alguma ruptura. Alguma coisa indefinível, da natureza de um encanto ou de um cálice de Veneza, foi quebrada ou rachada.

As fórmulas mágicas são freqüentemente privadas de sentido... Agem em nós como um acorde musical. Uma idéia de algum Eu maravilhosamente superior ao Mim!

 Quero contar-lhes uma história real: tinha saído de casa para descansar de algum trabalho enfadonho através da caminhada e dos olhares variados que ela atrai. Enquanto ia pela rua em que moro, fui tomado, de repente, por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressão de um funcionamento estranho. Como se alguém estivesse usando minha máquina de viver. Um outro ritmo veio então reforçar o primeiro, combinando-se com ele; e estabeleceram-se não sei que relações transversais entre essas duas leis. Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e não sei que canto que eu murmurava, ou melhor, que se murmurava através de mim. Essa composição se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdades rítmicas comuns e utilizáveis. Nesse momento, a sensação de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa, quase inquietante. Não sou músico; ignoro totalmente a técnica musical; e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes, de uma complicação com a qual nenhum poeta sonhou algum dia.

Dizia-me então que havia erro de pessoa, que essa graça enganava-se de cabeça, já que eu nada podia fazer com esse dom - que, em um músico, teria sem dúvida tomado valor, forma e duração, enquanto essas partes, que se misturavam e desligavam-se, ofereciam-me inutilmente uma produção, cuja continuação culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignorância.

Depois de vinte minutos, o encanto se desvaneceu bruscamente; deixando-me, na margem do Sena, tão perplexo quanto a pata da Fábula que viu sair um cisne do ovo que havia chocado. Depois que o cisne voou, minha surpresa se transformou em reflexão. Eu sabia que a caminhada freqüentemente me entretém em uma viva emissão de idéias e que ocorre uma certa reciprocidade entre meu passo e meus pensamentos, com meus pensamentos modificando meu passo; com meu passo excitando meus pensamentos - o que, afinal, é notável mas compreensível. Ocorre, sem dúvida, um harmonização de nossos diversos ‘tempos de reação’, e é interessante supor que exista uma modificação recíproca possível entre um regime de ação, que é puramente muscular, e uma produção variada de imagens, de julgamentos e raciocínios. Mas, neste caso, aconteceu que meu movimento de caminhada se propagou para a minha consciência através de um sistema de ritmos bastante engenhoso ao invés de provocar em mim esse nascimento de imagens, de palavras internas e de atos visuais que denominamos idéias. Quanto às idéias, são coisas de uma espécie que me é familiar; são coisas que sei observar, provocar, manobrar... Mas não posso dizer o mesmo de meus ritmos inesperados.

Construir ‘existe’ entre um projeto ou uma visão determinada e os materiais escolhidos. Substitui-se uma ordem inicial por uma outra, quaisquer que sejam os objetos ordenados. São pedras, cores, palavras, conceitos, homens etc.; sua natureza particular não muda as condições gerais dessa espécie de música onde ela desempenha ainda apenas o papel de timbre, se continuarmos a metáfora. O autor, na imensa maioria dos casos, é incapaz de se dar conta, ele próprio, dos caminhos tomados e de que ele é detentor de um poder cujos mecanismos ignora...

Quer evoquemos a linguagem e sua melodia primitiva, a separação das palavras e da música, a arborescência de cada uma, a invenção dos verbos, da escrita, a complexidade figurada das frases que se torna possível, a intervenção tão curiosa das palavras abstratas; e, por outro lado, o sistema dos sons que se abrandam, que se estendem da voz às ressonâncias dos materiais, que se aprofundam através da harmonia, que variam através do uso dos timbres... Toda essa vitalidade multiforme pode ser apreciada sob a relação ornamental. (O ornamento, resposta ao vácuo, compensação do possível, completo de algum modo, anula uma liberdade?)

Poesia.
Deveríamos estudá-la primeiro como pura sonoridade, lê-la e relê-la como uma espécie de música; introduzir o sentido e as intenções na dicção somente quando o sistema dos sons que deve, sob pena de supressão, ser oferecido por um poema, estiver bem apreendido...

Leonardo da Vinci: “O ar está repleto de infinitas linhas retas e radiosas, entrecruzadas e tecidas sem que uma nunca se sirva do percurso de uma outra, e elas representam para cada objeto a verdadeira FORMA de sua razão - de sua explicação.”

Hoje, linhas de universo, mas não se pode mais vê-las pois somente as trajetórias sugeridas pelas melodias podem nos dar alguma idéia ou intuição de trajetória espaço-tempo...

Talvez ouvi-las?

(P.V.)

 

Ophicinicamente parafraseando, picardiando Mallarmé: absolutamente não é com idéias que se faz as músicas.

 

E sim com sons!´ (?)

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