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Por que a arte existe? Quem precisa dela?  Na verdade, alguém precisa dela?  Estas são questões colocadas não só pelo poeta, mas também por qualquer pessoa que aprecie arte - ou, naquela expressão corrente, por demais sintomática da relação entre a arte e seu público do século XX - o "consumidor". Muitos fazem essa pergunta a si próprios, e qualquer pessoa ligada à arte costuma dar a sua resposta pessoal.  Alexander Block disse que "do caos, o poeta cria harmonia"...  Puchkin acreditava que o poeta tem o dom da profecia...  Todo artista é regido por suas próprias leis, mas estas não são, em absoluto, obrigatórias para as demais pessoas. De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte - a menos, por certo, que ela seja dirigida ao "consumidor", como se fosse uma mercadoria - é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.(...) A arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal: ânsia que leva as pessoas à arte. A arte contemporânea tomou um caminho errado ao renunciar à busca do significado da existência em favor de uma afirmação do valor autônomo do indivíduo.  O que pretende ser arte começa a parecer uma ocupação excêntrica de pessoas suspeitas que afirmam o valor intrínseco de qualquer ato personalizado.  Na criação artística, porém, a personalidade não impõe seus valores, pois está a serviço de uma outra idéia geral e de caráter superior.  O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido.  O homem moderno, porém, não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício.  Aos poucos, vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana... Quando falo do anseio pelo belo, ideal como objetivo fundamental da arte, que nasce de um ânsia por esse ideal, não estou absolutamente sugerindo que a arte deva esquivar-se da "sujeira" do mundo.  Pelo contrário!  A imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior.  Para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito.  Substituição... não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem.O horrível e o belo estão sempre contidos um no outro.  Em todo o seu absurdo, este prodigioso paradoxo alimenta a própria vida, e, na arte, cria aquela unidade ao mesmo tempo harmônica e dramática.  A imagem materializa uma unidade em que elementos múltiplos e diversos são contíguos e se interpenetram.  Pode-se falar da idéia contida na imagem, e descrever a sua essência por meio de palavras.  Tal descrição, porém, nunca será adequada.  Uma imagem pode ser criada e fazer-se sentir.  Pode ser aceita ou recusada.  Nada disso, no entanto, pode ser compreendido através de um processo exclusivamente cerebral.  A idéia do infinito não pode ser expressada por palavras ou mesmo descrita, mas pode ser apreendida através da arte, que torna o infinito tangível.  Só se pode alcançar o absoluto através da fé e do ato criador. A única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria vocação, a presteza em servir e a recusa às concessões.  A criação artística exige do artista que ele "pereça por inteiro", no sentido pleno e trágico destas palavras.  E assim, se a arte carrega em si um hieroglifo da verdade absoluta, este será sempre uma imagem do mundo, concretizada na obra de uma vez por todas.  E se a cognição científica, fria e positivista do mundo assemelha-se à ascensão por uma escada infinita, o seu equivalente artístico sugere, por outro lado, um infinito sistema de esferas, cada uma delas perfeita e auto-suficiente.  Esses dois fatos podem se complementar ou contradizer reciprocamente; em nenhuma circunstância, porém, podem anular um ao outro.  Pelo contrário, eles se enriquecem mutuamente e se juntam para formar uma esfera que a tudo abarca e que se lança para o infinito.  Essas revelações poéticas, todas elas válidas e eternas, testemunham o fato de que o homem é capaz de reconhecer a imagem e a semelhança de quem o criou, e de exprimir este reconhecimento. Além disso, a grande função da arte é a comunicação, uma vez que o entendimento mútuo é uma força a unir as pessoas, e o espírito de comunhão é um dos mais importantes aspectos da criação artística.  Ao contrário da produção científica, as obras de arte não perseguem nenhuma finalidade prática.  A arte é uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si próprios e assimilar a experiëncia dos outros.  Mais uma vez, isso nada tem a ver com vantagens práticas, mas com a concretização da idéia do amor, cujo significado encontra-se no sacrifício: a perfeita antítese do pragmatismo.  Simplesmente não posso acreditar que um artista seja capaz de trabalhar apenas para dar expressão a suas próprias idéias ou sentimentos, os quais não têm sentido a menos que encontrem uma resposta.  Em nome da criação de um elo espiritual com outros, a auto-expressão só pode ser um processo torturante, que não resulta em nenhuma vantagem prática: trata-se, em última instância, de um ato de sacrifício.  Mas valerá a pena o esforço, apenas para se ouvir o próprio eco? (...) O artista nos revela seu universo e força-nos a acreditar nele ou a rejeitá-lo como irrelevante e incapaz de nos convencer.  Ao criar uma imagem ele subordina seu próprio pensamento, que se torna insignificante diante daquela imagem do mundo emocionalmente percebida, que lhe surgiu como uma revelação. Pois, afinal, o pensamento é efêmero, ao passo que a imagem é absoluta.  Pode-se então afirmar que, no caso do homem espiritualmente receptivo, existe uma analogia entre o impacto produzido pela obra de arte e o impacto de uma experiência puramente religiosa.  A arte atua sobretudo na alma, moldando sua estrutura espiritual. O poeta tem a imaginação e a psicologia de uma criança, pois as suas impressões do mundo são imediatas, por mais profundas que sejam as suas idéias sobre o mundo.  É claro que, ao falarmos de uma criança, também podemos dizer que ela é um filósofo; isso, porém, só pode ser afirmado num sentido bastante relativo.  E a arte se esvai diante de conceitos filosóficos.  O poeta não usa "descrições" do mundo; ele próprio participa da sua criação. Uma pessoa só será sensível e receptiva à arte quando tiver a vontade e a capacidade de confiar e de acreditar num artista.  No entanto, como é difícil, às vezes, superar o limiar de incompreensão que nos separa da imagem emocional e poética.  Exatamente da emsma forma, no caso da verdadeira fé em Deus, ou até mesmo para sentir a necessidade de ter essa fé, uma pessoa precisa ter certa predisposição da alma, uma potencialidade espiritual específica. A esse respeito, convém lembrar o diálogo entre Stavrogin e Shatov em Os Possessos , de Dostoiévski: - Gostaria de saber uma coisa: acreditais ou não em Deus? - Nicolai Vsevolodovich (Stavrogin) olhou duramente para ele (Shatov). - Acredito na Rússia e na ortodoxia russa... acredito no corpo de Cristo...  Acredito que o Segundo Advento dar-se-á na Rússia...  Acredito... - Shatov pôs-se a balbuciar desesperadamente. - E em Deus?  Em Deus? - Eu... eu acreditarei em Deus.O que se pode acrescentar a isso?  Trata-se de um brilhante insight do estado de perplexidade da alma, do seu declínio e inadequação, que se estão tornando a síndrome cada vez mais crônica do homem moderno, a quem poderíamos definir como espiritualmente impotente. O belo oculta-se aos olhos daqueles que não buscam a verdade, para os quais ela é contra-indicada.  Porém, a profunda falta de espiritualidade das pessoas que vêem a arte e a condenam, e o fato de as mesmas não estarem dispostas nem prontas a refletir, num sentido mais elevado, sobre o significao e o objetivo da sua existência, vêm muitas vezes mascarados pela exclamação vulgarmente simplista: "Não gosto disso!", "É tedioso!".  Não é um argumento que se possa discutir, mas parece a reação de um cego a quem se descreve um arco-íris.  O homem contemporâneo simplesmente permanece surdo ao sofrimento do artista que tenta compartilhar com os outros a verdade por ele alcançada. Mas o que é a verdade? Creio que um dos mais desoladores aspectos da nossa época é a total destruição na consciência das pessoas de tudo que estã ligado a uma percepção consciente do belo.  A moderna cultura de massas, voltada para o "consumidor", a civilização da prótese, está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual.  O artista, porém, não pode ficar surdo ao chamado da beleza; só ela pode definir e organizar sua vontade criadora, permitindo-lhe, então, transmitir aos outros a sua fé.  Um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego. É errado dizer que o artista "procura" o seu tema.  Este, na verdade, amadurece dentro dele como um fruto, e começa a exigir uma forma de expressão.  É como um parto...  O poeta não tem nada de que se orgulhar: ele não é o senhor da situação, mas um servidor.  A obra criativa é a sua única forma possível de existência, e cada uma das suas obras é como um gesto que ele não tem o poder de anular.  Para ter consciência de que uma seqüência de tais gestos é legítima e coerente, e faz parte da natureza mesma das coisas, ele deve ter fé na idéia, pois somente a fé dá coesão a um sistema de imagens (leia-se: sistema de vida). E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade? O significado da verdade religiosa é a esperança.  A filosofia busca a verdade, definindo o significado da atividade humana, os limites da razão humana e o significado da existência, até mesmo quando o filósofo chega à conclusão de que ela é absurda, e de que é vão todo o esforço humano. A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor idéias, difundir concepções ou servir de exemplo.  O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar a alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem. Ao se emocionar com uma obra-prima, uma pessoa começa a ouvir em si própria aquele mesmo chamado da verdade que levou o artista a criá-la.  Quando se estabelece uma ligação entre a obra e o seu espectador, este vivencia uma comoção espiritual sublime e purificadora.  Dentro dessa aura que liga as obras-primas e o público, os melhores aspectos das nossas almas dão-se a conhecer, e ansiamos por sua liberação.  Nesses momentos, reconhecemos e descobrimos a nós mesmos, chegando às profundidades insondáveis do nosso próprio potencial e às últimos instâncias de nossas emoções. (Andrei Tarkovski) A força criadora escapa a toda denominação; segue sendo, em última instância, um mistério indizível. Mas não um mistério inacessível, incapaz de nos comover até as entranhas. Nós mesmos estamos impregnados desta força até o último átomo da medula. Não podemos dizer o que é, mas podemos nos aproximar de sua fonte em uma medida variável. Necessitamos de algum modo revelá-la, manifestá-la em suas funções tal como se patentiza em nós. Provavelmente também ela é matéria, uma forma de matéria não perceptível pelos mesmos sentidos que percebem os outros tipos de matéria. Mas é necessário que se permita seu reconhecimento na matéria conhecida. Incorporada a ela, deve funcionar. Unida à matéria, deve tomar corpo, converter-se em forma, em realidade. A gênese como movimento formal constitui o essencial da obra. Ao princípio, o motivo, inserção de energia, esperma. Obras como produção da forma em sentido material: originalmente feminino. Obras como determinação espermática da forma: originalmente masculino (coloco meu desenho no campo masculino). Há, a este respeito, que circunscrever o domínio dos meios plásticos em sentido ideal e dar prova da maior economia em seu emprego. Nesta a ordem do espírito se afirma melhor que na abundância de meios. Evitar o emprego maciço de dados materiais (madeira, metal, vidro etc...) em benefício dos dados ideais (linha, tom e cor, que não são coisas tangíveis). Desde logo, os meios ideais não estão desprovidos de matéria; senão, não poderíamos “escrever”. Quando escrevo com tinta a palavra vinho, esta não representa o papel principal, somente permite a fixação da idéia de vinho. A tinta contribui deste modo para assegurar-nos permanentemente vinho. Escrever e desenhar são, no fundo, idênticos. A produção (geração) da forma se vê energicamente atenuada em relação à determinação (concepção) da forma. Última conseqüência destas duas espécies (causa eficiente e causa material) da formação é a forma. Dos caminhos à finalidade. Do que se faz ao perfeito. Da vida a instituição. A forma em sentido vivo (Gestalt) é uma forma com funções subjacentes; em alguma medida é uma função de funções. Ao começo, a masculina propriedade da sacudida enérgica. Em seguida, o crescimento carnal do óvulo. Ou melhor; o relâmpago fulgurante, e logo a vaporosa nuvem. E onde está mais seguro o espírito? No começo. Desde o ponto de vista cósmico, o movimento é, naturalmente, um dado prévio e absoluto e não requer, em sua condição de força infinita, nenhuma particular sacudida enérgica. A inércia das coisas na esfera terrestre não é mais do que o bloqueio material do dado dinâmico fundamental. Tomar esta fixidez por norma é uma farsa. A obra é em primeiro lugar, gênese, e sua história pode representar-se brevemente como uma fagulha que brota misteriosamente não sabemos de onde, que inflama o espírito, aciona a mão e, ao transmitir-se como movimento a matéria, converte-se em obra. Palavras como “excitado” e “provocado” dizem tudo a este respeito. A noção de provocação designa a pré-história do Ato Criador, as implicações “pré-históricas” do fiat cosmogerador, a vinculação do Começo com o temporal, com o “atrás”. A possibilidade que tem o sentimento de superar um começo está contida, por sua vez, na noção de infinito, que prolonga àquele “adiante”. O conceito de infinito não só se relaciona com o Começo, mas ainda vincula este ao Fim e nos leva as noções de ciclo e circulação. A circularidade com o movimento como norma, que elimina o problema do começo. E então alguém, também tomado pelo movimento normal, sente despertar em si uma disposição criadora. Se sente mobilizado e mobiliza por sua vez. As principais etapas do todo do trajeto criador são deste modo: o movimento prévio em nos mesmos, o movimento atuante, operante, voltado para a obra, e por fim ao demais, aos espectadores, o movimento consignado na obra. Pré-criação, criação e re-criação. Ao deixar desta maneira que se desenvolva pouco a pouco uma obra muito simples, primitiva, nos foi dado poder verificar mais de perto duas coisas importantes: antes de tudo, o fenômeno da formação; da formação em sua dupla relação com o desencadeamento inicial e com as condições de vida, da formação como desprendimento do misterioso impulso até à adequação à finalidade visada. O fenômeno já era perceptível em seu mais rudimentar começo, quando a forma começava a se constituir minimamente (estrutura). A fundamental relação da formação com a forma conserva, uma vez considerado o plano estrutural (“celular”), toda sua significação nos posteriores estágios, precisamente porque se há reconhecido nela um princípio. Esta significação pode enunciar-se assim: a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade interior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orientação determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e é, em conseqüência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquirido, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como movimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso. Boa é, portanto, a forma como movimento, como fazer; boa é a forma em ação. Má é a forma como inércia fechada, como detenção terminal. Má é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumprido. A forma é fim, morte. A formação é Vida. Isto se revelou por ocasião do crescimento de uma obra muito primitiva. O posterior desenvolvimento do organismo nos permite fazer uma segunda comprovação: como o trajeto criador penetrava em um caminho mais amplo, nos demos conta do inconveniente de um itinerário demasiadamente uniforme. Como se prevenir de um andar tedioso quando o caminho é o fundamental da obra? Faz-se necessário, logo, que o caminho ganhe em complexidade, se ramifique de maneira excitante, suba e desça, se extravie, se torne preciso ou embaraçado, se amplie ou reduza, se acelere ou se entorpeça. Trata-se com isso de vigiar o porque as diversas seções do itinerário se acomodam entre si a fim de formarem uma coesão; em outros termos, para que sempre se possa abarcar com o olhar toda a sua extensão como um organismo individual. Mas a coesão da obra, com a mediação da identidade do trabalho e do processo de sua elaboração (a obra em sua história), constitui-se durante o caminho, em virtude de proporções elementares que ligam as partes entre si e ao conjunto. Todo trabalho é a relação do particular com o geral. Aqui, a obra que surge (bipartida). Lá, a obra que é. Pensar, portanto, antes que na forma (“natureza morta”), na formação. Manter-se com energia no caminho, relacionar-se sem descontinuidade com o primordial surgimento ideal. O produtivo, o essencial, é o caminho. O devir se mantém sobre o ser. A criação vive, em sua condição de gênese, sob o revestimento da obra. Isto é o que vêem todas as naturezas espirituais retrospectivamente. Prospectivamente, no futuro, só o vêem as naturezas criadoras. Todas as coisas são, finalmente, perecíveis. E o que resta do passado, o que resta da vida, é o espírito. O Espiritual na arte: o que na arte é artístico. A exigência do absoluto é a mesma em todas as direções em que atuemos. (Paul Klee) A expressão não-objeto não pretende designar um objeto negativo ou qualquer coisa que seja o oposto dos objetos materiais com propriedades exatamente contrárias desses objetos. O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência. Morte da Pintura A questão posta obriga-nos a um retrospecto. Quando os pintores impressionistas, deixando o atelier pelo ar livre, procuraram apreender o objeto imerso na luminosidade natural, a pintura figurativa começou a morrer. Nos quadros de Monet os objetos se dissolvem em manchas de cor e a face usual das coisas se pulveriza entre os reflexos luminosos. A fidelidade ao mundo natural transferira-se da objetivação para a impressão. Rompidos os contornos que mantinham os objetos isolados no espaço, toda possibilidade de controle da expressão pictórica se limitava à coerência interna do quadro. Pouco depois, Maurice Denis diria que “um quadro - antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou alguma anedota - é essencialmente uma superfície plana coberta de cores dispostas de certa maneira”. A abstração não tinha nascido ainda, mas os próprios pintores figurativos, como Denis, já a anunciavam. Cada vez mais o objeto representado perdia significação aos seus olhos e, em conseqüência disso, o quadro, como objeto, ganhava importância. Com o cubismo, o objeto é brutalmente arrancado de sua condição natural, transformado em cubos, o que virtualmente lhe imprimia uma natureza ideal; esvaziava-o daquela obscuridade essencial, daquela opacidade invencível que caracteriza a coisa. Mas o cubo é tridimensional, ainda possui um núcleo, um dentro que era preciso consumir - e isso foi feito pela fase dita sintética do movimento. Já então o que sobra do objeto é pouca coisa. E é com Mondrian e Malevitch que a eliminação do objeto continua.  O objeto que se pulveriza no quadro cubista é o objeto pintado, o objeto representado. Enfim, é a pintura que jaz ali desarticulada, à procura de uma nova estrutura, de um novo modo de ser, de uma nova significação. Mas nesses quadros (fase sintética, fase hermética) não há apenas cubos desarticulados, planos abstratos; há também signos, arabescos, papéis-colados, números, letras, areia, estopa, prego etc. Esses elementos indicam duas forças contrárias ali presentes: uma, que tenta implacavelmente despojar a pintura de toda e qualquer contaminação com o objeto; outra, que retorna do objeto ao signo e que para isso necessita manter o espaço, o ambiente pictórico nascido da representação do objeto. A esta última tendência pode se filiar a pintura dita abstrata, de signo e de matéria, que se exacerba hoje no tachismo. Mondrian é quem percebe o sentido mais revolucionário do cubismo e lhe dá continuidade. Compreende que a nova pintura, proposta naqueles planos puros, requer uma atitude radical, um recomeço. Mondrian limpa a tela, retira dela todos os vestígios do objeto, não apenas a sua figura, mas também a cor, a matéria e o espaço que constituíam o universo da representação: sobra-lhe a tela em branco. Sobre ela o pintor não representará mais o objeto: ela é o espaço onde o mundo se harmonizará segundo os dois movimentos básicos da horizontal e da vertical. Com a eliminação do objeto representado, a tela - como presença material - torna-se o novo objeto da pintura. Ao pintor cabe organizá-la, mas também dar-lhe uma transcendência que a subtraia à obscuridade do objeto material. A luta contra o objeto continua. O problema que Mondrian se propôs não podia ser resolvido pela teoria. Se ele tentou destruir o plano com o uso das grandes linhas pretas que cortam a tela de uma borda a outra - indicando que ela confina com o espaço exterior -, ainda essas linhas se opõem a um fundo, e a contradição espaço-objeto reaparece. Inicia, então, a destruição dessas linhas e o resultado disso está nos seus dois últimos trabalhos, “Broadway Boogie-Woogie” e “Victory Boogie-Woogie”. Mas a contradição não se resolve de fato, e se Mondrian vivesse mais alguns anos talvez voltasse à tela em branco donde partira. Ou partisse dela para a construção no espaço, como o fez Malevitch, ao cabo de experiência paralela. Obra A tela em branco, para o pintor tradicional, era o mero suporte material sobre o qual ele esboçava a sugestão do espaço natural. Em seguida, esse espaço sugerido, essa metáfora do mundo, era rodeada por uma moldura cuja função fundamental era inseri-lo no mundo. Essa moldura era o meio-termo entre a ficção e a realidade, ponte e amurada que, protegendo o quadro, o espaço fictício, ao mesmo tempo fazia-o comunicar-se, sem choques, com o espaço exterior, real. Por isso, quando a pintura abandona radicalmente a representação - como no caso de Mondrian, Malevitch e seus seguidores - a moldura perde o sentido. Não se trata mais de erguer um espaço metafórico num cantinho bem protegido do mundo, e sim de realizar a obra no espaço real mesmo e de emprestar a esse espaço, pela aparição da obra objeto especial - uma significação e uma transcendência. É fato que as coisas se passaram com alguma morosidade, com equívocos e descaminhos certamente inevitáveis e necessários. O uso do papel-colado, da areia e de outros elementos tomados ao real e postos dentro do quadro já indica a necessidade de substituir a ficção pela realidade. Quando mais tarde o dadaísta Kurt Schwitters constrói o seu Merzbau - feito com objetos ou fragmentos de objetos achados na rua -, ainda é a mesma intenção que se amplia, já agora livre da moldura, no espaço real. Nessa altura, a obra de arte e os objetos parecem confundir-se. Sinal desse mútuo extravasamento entre a obra de arte e o objeto é a célebre Blague de Marcel Duchamp enviando para a Exposição dos Independentes, em Nova Iorque (1916), um urinol-fonte, desses que se usam no mictório dos bares. Essa técnica do ready-nude foi adotada pelos surrealistas. Ela consiste em revelar o objeto deslocando-o de sua função ordinária e assim estabelecendo entre ele e os demais objetos novas relações. A limitação desse processo de transfiguração do objeto está em que ele se funda menos nas qualidades formais do objeto que na sua significação, nas suas relações de uso e hábito cotidianos. Em breve, aquela obscuridade característica da coisa volta a envolver a obra, reconquistando-a para o nível comum. Nesse front, os artistas foram batidos pelo objeto. Desse ponto de vista, tornam-se bem claras, e até certo ponto ingênuas, algumas extravagâncias que hoje aparecem como a vanguarda da pintura. Que são as telas cortadas de Fontana, expostas na V Bienal, senão uma retardada tentativa de destruir o caráter fictício do espaço pictórico pela introdução nele de um corte real? Que são os quadros de Burri com estopa, madeira ou ferro senão o retomar - sem a mesma violência e antes transformando-os em belas-artes - dos processos usados pelos dadaístas? O mal, entretanto, está em que tais obras só conseguem o efeito do primeiro contato, e não logram permanecer na condição transcendente de não-objeto. São objetos curiosos, estranhos, extravagantes - mas objetos. O caminho seguido pela vanguarda russa mostrou-se bem mais profundo. Os contra-relevos de Tatlin e Rodchenko, como as arquiteturas suprematistas de Malevitch, indicam uma evolução coerente do espaço representado para o espaço real, das formas representadas para as formas criadas. A mesma luta contra o objeto verifica-se na escultura moderna a partir do cubismo. Com Vantongerloo (De Stil) a figura desaparece completamente; com os construtivistas russos (Tatlin, Pevsner, Gabo) a massa é eliminada e a escultura despoja-se da sua condição de coisa. O fenômeno é parecido: se a pintura que nada representa é atraída para a órbita dos objetos, com muito mais força essa atração se exerce sobre a escultura não-figurativa. Tornada objeto, a escultura livra-se da característica mais comum àquele: a massa. Mas isso não basta. A base - que equivale na escultura à moldura do quadro - fora eliminada. Vantongerloo e Moholy-Nagy tentaram realizar esculturas que se mantivessem no espaço, sem apoio. Pretendiam eliminar da escultura o peso, outra característica fundamental do objeto. E o que se verifica é que, enquanto a pintura, liberada de sua intenção representativa, tende a abandonar a superfície para se realizar no espaço, aproximando-se da escultura, esta, liberta da figura, da base e da massa, já bem pouca afinidade mantém com o que tradicionalmente se denominou escultura. Na verdade, há mais afinidade entre um contra-relevo de Tatlin e uma escultura de Pevsner do que entre esta e uma obra de Mafilol, de Rodin ou de Fídias. O mesmo se pode dizer de um quadro de Lygia Clark e uma escultura de Amílcar de Castro. Donde se conclui que a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando-se cada vez mais de suas origens. Tornam-se objetos especiais - não-objetos - para os quais as denominações de pintura e escultura já talvez não tenham muita propriedade. Formulação Primeira O problema da moldura e da base, na pintura e na escultura, respectivamente, nunca tinha sido examinado pelos críticos em suas implicações significativas, estéticas. Registrava-se o fenômeno, mas como um detalhe curioso que escapava à verdadeira problemática da obra de arte. O que não se percebia é que a própria obra colocava problemas novos e que ela procurava escapar, para sobreviver, ao círculo fechado da estética tradicional. Romper a moldura e eliminar a base não são, de fato, questões de natureza meramente técnica ou física: trata-se de um esforço do artista para libertar-se do quadro convencional da cultura, para reencontrar aquele “deserto” de que nos fala Malevitch, onde a obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja a de seu próprio aparecimento. Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um não-objeto e que esse nome só se aplica, com precisão, àquelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intenção fundamental de seu aparecimento. Colocada a questão nestes termos, as experiências tachistas e informais, na pintura e na escultura, mostram-nos a sua face conservadora e reacionária. Os artistas dessa tendência continuam - embora desesperadamente - a se valer dos apoios convencionais daqueles gêneros artísticos. Neles o processo é contrário: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura, o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os materiais brutos) lá dentro. Partem da suposição de que o que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de arte. É certo que, com isso, também denunciam o fim dessa convenção, mas sem anunciar o caminho futuro. Esse caminho pode estar na criação desses objetos especiais (não-objetos) que realizam fora de toda convenção artística e que reafirmam a arte como formulação primeira do mundo. (Ferreira Gullar) 

Apontamentos vis (à vis) do que me é scopu videoartístico ou D'alguns apascentos à Luz do Tempo por Otacílio Melgaço

P R O P E D Ê U T I C A

- CIENTES BONUM AT MALUM -

Antiteticamente, a assumir inexoráveis parâmetros zen-budistas, ‘o que é visto deve ser apenas o que é visto, no que é escutado deve haver apenas o que é escutado, no que é sentido (cheiro, gosto e tato) deve haver apenas o que é sentido, no que é pensado deve haver apenas o que é pensado.’...

‘Certo dia um homem do povo disse ao mestre Zen Ikkyu: ‘Mestre, por favor quer escrever para mim algumas máximas da mais alta sabedoria?’.

Ikkyu imediatamente pegou seu pincel e escreveu a palavra ‘Atenção’.

‘É somente isto?’ perguntou o homem. ‘Não quer acrescentar algo mais?’.

Ikkyu então escreveu duas vezes em seguida: ‘Atenção. Atenção’.

‘Bem’, observou o homem um tanto irritado, ‘na verdade não vejo muita profundidade ou penetração no que acaba de escrever’.

Então Ikkyu escreveu a mesma palavra três vezes em seguida: ‘Atenção, atenção, atenção’.

Meio zangado, o homem perguntou:

‘Afinal das contas, o que significa a palavra ‘atenção’?

E Ikkyu respondeu delicadamente: ‘Atenção significa...atenção’.

Aprender o caminho de Buda é aprender algo sobre si mesmo. Conhecer-se é esquecer-se. Esquecer-se é experimentar o mundo como puro objeto. Experimentar o mundo como puro objeto é deixar sucumbir o próprio corpo e mente e o corpo e a mente do “outro-eu”. Buda nos ensina que todos somos essencialmente perfeitos. Qual a forma do meu eu-perfeito? Ou melhor, ‘O que é Buda?’ ‘O bambu alto é alto, o bambu curto é curto’.

Ao perguntar ‘Quem está ouvindo?’ você está inicialmente consciente da pergunta, assim como do som. Quando a pergunta penetra mais profundamente, você deixa de estar consciente disso. Então quando um sino toca é somente o sino ouvindo o som do sino. Ou, em outras palavras, é o seu próprio som batendo. É este o momento da iluminação. ‘Quem é que escuta?’. Se você penetrar e penetrar no fundo desta questão, esquecido de tudo mais, mesmo a sensação de vazio desaparecerá e ignorará tudo mais - uma total escuridão prevalecerá. Continue: ‘O que é que escuta?’. Somente quando exauriu completamente o questionamento é que a pergunta irromperá: agora sentir-se-á como um homem que volta da morte. É a verdadeira percepção...

Refletiríamos a respeito da música tal qual ‘sutras’? Os ‘sutras’ são como um dedo apontando para a lua. Depois de vista a lua, não há mais necessidade do dedo.

Houve um Bodhisattwa que atingiu a iluminação concentrando-se em cada ruído que escutava, então Buda Shakyamini chamou-o de Kannon (simplificação de Kanzeon). Se você quiser conhecer a substância da mente-Buda, no mesmo instante em que escutar um som, procure aquilo que escuta. Então, infalivelmente chegará à percepção de que sua Mente não é diferente da de Kannon. Essa Mente nem é ser nem não-ser. Transcende todas as formas, mas é inseparável delas.

Auf dem Weg in eine andere Moderne.

Intuo e torno empírica minha abordagem videoartística tal qual búdico ‘movimento da mente’...

A bandeira não se move. O vento não se move. Somente a sua mente se move...

II

H E R M E N Ê U T I C A

- CONJUNCTIO -

Todo esforço para compreender destrói o objeto a que estávamos ligados, em benefício de um esforço que o suprime em benefício de um terceiro, e assim por diante, até chegarmos à única presença durável, que é esta em que desaparece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos...

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, no decorrer de seus ‘Tristes Trópicos’, realiza uma narração que alcunha ‘Farsa do Japim’. Enveredemo-nos...

‘...Entretanto, lá pelo final dessa liquidação melancólica do ativo de uma cultura moribunda, estava-me reservada uma surpresa. Era o início da noite, quando todos aproveitavam as últimas horas da fogueira a fim de se preparar para dormir. O chefe Tapefahi já estava deitado em sua rede; começou a cantar com uma voz distante e indecisa que mal parecia lhe pertencer. Imediatamente, dois homens (Walera e Kamini) foram se acocorar a seus pés, enquanto um arrepio de excitação percorria o grupinho. Walera lançou alguns apelos; o canto do chefe ganhou nitidez, sua voz firmou-se. E, de repente, compreendi a que assistia: Taperahi estava representado uma peça teatral, ou, para ser mais exato, uma opereta, com mistura de canto e texto falado. Ele sozinho encarnava uma dúzia de personagens. Mas cada um se diferenciava por um tom de voz especial – penetrante, em falsete, gutural, de baixo contínuo –, e por um tema musical que constituía um verdadeiro leitmotiv. As melodias pareciam incrivelmente próximas do canto gregoriano. Depois da Sagração evocada pelas flautas nambiquara, eu pensava ouvir uma versão exótica das Núpcias.

Com a ajuda de Abaitará – tão interessado pela representação que era difícil arrancar-lhe comentários – pude ter uma vaga idéia do tema. Tratava-se de uma farsa cujo herói era o pássaro ‘japim’ (um orolídeo de plumagem preta e amarela cujo canto modulado dá a ilusão da voz humana), tendo como parceiros os bichos tartaruga, onça, gavião, tamanduá, anta, lagarto etc., os objetos bastão, pilão, arco, e por último, espíritos, como o fantasma Maíra. Cada um se expressava num estilo tão de acordo com sua natureza que muito depressa consegui, sozinho, identificá-los. O enredo girava em torno das aventuras do ‘japim’, que, ameaçado primeiro pelos outros bichos, mistificava-os de diversas maneiras e terminava por vencê-los. A representação, que se repetiu (ou continuou?) por duas noites consecutivas, durou cada vez cerca de quatro horas. Por instantes, Taperahi parecia tomado pela inspiração, falava e cantava abundantemente: de todos os lados pipocavam as gargalhadas. Em outros, parecia esgotado, sua voz enfraquecia, ele ensaiava temas diferentes sem se fixar em nenhum. Então , um dos recitantes ou os dois juntos vinham em seu auxílio, fosse renovando seus apelos, que davam uma folga ao ator principal, fosse, enfim, assumindo temporariamente um dos papéis, de tal forma que, por um momento, assistíamos a um verdadeiro diálogo. Assim revigorado, Taperahi partia para uma nova apresentação.

À medida que a noite avançava, percebia-se que essa criação poética acompanhava-se de uma perda de consciência e que o ator deixava de ter o controle de seus personagens. Suas diferentes vozes tornavam-se-lhe estranhas, cada uma adquirira uma natureza tão acentuada que era difícil acreditar que pertencessem ao mesmo indivíduo. No final da segunda sessão, Taperahi, sempre cantando, levantou-se abruptamente da rede e pôs-se a circular de forma incoerente, pedindo cauim; fora ‘agarrado pelo espírito’; de repente, pegou uma faca e precipitou-se sobre Kunhatsin, sua mulher principal, que a muito custo conseguiu escapar, fugindo para a floresta, enquanto os outros homens o seguravam e o obrigavam a voltar para a rede, onde ele logo dormiu. No dia seguinte, estava tudo normal.’

Meus experimentos possuem (pretendem possuir) como nascedouro um processo semelhante ao da verídica personagem principal escriturada aqui pelo etnógrafo francês. Estaríamos diante de uma mística transfiguração? Metamorfisicidade creacional? Em intermitente textualidade, voltemos ao zen-budismo e suas 3 finalidades primevas:

1 - O desenvolvimento da capacidade de concentração (joriki). Um poder dinâmico que nos permite agir imediatamente sem parar para pensar... Não é, seu exercitante, mais um escravo de suas paixões, do seu ambiente... No seu comando sempre é capaz de caminhar com liberdade e serenidade. A mente se torna um ‘fluir’ perfeitamente tranqüilo.

2 - O despertar-satori (kensho-godo). Ver por dentro da natureza última do universo e toda sua infinitude. É súbita a compreensão que ‘fui completo e perfeito desde o princípio mais remoto’. É uma experiência muito particular, com claridades e profundidades peculiares.

3 - A atualização do Caminho Supremo em nossas vidas diárias (mujodo no taigen). Não se distingue os fins dos meios.

Obs.: joriki e kensho possuem um conexão essencial. Kensho é a sabedoria naturalmente associada ao joriki, que é o poder que brota da concentração. Tal qual entre o próprio kensho e o mujodo no taigen.

Por meio das devidas contextualizações que nos envolvem quase em sincrética comunhão para com prismas budistas e xamânicos, há uma frase straussiana exegética: ‘Na verdade, que mais aprendi com os mestres que escutei, com os filósofos que li, com as sociedades que visitei e com essa própria ciência da qual o Ocidente se orgulha, senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore?’...

Analisemos um dos (e, neste caso, o último do qual lanço mão) insights do franco etnólogo: ‘Semanas a fio, naquele planalto do Mato Grosso ocidental, eu vivera obcecado, não pelo que me rodeava e que eu nunca mais reveria, mas por uma melodia muito batida que minha lembrança empobrecia ainda mais: a do Estudo número 3, opus 10, de Chopin, no que, por um escárnio cuja amargura também me sensibilizava, parecia se resumir tudo o que eu deixara atrás de mim.

Por que Chopin, a quem minhas preferências não me conduziam especialmente? Criado no culto wagneriano, eu descobrira Debussy em data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinsky um mundo que me parecia mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias que me fornecia o alimento espiritual de que eu necessitava; então, por que Chopin e sua obra mais banal impunham-se a mim no sertão? Mais ocupado em resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro, conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava da excitação completa: o sinal, a alusão, a premonição de certas formas bastava.

Léguas após léguas, a mesma frase melódica cantava em minha memória sem que eu pudesse afastá-la. Nela eu descobria permanentemente novos encantos. Muito frouxa no início, parecia-me que ia progressivamente enroscando seu fio, como para dissimular o final que a concluiria. Essa transformação da flor em fruto ia ficando inextricável, a ponto de indagarmos que solução ela adotaria; de repente, uma nota resolvia tudo, e tal escapatória parecia ainda mais ousada do que o movimento comprometedor que a precedera, exigira e possibilitara; ao escutá-la, os temas anteriores elucidavam-se com um novo significado: sua busca já não era arbitrária, e sim a preparação para essa saída insuspeita. Seria então isso, a viagem? Uma exploração dos desertos de minha memória, e não tanto daqueles que me rodeavam?’...

Minhas obras  –  uma espécie de ‘Rêve Fixe’ (‘...entre sa vie et sa mort, il y a un moment qui n’est plus que celui d’‘une’ vie jouant avec la mort...’) ? – coadunam a ‘exploração dos desertos da memória’ ao norteamento búdico que analogiza ‘Luz/Não-Luz em Movimento’ e ‘Vislumbre da supremacia de um ou do Caminho percorrido por tal Luz/Não-Luz’. Aprofundemo-nos um pouco mais através das (tão peculiares, coincidentemente?, às veredas de um ‘Grande Ser...tão’, se me reportasse ao numinoso escritor mineiro João Guimarães Rosa – patriarca de minha família espiritual)

DEZ FIGURAS DE APASCENTAR O BOI

1 - Procurando o boi - ...desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele procura um Boi que não encontra. Acima e abaixo, rios escuros, sem nome, espraiados... Em matas espessas ele percorre muitas trilhas. Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode encontrar. Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.

2 - Encontrando os rastros - ...viu pegadas sem número na floresta e à margem das águas. Em que distâncias vê ele a relva pisada? Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas não podem esconder o focinho desse Boi que toca diretamente o céu.

3 - Primeiro vislumbre do boi - ...um rouxinol gorjeia num ramo, o sol brilha nos salgueiros ondulantes. Ali está o Boi, onde poderia esconder-se? Essa esplêndida cabeça, esses cornos majestosos, que artista poderia retratá-los?

4 - Agarrando o boi - ...ele precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escapar porque o Boi tem ainda tendências doentias. Ora se precipita para as montanhas, ora vagueia numa garganta  nevoenta.

5 - Domando o boi - ...ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao Boi vaguear para que não se extravie por lugares lamacentos. Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil. Solto, segue de bom grado a seu dono.

6 - Montando no boi o traz de volta à casa - ...cavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casa através da bruma da tarde, de capa e amplo chapéu de palha. Aonde quer que vá, produz uma brisa fresca enquanto profunda tranqüilidade domina em seu coração. Esse Boi não precisa nem de uma folha de relva.

7 - O boi foi esquecido, ele está só - ...somente montado no Boi ele poderia chegar à casa mas, eis que agora o Boi desapareceu e o homem se senta, sozinho e tranqüilo. O rubro sol anda alto no céu enquanto ele sonha placidamente. Ao longe, sob o telhado de palha jazem seu chicote inútil e seu inútil laço.

8 - Esquecido do boi e de si mesmo - ...o chicote, o laço, o Boi e o homem pertencem igualmente ao Vazio. Tão vasto e infinito é o céu azul, que não pode atingi-lo. Conceito de nenhum espécie. Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir. Quando a mente atinge esse estado, chega finalmente à compreensão do espírito dos antigos Patriarcas.

9 - Voltando à fonte - ...ele voltou à Origem, retornou à Fonte, mas foi em vão que tomou suas providências. É como se estivesse agora cego e surdo. Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora. Os riachos serpenteiam por si mesmos, as flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.

10 - Entrando na praça do mercado com mãos serviçais - ...com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado, enlameado e empoeirado. Como sorri mostrando os dentes! Sem recorrer a místicos poderes, faz árvores secas florescerem de repente.

- ARTIS AURIFERAE -

‘O mundo como é apreendido pelos sentidos é o menos verdadeiro (no sentido total), o menos dinâmico (no sentido do eterno movimento), e, o menos importante numa vasta ‘geometria da existência’ de inexprimível profundidade, cuja velocidade de vibração, intensidade e sutileza estão além da descrição verbal.

As palavras são embaraçosas e primitivas – quase inúteis quando procuram sugerir a verdadeira obra multidimensional de um indescritivelmente vasto complexo de forças dinâmicas e para se entrar em contato com ele é preciso abandonar o nível ‘normal’ de consciência. O mais insignificante dos atos tais como respirar ou se alimentar, não é de forma alguma simples. É apenas um momento visível num emaranhado de causas e efeitos que se voltam para o futuro dentro do Desconhecido e para o passado no Infinito Silêncio, onde não há penetração para a consciência do indivíduo. Não há realmente nada para conhecer, nada que possa ser conhecido.

O mundo físico é uma infinidade de movimento, de tempo-experiência. Mas é simultaneamente uma infinitude de silêncio e de vazio. Cada objeto é portanto transparente. Cada especificidade tem sua própria e especial qualidade interior, seu ‘tempo de vida’, mas simultaneamente não existe lugar onde haja o vazio, onde um objeto não flua para dentro do outro.

A menor expressão de variação climática, uma chuva suave ou uma brisa leve, toca-me como - que dizer? - um milagre de maravilha sem par, de beleza e bondade. Não há nada o que fazer: simplesmente ser, é o ato mais imensamente total. Olhando para os rostos, vejo alguma coisa da longa cadeia de sua existência passada, e, por que não?: futura. O que transcorreu torna-se póstumo, por detrás da face externa, como tecidos sempre mais finos que ao mesmo tempo ainda estão impregnados nele. Quando estou em solidão escuto uma ‘música’ que é engendrada pela cósmica unicidade. Cada uma e toda coisa tem sua própria música; mesmo os humores, os pensamentos, os sentimentos têm seus belos cantos. Entretanto, debaixo dessa variedade, podem se confundir numa inexprimível indiscernibilidade...   

Sinto uma consciência que não sou eu mesmo nem deixo de ser, e que me está protegendo ou levando em direções que colaboram para meu próprio crescimento e maturidade, e afastando-me daquilo que é contra esse crescimento. É como um riacho, dentro do qual flutuo e que, alegremente, me está carregando para além de mim mesmo...’... Eis algumas confidências de um praticante zen, em pujante relato de sua busca pela ‘Iluminação’.

O SER NO TEMPO

Um mestre Zen antigo disse: ‘SER NO TEMPO está de pé no mais alto pico e na maior profundeza do mar, ser no tempo são três cabeças e oito cotovelos, ser no tempo tem a altura de dezesseis ou dezoito pés, ser no tempo é a vara do monge, ser no tempo é um hossu (bordão de crina, levada pelo mestre Zen para afastar as moscas e mosquitos), ser no tempo é uma lanterna de pedra, ser no tempo é Taro, ser no tempo é Jiro (nomes usados com um cunho popular), ser no tempo é terra, ser no tempo é céu’.

Significa que tempo é ser. Cada coisa que existe é tempo. A figura dourada de dezesseis pés é tempo. Como é tempo, tem a grandeza do tempo. Você deve saber que são doze horas (do dia, que poderiam ser igualmente 24 horas do dia/noite) de ‘ser-agora’. Três cabeças e oito cotovelos é tempo. Uma vez que é tempo, só pode ser idêntico à estas doze horas, este mesmo momento. Ainda que meçamos doze horas como um longo ou curto espaço cronológico, mesmo assim (arbitrariamente) as chamamos de doze horas. As marcas da maré e o fluir do tempo são tão evidentes que não temos deles dúvidas; entretanto, embora não duvidemos deles, não podemos concluir que os compreendemos. Seres humanos são mutáveis, uma vez questionam o que eles não compreendem e outra vez não mais questionam a mesma coisa, de modo que seus primeiros questionamentos não coincidem sempre com os atuais. Só o questionamento, por causa de sua duração, é tempo.

O homem dispõe de si próprio e constrói esta disposição tal como o mundo. Você deve reconhecer que tudo, tudo neste mundo todo, é tempo. Nenhuma coisa estorva a outra, assim como nenhum tempo estorva outro. Assim pois, a orientação inicial de cada mente em relação à verdade existe dentro desta mesma verdade, e para cada mente existe também, um momento inicial na sua orientação para a verdade. Não é diferente com a prática-iluminação.

O homem dispõe de si mesmo e olha para esta disposição (tal como o mundo). Que o homem seja tempo é tão inegável quanto isto. Temos de aceitar que neste mundo há milhões de objetos e cada um é, respectivamente, o mundo inteiro... é aí que, por exemplo, o estudo do Budismo se inicia. Quando alguém chega a compreender este fato, (alguém percebe que) cada objeto, cada ser vivo é todo, mesmo que ele próprio não compreenda. Como não existe outro tempo senão este, todo ser no tempo é a totalidade do tempo: uma folha de erva..., cada objeto em si é tempo. Cada unidade do tempo inclui cada ser e cada mundo.

Reflita apenas se existem ou não alguns seres ou mundos concebíveis que não estejam incluídos neste tempo presente. Se você for uma pessoa comum, ao ouvir as palavras ‘a r u  t o k i’ (‘em um tempo’, ou, ‘ser no tempo’) sem nenhuma dúvida compreende que em um tempo o Ser apareceu como três cabeças e oito cotovelos, que em um tempo o Ser tinha uma altura de dezesseis ou dezoito pés, ou (que em um tempo) eu andei com dificuldade através do rio e (que em um tempo) atravessei a montanha. Você poderá pensar que a montanha e o rio são coisas do passado, que as deixei para trás e estou agora vivendo neste edifício palacial - eles estão de tal forma afastados de mim como o céu da terra. Entretanto, a verdade tem um outro lado. Quando subi na montanha ou atravessei o rio, eu era tempo. O tempo precisa estar comigo. Eu sempre fui: o tempo não me pode abandonar. Quando o tempo não é encarado como fenômeno que flui e reflui, o tempo em que subi a Montanha é o tempo presente de ser no tempo. Quando o tempo não é pensamento de idas e vindas, este momento é tempo absoluto para mim. No tempo em que subi a montanha e atravessei o rio, não experimentei o tempo em que estou neste edifício? Três cabeças e oito cotovelos são o tempo de ontem, e a altura de dezesseis ou dezoito pés são o de hoje, mas ‘ontem’ ou ‘hoje’ significa o tempo em que alguém vai direto à montanha e vê ‘dez mil picos’ (as incontáveis e variadas circunstâncias das atividades da vida diária). Ele nunca passou. Três cabeças e oito cotovelos no meu ser no tempo. Parece ser do passado, mas é do presente. Uma altura de dezesseis ou dezoito pés é meu ser no tempo. Parece que está passando, mas é agora. Assim, pois, o pinheiro é tempo, tanto quanto o é o bambu.

Não encare o tempo como se apenas estivesse passando depressa; não pense que passar depressa é sua única função. Pois para que o tempo passasse depressa, seria preciso haver uma separação (entre ele e as coisas). Porque você imagina que o tempo apenas passa, não aprende a verdade do ser no tempo. Numa palavra, todo ser no mundo é um tempo separado numa contínua sucessão. E uma vez que ser é tempo, eu sou meu ser no tempo. O tempo tem a qualidade de passar, por assim dizer, de hoje para amanhã, de hoje para ontem, de ontem para hoje, de hoje para hoje, de amanhã para amanhã... Porque este passar é uma característica do tempo, tempo presente, tempo passado não se superpõem, nem se chocam um com o outro mas Seigen é tempo, Obaku é tempo, Sekito é tempo (antigos mestres-zen chineses, apesar de terem morrido há muito, ainda vivem na infinitude do tempo...). Já que você e eu somos tempo, a prática e a iluminação

são tempo.

 

Dogen Kigen

Vídeoarte: a luminescência crônica, lume-Essência... Sermos (obra, obreiro, videntes) o próprio Tempo e, maiêutas, dá-lo à Luz... Darmo-nos, à la Goethe :

M E H R L I C H T

"Tudo é Metáfora.

Tudo se transmetaforma."

O.M.

 

FIAT

LUX

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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