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"O corpo do bailarino é 

simplesmente 

a manifestação luminosa 

de sua alma. 

'My motto - sans limites.' "

(Isadora Duncan)

Tendo eu - a priori -

apóstata e amoravelmente

me ajoelhado perante

o símbolo crístico,

fonte e foz - a meu ver -

de todo movimento corpóreo e

fundamento-mor de minha

G r a p h i a: o Coração

- Pontifex Maximus,

catalisador dos instintos

e propulsor anímico -;

dois outros intróitos se tornam

necessários a título meticulosa e

inextricavelmente complementar,

a compor solferino painel trindádico:

a Música e a Dança.

"Algo jamais experimentado

empenha-se a se exteriorizar...

um novo mundo de símbolos

se faz necessário, todo o simbolismo corporal,

não apenas o simbolismo dos lábios,

dos semblantes, das palavras,

mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes

dos membros em movimentos rítmicos.

Então crescem as outras

forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade,

na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para captar

esse desencadeamento simultâneo de todas

as forças simbólicas,

o homem já deve ter arribado ao nível

do desprendimento de si

próprio que deseja exprimir-se

simbolicamente naquelas forças..."

(Friedrich Nietzsche)

 

 

I - Arquitetura do Cosmo

 

"A música ocidental nasce miticamente com a lira de Apolo e com o patrocínio das musas, das quais deriva seu nome, e Platão no Banquete a dá como invenção do Olimpo, embora devamos vinculá-la também com os martelos de distintos pesos que Pitágoras ouviu soar em uma ferraria, adaptando posteriormente essa escala a uma corda cujo som está dado pelas proporções de seu comprimento, que forma o monocórdio ­imagem do monocórdio universal­ constituído em um modelo permanente da Teoria musical posterior, capaz de sintonizar (sinfonizar) com a harmonia das esferas e sua música celeste, já que os distintos sons e suas proporções são expressões da manifestação cósmica, a qual refletem. Estas relações e especulações entre a música, a cosmologia e a metafísica são próprias de todo o pensamento ocidental e continuaram sem interrupção até nossos dias. O próprio Pitágoras, seguido de Platão, estabelece proporções numéricas e geométricas e as vinculações que as unem à música como reveladora da estrutura e perfeição cósmica e intermediária entre seus níveis. Mas não é só isso, estas proporções estabelecem também as normas da arquitetura e das artes visuais, o plano da cidade, o metro poético, e se refletem em todos os aspectos culturais e institucionais, como aconteceu não apenas com os povos de ascendência greco-romana ou hebraico-cristã, (na idade Média, por exemplo), mas também com outros muitos ­sejam arcaicos ou civilizados­, pois estes módulos formam a estrutura de base da cultura das sociedades que não estão em decadência, as que tomam os ritmos e as proporções como leis que o universo todo reflete a sua maneira, que fixam e limitam e, portanto, fazem possível permanentemente a execução do concerto cósmico. Este tipo de pensamento é também o da escola de Alexandria (século I a III da era cristã, Euclides, por exemplo), o de Santo Agostinho (em De Música), o de Boécio, o da escola do Chartres (século XII), o do Renascimento (vgr. Marsílio Ficino) e de uma boa quantidade de filósofos Herméticos (C. Agrippa, R. Fludd, A. Kircher, F. Zorzi, também Kepler, Newton, etc.). Entretanto, longe de encontrar uniformidade de critérios nestes autores, pode se observar dentro de uma unidade de base, distintas propostas mais ou menos válidas, conforme nos aproximamos do ponto de vista, ou melhor, à audição do autor, ligada com os elementos que relaciona, estabelecendo proporções entre eles. Isto, que também é válido para as diversas astronomias das diferentes culturas, igualmente fundamentadas, às vezes, em certos planetas e constelações que outros omitem, é também vigente para as estruturas de seus panteões e línguas e é algo normal e adequado às leis universais ­portanto saudável­ e a razão pela qual uma Tradição Primitiva se expressa em diferentes culturas, adquirindo distintas forma tradicionais como vergônteas de um arquétipo comum, tal como a unidade se acha presente na multiplicidade, em que pese a que cada número da série seja diferente e expresse conceitos dessemelhantes aos outros. Neste sentido a audição dos distintos povos constitui sua música, que é o resultado das relações e proporções entre os diversos sons, signos ou sinais, que conformam seu enquadramento cultural. Uma circunferência é formada por multidão de retas indefinidas, reflexos de inumeráveis raios que, como o som, nascem, morrem e renascem perpetuamente. No caso da música, arquitetura do logos, o ritmo sublinha a alteridade de um contínuo evidente e as proporções numéricas estruturam o espaço sonoro com a revelação de algumas pautas que se organizam e se correspondem entre si. A manifestação deste fato assombroso é a arte musical e a audição, o meio de que se vale o tempo para perpetuar o eterno presente. No código do que constantemente se reitera, a idéia musical é uma possibilidade sempre nova e tão fresca e recente como qualquer geração. A voz é o instrumento por excelência e o frasear e a palavra, os gestos audíveis que articulam qualquer linguagem. Na origem, foi o verbo que é simultâneo com a perenidade da criação; interpretar a harmonia cósmica não é outra coisa que ser. Desde esta perspectiva, o som constitui qualquer ordem, começando pela consciência do espaço, do tempo e da própria identidade, e seguindo com a totalidade da manifestação universal que aparece então como o desenvolvimento de uma complexa organização musical, que os números e as figuras geométricas revelam. Sendo isto desta forma, qualquer ser, fenômeno ou coisa, está dentro de uma escala, salvo o não determinado, cuja ausência tem que se corresponder necessariamente com o silêncio, ou com o Não Ser. Entretanto deve se observar que estes conceitos transbordam e superam o sensível, embora, de fato, qualquer audição seja o limite em que se enquadra o ilimitado. Esta é a graça da Arte Musical, capaz por sua própria natureza e seus valores intrínsecos de manifestar ontem, hoje e amanhã, o não manifestado, a perpétua possibilidade: aquilo que, sem ser jamais, igualmente conforma o som paradigmático da esperança. Não há som sem auditor, na criatura está a potestade de que seja ou não seja a obra; sabe-se que uma greve de escutas anuncia o fim do tempo. Não se pode emitir sem escutar: os mudos são assim porque não ouvem, embora percebam perfeitamente a alteridade e a ressonância. Em casos assim, o canto e a poesia sucumbem e com eles desaparece a possibilidade de reproduzir uma e outra vez o discurso criacionístico que surge da audição interior do si mesmo. Acaba-se então o tempo e cessa o movimento ­e a transmissão­ pois o espaço em que este se produz é levado ao extremo de sua contração e, de repente, é abolido de uma vez para sempre, como acontece com qualquer falecimento que, é sabido, caracteriza-se pela impossibilidade de se seguir projetando, mercê à ausência de toda emissão. Finaliza-se, desta forma, o desenvolvimento musical que deu lugar à existência de um homem ­ou um mundo­ que se reintegra ao silêncio primitivo, que deixará de ser tal assim que uma imagem sonora irrompa na escura e vazia noite do não formal, fazendo girar uma vez mais os ciclos que se reiteram perpetuamente e estruturam o cosmo além de toda pretensão individual, que é apenas, no melhor dos casos, uma correspondência ativa com um estado do ser universal. Portanto, a música é a manifestação de um gesto originário que se transforma em canto e dança; é a irrupção do tempo em um espaço Arquetípico e a necessária incorporação do movimento que dinamiza a totalidade do âmbito vital; e assim surge o calor da voz humana e o homem se incorpora numa nova cerimônia: grita, e canta e dança e seu corpo se projeta no devir, impulsionado pelo ritmo, chave da vida universal. Igualmente a música atua de maneira secreta sobre os seres e as coisas, como a poiesis, e oferece a quem se interessa nela uma via de realização espiritual, ou ao menos uma base para isso, tendo presente que sempre constituiu um dos elementos transmissores sensíveis mais importantes em ritos e cerimônias; mas não é só isso: a percepção do discurso musical é antes inaudível que sonora e, portanto, a verdadeira potência mágica da música radica em sua percepção original, onde o ser humano que escuta é um instrumento preciso e afinado na sinfonia do conjunto, capaz também de criar e transmitir o inaudível em expressões harmônicas ­embora elas às vezes desafinem na uniformidade do fraseio corrente­ pelo fato evidente de que aquele que "escuta", regenera a permanente atualidade da arte musical, sendo ao mesmo tempo o sujeito e o objeto desta; o som, como a matéria, como o cosmo, é um só. Desta forma, o som e a audição configuram um fato idêntico, um processo que os conjuga sem fissão, até o momento que intervém a dualidade da mente e os divide em um e outro, sujeito e objeto. A verdadeira audição se refere à identidade com a vibração sonora do plano sutil, incriado, mas tão real que constitui a origem do audível, que só é um símbolo ou imagem da autêntica percepção intelectual, equiparável à audição metafísica, originada por essa entidade, ou deusa, chamada Inteligência, capaz de selecionar valores por nosso intermédio e se apresentar ante a Sophia universal. Saber é escutar a música cósmica, obter uma resposta que se ordena igualmente em cada um a fim de acessar à audição metafísica. Os mediadores do conhecimento são os símbolos visíveis e audíveis que, já diferenciados, começaram a se fixar na alma, a se imprimir em sua virgindade, ao mesmo tempo em que começam a se relacionar entre si, produzindo assim novos espaços, gerando frases e iluminando áreas cada vez mais definidas, precisas e claras, que se complementam e se articulam em um discurso: em sua cadência musical. Este processo é análogo em qualquer desenvolvimento ou gestação, sendo que a Manifestação Universal é o Arquétipo inevitável de qualquer audição, ou seja, do diálogo estabelecido pela primeira vez entre o "eu" e o "outro", que em forma binária intercalam suas pautas, tal qual o faz a relação ativo-passivo, passivo-ativo. Não há som sem audição; nesse sentido o receptor seleciona e dirige a audição (como a visão), transformando-a, e reverte assim um processo onde sua passividade "virginal" se converte, por meio da fecundação e do nascimento, em uma nova possibilidade sonora, geradora por sua vez de outra série de concatenações, fixadas pelos períodos, ou intervalos, entre os tons, cores, ou particularidades de uma escala que volta sobre si mesma, reiterando-se. De fato, esta imagem de mundos dentro de mundos e portanto da realidade e sacralidade de espaços invisíveis que formam o cosmo, e o próprio homem, seria vertiginosa em sua plurivalência e multidimensionalidade se não estivesse perfeitamente ajustada entre si, quer dizer: disposta em ordem, graças à harmonia musical que conjuga a desordem das partes. A compreensão deste simbolismo sonoro, ou seja, a possibilidade metafísica que a música encarna, adiciona uma dimensão a mais ao audível; também uma maneira distinta de perceber o movimento como elemento constitutivo do espaço musical. Não há necessidade sem possibilidade, contrariamente, não há possibilidade sem necessidade. O possível é necessário e o necessário possível. Talvez se tratem de dois aspectos de um mesmo termo, ou melhor, realidade, encarada desde dois pontos de vistas; distintos e opostos, tal qual o livre-arbítrio e o óbvio condicionamento do destino. Esta verdade se manifesta a nível ontológico na própria medula do ser que, para se identificar, para se conhecer, tem que se fracionar entre o eu e o outro, raiz de todo dualismo. No fenômeno sonoro, esta dualidade se expande primeiro como som (transmitido pelo vento), e segundo, recolhe-se pelo receptor da comunicação. A mesma dualidade se apresenta também, em outro nível, entre o som e o eco; este último, como espelho, ou superfície das águas, ou prisma, onde a luz se refrata ou reflete multiplicando-se em módulos sensíveis, auditivos ou lumínicos, imagens que, tal como as do tempo e do espaço, nascem, morrem e renascem perpetuamente, tal dissemos no começo, resolvendo sempre em forma de tríades (neste caso verbo, audição, auditor, ou analogamente: emissão - meio sonoro - recepção). Para terminar, só queremos sublinhar dois temas fundamentais que tocamos aqui, e sobre os quais voltaremos certamente no futuro. O primeiro trata a respeito da audição como constituindo a expressão do tempo e a percepção do movimento no espaço; o segundo, o da relação da música com o elemento ar, transmissor do som, e tudo o que este último significa para uma sociedade tradicional, ou uma cultura arcaica. A deusa te aguarda,

a essência de seu nome sonoro é Sophia. Encanta-a com tua arte

e esposa-a para sempre."

(Federico González)

 

 

"A dança é um modo de existir."

(Klauss Vianna)

 

II - Dança e Filosofia?

 

"Parafraseando a célebre questão proposta pelo filósofo Espinosa (1632-1677) - o que pode o corpo? - é possível estabelecer conexões entre a dança e a filosofia. Mais do que proporcionar a aplicação das categorias e universais da filosofia à dança, a aproximação entre os dois campos de conhecimento propicia o exercício crítico e a melhor compreensão dos vínculos entre os estudos teóricos e as práticas da dança na contemporaneidade. Não tanto uma filosofia aplicada à dança, mas a emergência de metodologias possíveis de pensamento próprio a esta manifestação artística. Ou seja, partir dos modos próprios das coisas para tratá-las, como o próprio Espinosa ressaltou. Partir portanto, do ato de dançar. Em sua tentativa de estancar o movimento para apreender o mundo, a filosofia ocidental acabou por decrescer o corpo, transformando-o em instrumento eficiente da alma ou mente. Talvez esteja aí o interesse tardio dos filósofos pela dança e de uma filosofia da dança propriamente dita, dada a associação desta com um fazer do corpo, e não um pensar. “Não sabemos o que pode um corpo”, pois quando falamos de pensamento, consciência, espírito e alma, sempre nos referimos ao poder destes sobre o corpo, salientou Espinosa, no Tratado das Paixões. A alma deve subjugar o corpo e, quanto ao poder do corpo, ou bem é um poder de execução, ou é um poder de distrair a alma e de desviá-la de seus deveres. A crítica a esta visão do corpo e a efetivação do “poder” da dança tem na filosofia momentos pontuais, quando Friedrich Nietzsche (1844-1900) nega os valores ocidentais oriundos da tradição platônica e cristã e Paul Valéry (1871-1945) encontra na dança uma forma exemplar de abordar o problema corpo e espírito. A dança moderna contribuiu para trazer à tona a urgência da presença do corpo na arte, na filosofia e na vida, corpo este que tem “razões próprias” que a própria razão desconhece, como sentenciou Nietzsche. Não à toa, Isadora Duncan (1878-1927), a grande musa da modernidade na dança, reveste-se das idéias destes filósofos. A movimentação proposta por Duncan carregava uma parcela de divindade e um apelo à tragédia grega presente no discurso de Nietzsche, o representante da “filosofia da vida” do século XIX. Outro mestre de pensamento de Duncan, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), indica que a verdadeira essência que fundamenta as coisas externas é possível de ser encontrada a partir de cada um. Nestes impulsos, “e não nas razões que o intelecto arruma para explicar tais aspirações, a realidade do ser vivente existe”. Ancorada em tais visões de mundo, não caberia na dança pensada por Duncan um enquadramento em códigos pré-estabelecidos. Valéry escreve em “A Alma e a Dança” que a razão parece ser a faculdade que a nossa alma tem de nada entender de nosso corpo. A contemplação da bailarina, por meio de personagens filósofos, faria Valéry conceber relações com as coisas numa clareza não obtida na presença solitária da alma. Para Valéry, os movimentos “inúteis” e sem finalidade específica da dança são, contudo, os que melhor nos falam da natureza humana. Na esteira de Valéry, o filósofo José Gil articula o movimento dançado ao pensamento. A dança, sendo pensamento do corpo, não se limitaria em pensar certos movimentos, mas constitui uma maneira própria de os pensar, transformando em movimento de pensamento o que o pensamento comum do movimento comum não pode pensar. Outras questões se desdobram a partir da frase de Espinosa: O que pode a dança enquanto obra de arte? O que pode a dança no poder? O que pode pensar a dança? De forma mais aguda, a dança contemporânea vem compartilhando com a filosofia e a ciência a tarefa de propor reflexões acerca do movimento e das relações entre corpo e mente, corpo e mundo. Subvertendo cada vez mais as categorias clássicas de movimento, tempo, espaço, coreografia ou passo codificado, a dança contemporânea reivindica outros modos de entendimentos estéticos, éticos e políticos. Frente a novas investigações e produtos cênicos, o deslocamento da discussão sobre as questões mais ontológicas, tais como o que é dança e o que pode ela, se fazem urgente. Esta forma inusitada de pensar, chamada pelos gregos de Filosofia, em sua etmologia, significa amizade ou amor pelo saber. Carrega desde sempre uma ambivalência: por um lado é entendida como um conjunto de conhecimentos sistemáticos e racionais sobre o mundo e, por outro, como uma sabedoria prática entendida como disposição humana para a vida virtuosa e feliz. A dança oferece-se como exercício constante de não separação entre teoria e prática, pensamento e movimento, mantendo a ambivalência do ato de filosofar."

(Sandra Meyer)

A p p e n d i x -

 

"Das Medusas, 

O.M. e os coreometafisismos ou...

 

"Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento, do veneno de suas forças excedidas, da presença ardente de olhares carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo, o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande Medusa, que, por espasmos ondulatórios de sua torrente de saias engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e subitamente, rejeitando todos seus folhos vibráteis, seus vestidos de lábios recortados, vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta. Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga em seu espaço, e sobe como balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e o ar mortal."

(Paul Valéry)

 

...Nietzsche e o Corpo - O que fizeram

do corpo na tradição metafísica?"

 

“Eu sou corpo, por inteiro corpo e nada mais” (Dos Desprezadores do corpo)

Alguém aqui ousaria a dizer que me ouve com o corpo?  Que me entende ou tenta faze-lo por meio da extensão de sua epiderme como uma simples sensação? Ora, isso não parece demasiadamente jocoso? Pois é exatamente daquilo que se tornou zombaria aos homens da razão, e aos espirituais também, que vai se consagrar uma das notas mais elevadas da partitura filosófica de Nietzsche, no que a filosofia não privilegiou, está, agora, no sentido de ser para o filósofo. O corpo está ai para isso. Com efeito, alguns filósofos de sensibilidade aguçada, a saber – Bachelard,

Merleau-Ponty [1] pensaram o corpo como uma orquestra,

um organismo que tem sua melodia e sua textura musical,

“o organismo é uma melodia que se canta.” Assim diz Merleau-Ponty.

 

Não obstante, Nietzsche é quem 

propõe um desconcerto ou quem 

sabe um concerto (com c), exercitado 

com tamanha maestria para a 

filosofia, quando eleva o corpo a 

condição de grande razão,  Por isso, 

que já não nos soa mais, com seu eco 

límpido, os acordes da razão soberana 

em seus tribunais. Talvez não 

sejamos “espíritos livres” para 

sintonizar com brevidade as vibrações 

desta grande razão tocada por uma 

melodia de imagens poéticas[2]. Mas 

por que associar o corpo ao canto, a 

dança e a poesia?  A dança, o canto, a 

poesia nos transporta para um estado 

pueril de imaginação, e assim traz o 

corpo á superfície à leveza, às 

sensações. Nietzsche é quem diz: eu só 

acreditaria no Deus que soubesse dançar; 

quando vi o meu demônio achei-o, 

sério, metódico, profundo, solene, era 

o espírito de gravidade – a causa pela 

qual todas as coisas caem. (ZA do ler 

escrever, 1844) Portanto, o filósofo 

nos convoca assumi o corpo e suas 

vibrações para que diante da 

gravidade possamos fazer o corpo 

dançar. O que fizeram do corpo? 

Enxertaram-no de uma moral 

decadente e entorpeceram-no, 

tornando seus órgãos indolentes, 

“impotentes”, amputaram-no de suas 

possibilidades criadoras, em 

detrimento de uma educação que 

privilegia o espírito, tendo como 

fins o esmero da cultura. 

 O corpo tem sua linguagem própria, 

que fogem as regras dos argumentos, 

da evidencia, das provas dos 

métodos, cujos procedimentos são 

puramente racionais. Mas, Nietzsche 

sabia que argumentos e razões não 

convencem, por isso ele obedece ao 

corpo, aquilo que o corpo dizia ele 

escrevia, muitas vezes sem 

explicações e fundamentos, mas era a 

razão do corpo. Meu caro amigo, diz 

Nietzsche: “há mais razão no teu 

corpo do que na tua melhor 

sabedoria”.  Só sei que muitas vezes 

nos damos maus quando não 

obedecemos aos argumentos do 

corpo/razão. 

 

Para Nietzsche a filosofia não foi até agora uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o corpo. Diz Nietzsche: “Por trás dos mais altos juízos de valor, pelos quais até agora a história do pensamento foi guiada, estão escondidos mal-entendidos sobre a índole corporal, seja de indivíduos, seja de classe, ou de raças inteiras.” (GC, prefácio 1886, § 2)  Portanto, é de dentro desse mal-entendido sobre o corpo que pretendemos fazer a questão, O que fizeram do corpo ao longo da tradição filosófica? E quem sepultou o corpo na filosofia?  Ao que parece, Nietzsche quer deslocar uma tradição filosófica centrada num eixo racional metafísico e propor uma nova compreensão de sentido para o corpo humano. Essa má compreensão do corpo foi haurida no discurso metafísico travestido de religião, moral e ciência que, por sua vez, constituem-se os detratores do corpo. A ciência moderna teve que instrumentalizar o corpo, e para manter-se enquanto poder dominante, foi necessário transformar o corpo no modo de produção; eis a razão pela qual Marx define o homem quando pensou o corpo na sociedade moderna como, valor de troca,

mercadoria, ou forças produtivas, assim ele determinava

a condição humana na sua existência.

O cristianismo como portador por excelência do platonismo deu-lhe a alma o primado sobre o corpo. No Fedon, Platão, discorrendo sobre a alma nos diz: “o objeto próprio do exercício dos filósofos é destacar a alma e separá-la do corpo”. Na metafísica platônica há a deflagração do corpo, retiraram essa capacidade de corpo-pensante, e apresentaram o corpo como um estorvo para o exercício do pensamento. Para Platão o corpo nos enche de tal forma de amores, paixões, desejos, temores, de imaginação, que todo tipo de futilidades, guerras, revoluções, batalhas têm sempre como causa o corpo e seus desejos. Assim prossegue Platão no Fedon: “Ora nós somos obrigados a adquirir riquezas por causa de nosso corpo; esse por ser escravo a bens materiais. E por sua culpa ainda não temos tempo para filosofar”.[3]

  Nietzsche trava um embate com a metafísica platônica, na sua concepção não como filosofar sem o corpo, ora se pensar consiste nessa “multiplicidade com um único sentido”, corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-psique, não haverá por que denegrir o corpo em detrimento da razão, afim de que ele seja suscitado do “além e para o além”? Isso não é logrador situar o corpo como uma esfera distante do pensamento? Por que recusar as sensações e vibrações de teu corpo, os compassos de sua voz interior – que é a voz da beleza? Salvo, a lucidez de alguns, o corpo é inegável, dói, fere-se, agita-se, clama, silencia-se, vem e vai, modifica-se e transforma-se? Não há como negar o corpo, se o corpo é o ser próprio, tudo que sei de minha existência, “Eu sou por inteiro corpo e nada mais.” Essa é a voz  consciente do Zaratustra que entre as cinzas da morte de Deus ressuscita o corpo; Contudo, tudo que lhe resta é o corpo como instrumento da vontade.

 

 Parece que na cultura ocidental o 

corpo perdera suas forças, sua 

potência. Nietzsche constata isso na 

genealogia da moral, cuja degeneração 

do corpo inicia quando o homem se 

viu sob pressão da mais radical das 

mudanças que se encerra no âmbito 

dasociedade e da Paz. Diz Nietzsche: 

“Esses semi-animais adaptados de 

modo feliz à natureza selvagem, à 

vida errante, à guerra, à aventura – 

subitamente seus instintos ficaram 

sem valor e “suspensos” e seus 

impulsos reguladores reduziram os 

infelizes, a pensar, inferir, calcular, 

combinar causas e efeitos, reduzidos 

ao seu órgão mais frágil e falível a 

saber –a consciência.” (GM II § 16 

1887) - Na verdade, a consciência foi 

outro mecanismo criado para sepultar 

as forças e a potencia do corpo. Ela 

funciona como filtro naquilo que 

devemos ou não experimentar no 

corpo.  Segundo Nietzsche o 

processo chamado consciência se dá 

desta forma: “todos os instintos que 

não se descarregam para fora se 

voltam para dentro – isto é o que eu 

chamo de interiorização do homem, é 

assim o que no homem cresce o que 

depois se denomina sua alma. (GM II 

§ 16 1887) “Entrai-vos mais 

profundamente na sua consciência e 

examinai-a, lá encontrarás a sua alma 

contrita e prisioneira deste corpo!” 

assim nos convoca os espirituais, a 

fugir das chamas ardentes do corpo. 

Com efeito, alma para Nietzsche é 

um instinto admoestado sustado á 

ação ou movimento. Nietzsche acusa 

os metafísicos por esta colossal 

violência ao corpo feita no processo 

de contenção dos instintos, chamado 

interiorização de si – 

em busca de alma. 

A tradição cristã ensinou ao homem 

envergonhar-se de seu corpo, Paulo 

em suas cartas conclama ao povo de 

Coríntios a fugir da imoralidade 

contra o corpo. Diz Paulo “Vocês 

não sabem que o seu corpo é templo 

do Espírito Santo que está em vocês e 

lhe foi dado por Deus? (Paulo, 

Coríntios 18-20).  O apóstolo ensina 

o preço a se pagar pela vida moral. 

Deus é confundido com um ente 

moral e a condição para viver a vida 

em Deus é a privação do corpo,  que 

são embriagados de desejos e das 

paixões. Com efeito, esse ódio ao 

corpo pensado como instrumento 

perversor da alma, surge bem antes 

de Paulo Apóstolo, ainda quando 

Adão não consegue conter-se do 

desejo e da vontade de tocar no 

proibido, tal atitude descarregou toda 

maldição sobre o corpo, pois a 

corrupção entra na humanidade, e 

Adão perde o paraíso eterno. Isto é a 

moral prevalece sobre a vontade e os 

instintos humanos. Foi isso que a 

civilização precisou fazer até agora 

pra se manter. Ao que parece, a 

tradição nos ensinou a não viver com 

intensidade a nossa natureza humana 

enquanto corpo; Quanto mais 

compressão sobre o corpo, mais 

garantia se tem de felicidade plena 

numa vida extraterrena. Não 

obstante, a moral cristã delimita o 

corpo como ente moral, como um 

sistema de juízo de Deus, que se 

opera pela resignação, castidade e 

amputação dos desejos e da vontade. 

Desse modo, o corpo perde a força e 

a vontade, nisso também é a vida 

quem perde a sua gravidade; Para 

tanto, indaga o filósofo: como 

caminhar sobre a terra? Se, se põe o 

centro da gravidade da vida, não na 

vida, mas no “além” - no nada – 

tirou-se da vida toda a gravidade (AC 

§ 43). É Nietzsche quem diz, é a fé 

cristã quem não partilha a dúvida, 

tendo a certeza de que o paraíso é 

extraterreno e que o corpo é 

imprestável por ser corruptível – por 

ter desejos confessos e não confessos, 

por vezes incontroláveis.  

Transportaram o sentido da vida para 

um “além” que buscaram um outro 

“mundo verdade” voltaram-se para a 

alma, sepultaram o corpo. E da 

sepultura forjada brotaram a renuncia 

pela vida, ou melhor, aquele tipo 

de moral que assume como 

verdade tudo que é contra 

a natureza do corpo. 

 

 “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas “espírito” pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão.”  (ZA dos desprezadores do corpo). Essa grande razão é uma sede de uma vontade, por sua vez uma configuração de um jogo de forças constitutivas. Uma pulsação que ativa e desativa em constante compasso; que se agitam no ir e vir incansável, afetos, sentimentos, instintos – emaranhado de relações entre si de acordo com um fluxo e refluxo de suas ações. Nietzsche concebe o corpo como uma unidade organizada de relações complexas de aliança e oposição entre células, tecidos, órgãos e sistemas. Elege o corpo como fio condutor e ponto de partida para uma nova concepção de subjetividade, nesse sentido, está à multiplicidade com um só sentido. Mas é preciso entender a vida como jogo; o jogo se faz e refaz em guerra e paz, no que ainda não é, e no que já é, uma permanente luta. Onde as forças não se anulam, mas se  superam. A Luta quem garante a permanência da mudança. Tudo é um eterno vir-a-ser constante. Nietzsche constata que só há

uma única maneira de ser da vida – a luta.

 

Nesse processo, o homem está 

convidado a reconciliar com o ser 

próprio, esse configura um Eu, nas 

palavras do Zaratustra “o Ser próprio 

reina e é igualmente o soberano do 

eu” (ZA I Dos desprezadores do 

corpo)  não obstante, esse “Eu” no 

sentido lógico e crítico, sujeito 

pensante, se transfigura na pluralidade 

ou seja, na multiplicidade dos “Eus” 

por ser diverso, intenso, pulsional, 

dinâmico isto é com seu corpo. “Atrás 

de teus pensamentos e sentimentos, 

meu irmão, acha-se um soberano 

poderoso, um sábio desconhecido – e 

chama-se o ser próprio, mora no teu 

corpo, é o teu corpo. (ZA: Dos 

Desprezadores do Corpo). Ser próprio foi 

o que o Zaratustra não ousou a 

nomear. Reconciliar-se no sentido de 

buscar a razão no teu corpo, ou talvez 

na sua loucura, nela encontrei tanto 

liberdade como segurança em; 

a liberdade da solidão, e a segurança de 

não ser compreendido, pois aqueles 

que nos compreende escraviza 

alguma coisa em nós. 

(Nilo César) 

 

[1] Merleau-Ponty discute essencialmente a existência humana, a partir de um ponto de vista fenomenológico-existencial, da relação do homem com seu corpo, como condição de sua própria existência. Trata de apresentar o corpo como sujeito do movimento e sujeito da percepção. O corpo que se move e isso quer dizer o corpo que percebe, como tocante-tocado, lugar de uma espécie de reflexão. Corpo é uma nova consciência que pode ser apresentado através da carne. Este corpo tem uma estrutura estesiológica, desejo libido, símbolo, projeção e, portanto é uma relação de ser e não de conhecimento. Trata-se de aprender a humanidade como uma outra maneira de ser corpo, em descrever o corpo como percipiente.

[2] ALVES, Rubem. Livro sem fim p.19 (2002)

[3] A tradução do Fedon é do livro de Introdução à Filosofia de Batista, Mondim (1980) P. 250-251 (Alíneas 9 à 10) Outra tradução utilizada também neste trabalho é da coleção os pensadores da abril cultural. (1996)

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