top of page

Fragmentos do Ultimatum supostamente melgaciano,

- menos afeito a Nietzsche que a Álvaro de Campos -

misteriosamente atribuído (não se sabe qual origem possui) à

propedêutica das veredas musicais

d' Cadavrexquis:

 

 

"Louco, sim, louco, porque quis a grandeza..."

(Pessoa)

"A alegria é mais profunda que a dor, a alegria quer profunda, profunda eternidade."

(Nietzsche)

 

" (...) Mandado de despejo aos mandarins culturais da Europa! Fora!

(...) Fora! também, tu, Estados Unidos da América, síntese-bastardia da baixa-Europa, (...)

e fora! tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir!

Ponham-nos um pano por cima de tudo isso!

Fechem-nos isso à chave e deitem a chave fora! (...)

Abram todas as janelas!

Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo! (...)

Minas Gerais tem sede que se crie, tem fome de Futuro! (...)

Minas Gerais quer a Grande Idéia que esteja por dentro dos Homens Fortes (...)

Quer a Vontade Nova (...)

Quer a Sensibilidade Nova (...)

Minas está farta de não existir ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria! (...)

O que aí está não pode durar (...)

Nós, das Raça dos Descobridores, desprezamos o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!... (...)

Proclamamos a vinda de uma FonoGrafia Nova!

Proclamamos a sua Vinda em altos gritos!

Proclamamos a sua Obra em altos Gritos! (...)

E proclamamos: Primeiro:

O Super-homem Será, Não o Mais Forte, Mas o Mais Completo!

E proclamamos também: Segundo:

O Super-homem Será: Não o mais Duro, Mas o Mais Complexo!

E proclamamos também: Terceiro:

O Super-homem Será, Não o mais Harmônico, Mas o Mais Livre!

Proclamamos isto bem alto e bem no auge, na barra de um São Francisco, de costas para o Atlântico, braços erguidos, fitando o Holístico Ubiquo Sertão e saudando abstratamente o Infinito!

Ave! Rosa......."

Corrente-de-Consciência ou

Da Escrita Automática Surrealista e

a Música praticada pelo Cadavrexquis

(Lance de...Dados para uma Fundamentação Analógica)

 

 

No artigo "Les Champs magnétiques" (1920; "Os campos magnéticos"), publicado na revista Littérature, Breton definiu o traço fundamental do surrealismo, a chamada "escrita automática". Tratava-se de transmitir diretamente, sem refletir ou concentrar-se no que se queria dizer, as palavras que, sem tema preconcebido, viessem à mente de forma imediata. Essas frases procederiam diretamente do inconsciente e não teriam relação lógica entre si. Por isso, Breton se recusava a apagar, refazer ou retificar e negava o exercício da crítica sobre a escrita automática, considerada por ele como "texto puro", ou poema surgido do inconsciente. Dessa forma, Breton reagiu contra as limitações impostas pela razão e pela ordem social estabelecida e pretendeu criar um novo código de poesia e de conduta em geral. De acordo com a definição que ele mesmo formulou, "surrealismo é o puro automatismo psíquico, pelo qual propomos expressar verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o processo real do pensamento. O ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão e na ausência de toda preocupação estética ou moral". Breton afirmava que o sonho tem realidade objetiva e exerce sua influência sobre a realidade consciente objetiva. Se para Freud, criador da psicanálise, o sonho consiste num conteúdo inconsciente que assume formas do mundo da experiência, para Breton o sonho é a própria experiência.
Em seu interesse pelo onírico, Breton refez não apenas o caminho de Freud, mas também o de outros pensadores e escritores interessados no mundo subjetivo, tais como Gérard de Nerval, Rimbaud e Isidore-Lucien Ducasse, que publicou sua obra como conde de Lautréamont. Evocador de outras correntes estilísticas, Breton se considerou herdeiro de Chateaubriand, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, Baudelaire e outros. Entre os pintores, escolheu Uccello, Seurat, Gustave Moreau, André Derain, Picasso e Marcel Duchamp, entre outros. Pontos de referência foram também as teorias de Hegel e Marx.

A palavra surreal vem de super real; supra real. Surreal é algo que está além do real. E surrealismo, segundo o dicionário Petit Robert, é o "conjunto de procedimentos de criação e de expressão que utiliza todas as forças psíquicas (automatismos, sonhos, inconsciente) liberadas do controle da razão e em luta contra os valores recebidos; movimento intelectual revolucionário que afirma a superioridade destes procedimentos. Tem como antônimos naturalismo, realismo e racionalismo." Portanto: estética baseado na quebra dos padrões racionais ou conscientes de criação. Batizado pelo escritor Guillaume Apollinaire, desenvolveu-se na Europa no período entre as duas guerras mundiais. Extinto como movimento artístico na década de 1930, o surrealismo continuou a exercer grande influência ao longo de todo o século XX. Seus postulados, contrários ao pensamento estético, ético e político tradicionais, abriram espaço para novos símbolos e mitos alheios ao racionalismo.

Posso afirmar que a música proposta por mim (porto do qual parte e singra o Cadavre) abarca tal transperspectiva surreal, perpassando uma Phonescrita Automática que é engendrada - em praxis e in loco - por cada Musicista (monologal), encontrando sinfonia para com seus Colaços instrumentistas (conjuntural) e cada membro - exercendo audição interativa - do Público (coletivista). Tamanha (reitero Calder) 'mobilidade sonora' se parecerá conosco. Ao que acrescento com ironia: eis-nos!!! - autores infinitamente originais, de sensibilidades encantadoras, embora não apreciados pela horda vulgar. Se musicalizarmos poliversos que vêm "à mente, sem cortes: as associações de idéias mais obscuras e ilógicas então aparecerão". Sobre a escrita automática, há uma passagem bastante curiosa envolvendo André Breton e Octavio Paz: "No final da vida, André Breton recebeu o jovem poeta mexicano Octavio Paz, que, intrigado, perguntou:
- O que o senhor está fazendo, mestre?
- Escrita automática.
- Mas vejo o senhor usar a borracha a todo o momento.
- Ainda não está muito automática."

Otacílio Melgaço

 

Apêndice

"Central no surrealismo é automatismo mental, traço que o separa do dadaísmo, síndrome que permite a Clérambault, mestre de Lacan, compartilhar da hipótese que existe grande proximidade entre a loucura e a verdade. A escrita automática consiste em abstrair a realidade externa e, ao mesmo tempo, ao alienar o próprio eu, excluindo qualquer possibilidade de censura, permitir o surgimento da voz inconsciente, obtendo um discurso livre do controle da consciência. De acordo com Breton, o automatismo remete a uma noção de subconsciente freudiano, mas, na medida em que libera uma forma anônima de expressão universal, desfaz a idéia cartesiana segundo a qual a linguagem seria propriedade de um sujeito. O automatismo para os surrealistas aparece como um instrumento de descentramento ou de desestabilização do sujeito, o qual não mais se reconheceria na certeza de si." (Maria Angelina Kalil Aidé)

Para fazer um poema dadaísta

Pegue um jornal

Pegue uma tesoura

Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar

ao seu poema.

Recorte o artigo.

Em seguida, recorte com atenção cada palavra que forma esse artigo,
e coloque num saco.

Agite suavemente.

A seguir, retire cada pedaço, um após outro,

Copie conscienciosamente na ordem, em que foram retirados do saco.

O poema se parecerá com você. Ao que ele acrescentava com ironia: E ei-lo - um autor infinitamente original, de sensibilidade encantadora, embora não apreciado pela horda vulgar.

(Tzara)

"A maior parte da tinta que uso é líquida, fluida. Uso os meus pincéis mais como paus do que como pincéis. O pincel não toca a superfície da tela, passa-lhe por cima."
Pollock numa entrevista concedida à estação de rádio Sag Harbor, no Verão de 1950

 

 

"Aproveitando as tintas líquidas pré-misturadas que tinham aparecido nas últimas décadas, Pollock pegava numa grande lata de tinta com uma mão e deixava cair a tinta na tela com um pincel coberto de uma espessa crosta de tinta seca. Debruçando-se por cima da tela ou girando no sentido inverso ao dos ponteiros de um relógio como um jogador de ténis prestes a fazer um serviço imparável, deslocava-se rapidamente em torno do quadro, parando só de vez em quando para contemplar o emaranhado de linhas, manchas e salpicos que tinha produzido".
in Varnedoe, Kirk e Pepe Karmel, "Jackson Pollock". New York: The Museum of Modern Art, 1998, p 90.


"Quando estou a pintar não tenho consciência do que faço. Só depois de uma espécie de 'período de familiarização' é que vejo o que estive a fazer".
publicado no Inverno de 1947-48 no jornal americano "Possibilities"


"Os meus quadros não têm centro. Toda a sua superfície possui o mesmo nível de interesse".
declaração de Pollock a Goodnough publicada na revista "Artnews"


"A carreira de Pollock foi breve. Como R i m b a u d, envolveu um excesso de violência que nunca foi manchado pelo sentimentalismo"
Thomas Hess na revista "Artnews"  

 

"Jackson Pollock, criador da técnica dripping, ou seja, de gotejamentos. Marco do movimento expressionista americano ele foi severamente criticado por suas obras. Pollock pintava sobre suas telas gigantes estendidas ao solo, usando cores primárias. Agindo, andando ou dançando ao redor de suas telas, usava materiais inusitados como cacos de vidro e pás de pedreiro. As telas revelam um turbilhão inconsciente de manchas e respingos que assustam pela violência e mistura de cores aplicadas com força pelo pintor. Uma pintura de ação. Contudo, harmonizam aqueles que a contemplam. Suas telas revelam a inteireza de um gênio."

(Ana Andréa, coreógrafa/bailarina)

 

"O Gotejamento Sonoroso

(ou Action Sounding, diria eu, como fundador do Cadavrexquis), é um meio composicional em que determinista aleatoreidade e sincronicidade caótica se tornam epicentro do próprio ato de Criação."

(Otacílio Melgaço)

 

Post Scriptum:

 

Pollock adaptou seu modus faciendi de práticas atávico-indígenas que utilizavam a areia como elemento seivático. Em princípio, privilegio tal histórico autóctone mais do que qualquer releitura modernamente artisticizada. Parto, como musicista, de justa ReferenciAção.

 

+

 

Jackson Pollock, (28 de Janeiro de 1912 – 11 de Agosto de 1956) foi um importande pintor dos Estados Unidos da América e referência no movimento do expressionismo abstrato.

Pollock nasceu em Cody, no estado de Wyoming. Começou seus estudos em Los Angeles e depois mudou-se para Nova Iorque. Desenvolveu uma técnica de pintura, criada por Max Ernst, o 'dripping' (gotejamento), na qual respingava a tinta sobre suas imensas telas; os pingos escorriam formando traços harmoniosos e pareciam entrelaçar-se na superfície da tela. O quadro "UM" é um exemplo dessa técnica. Pintava com a tela colocada no chão para sentir-se dentro do quadro. Pollock parte do zero, do pingo de tinta que deixa cair na tela elabora uma obra de arte. Além de deixar de lado o cavalete, Pollock também não mais usa pincéis.

A arte de Pollock combina a simplicidade com a pintura pura e suas obras de maiores dimensões possuem características monumentais. Com Pollock, há o auge da pintura de ação (action painting). A tensão ético-religiosa por ele vivida o impele aos pintores da Revolução mexicana. Sua esfera da arte é o inconsciente: seus signos são um prolongamento do seu interior.Apesar de ter seu trabalho reconhecido e com exposições por vários países do mundo, Pollock nunca saiu dos Estados Unidos. Morreu em um acidente de carro em agosto de 1956.

Esculturas flutuantes

Música-Móbile por O.M.

 

"O universo é real, mas você não o pode ver. Tem de imaginá-lo." 

(Alexander Calder)

 

O artista norte-americano Alexander Calder tinha a idéia de fazer quadros em movimento. Suas esculturas feitas com arame e que se moviam com o vento foram exibidas por primeira vez em Paris em 1932. Marcel Duchamp as denominou “móbiles”.  Quando criou suas primeiras esculturas móveis motorizadas, Calder se inspirou nas cores e na composição da obra de Piet Mondrian; seus móbiles posteriores evocavam tanto as pinturas de Joan Miró como os relevos abstratos de Jean Arp.

 

"(...) O móbile realiza a alquimia do peso. O móbile é a desintegração do fio de prumo. O fio de prumo cai verticalmente e o móbile vai horizontalizando, vai dispersando a verticalidade do fio de prumo. Nesse sentido é uma fantasia. O fio de pluma não tem fantasia nenhuma, ele é reto, direto. O poético é o Calder fazer o móbile se propagar no espaço e começar a flutuar." (Ferreira Gullar)

 

"Alexander Calder constrói mecanismos de equilíbrio precário, que brincam com o ar, sussurra-nos Kátia Canton. Basta um leve sopro ou um pequeno toque para que suas composições, verdadeiros brinquedos escultóricos, iniciem suas coreografias, que tornam o movimento algo visível, plástico. A alquimia do peso. Do peso das notas, dos ruídos, das sonâncias... Sobretudo do peso d'silêncio, da sonorosa (des)estrutura liberimprovisativa... Tudo às veredas do flutuar." (Otacílio Melgaço)

 

+

 

Alexander Calder - Escultor americano nascido em 22 de julho de 1898 em Lawnton, Pensilvânia, Estados Unidos. Filho do escultor Alexander Stirling Calder e da pintora Nanette Lederer Calder. Sua família sempre o estimulou para a vida artística e desde bem pequeno, tinha seu ateliê para confeccionar seus próprios brinquedos. Estudou na Art Students League de Nova Iorque de 1923 a 1926. Trabalhava como ilustrador para seu sustento. Em 1926 mudou-se para Paris onde desenvolveu um trabalho conhecido como Cirque Calder, pequenas figuras esculpidas em madeira e diversos materiais. A partir daí, conheceu diversos artistas de vanguarda em Paris. Iniciou uma fase de esculturas figurativas tridimensionais, articulando grandes extensões de arame que expressavam movimento e emoção. Ficou conhecido também pelos grandes e criativos móbiles. Era um artista de muita originalidade, que definia volume sem massa e incorporava tempo e movimento às suas obras. Suas criações redefiniram os princípios da escultura e o consagraram como o maior "escultor inovador" do século 20. Após uma vasta obra de pinturas, esculturas, brinquedos, monumentos, faleceu em Nova Iorque na casa de sua filha, em 11 de novembro de 1976.

Pasquim

Cadavrexquisiano

Das nossas 

perspectivas musicais cotejadas...

...ao Anarquismo

"Sei o pulso das palavras a sirene das palavras
Não as que se aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam os caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro
Às vezes as relegam inauditas inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras Parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios alma carcaça"
(Maiakóvski | 1928/1930)

 

-Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...

 
Tum... tum... tum... tum tum tum tum...

 
VLIIIMIIIIM...

 
BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...

 
FUTSCH! FUTSCH!...

 
ZING-TANG... ZING-TANG...

 
     TANG... TANG... TANG...

 
PRÁ Á KK!...

"A autoridade acaba onde a arte começa, ela acaba ao adentrar a estética que é o triunfo do pensamento e ação livres... A arte e a vida são uma mesma e única realidade. Quem as separa as mutila. Só resta então um rascunho grosseiro, testemunho de uma sociedade cuja decadência nada tem de grandiosa. Frente a esse rebanho de brutos, de inconscientes e semi-loucos, dos quais depende a sorte do planeta, a artistocracia levanta-se como um protesto vivo, elite de todos os homens livres de todos os países, que se negam a uivar com os lobos a balir com os cordeiros. Ela parece vencida, porém sua resistência à bestialidade não é por isso menos eficaz e constitui uma barreira contra a maré ascendente de lodo que ameaça submergir a terra inteira, com o apoio da tecnologia que se encontra nas mãos da mediocracia, responsável por mortes e torturas, estetização progressiva do fenômeno contestatório abre uma nova fase; a ação e a manifestação se convertem em espetáculo, a poesia em ação. Que o artista e o ativista voltem a falar a mesma língua."

Anarquismo é uma palavra que deriva da raiz grega αναρχία an (não, sem) e archos (governador) e que designa um termo amplo que abrange desde teorias políticas a movimentos sociais que advogam a abolição do Estado enquanto autoridade imposta e detentora do monopólio do uso da força. De um modo geral, anarquistas são contra qualquer tipo de ordem hierárquica, defendendo, pelo contrário, tipos de organizações horizontais e libertárias. A própria definição adotada pela maioria dos dicionários, mostra a deturpação etimológica que a palavra anarquismo sofreu durante o tempo. Uma das visões do senso comum sobre o tema é na verdade o que se considera "anomia", ou seja, ausência de leis. O anarquismo não se relaciona com a prática da anomia. Os anarquistas rejeitam esta denominação, e o anarquismo enquanto teoria política nada tem a ver com o caos. Grupos distintos têm compreensões diferentes quanto à abolição dos governos e à organização social que disso resultaria. O anarquismo busca a total liberdade do indivíduo, para conseguir se basea nos seguintes princípios: 

Antiautoritarismo

Repulsa total a qualquer tipo de hierarquia ou domínio de umas pessoas sobre as outras, defendendo uma organização social baseada na igualdade e no que a liberdade é o valor supremo.

Humanismo

Nos meios anarquistas, de forma geral, rejeita-se a hipótese de que o governo, ou o estado sejam necessários ou mesmo inevitáveis para o processo de sociabilidade dos seres humanos. A sociedade, antes, constitui fenômeno inevitável capaz de se auto-organizar, dependendo esta organização dos indivíduos que a compõem. A presença, portanto, de autoridades e hierarquias não seria de forma alguma natural, mas instituições artificiais.

O humanismo dos anarquistas vê na instituição da autoridade e das ordens hierárquicas uma falha na capacidade de todo indivíduo em autodeterminar-se sem delegar suas responsabilidades sociais a outrem fazendo surgir em seu meio a desigualdade. A imposição da opressão e da autoridade é que provoca a corrupção no convívio social.

Ação direta

Os anarquistas afirmam que para solucionar os problemas sociais, não tem que delegar a ninguém, mas sim, que tem que atuar diretamente contra o problema em questão, este é o significado de ação direta.

Apoio mútuo

Este é o princípio básico de solidariedade que seguem normalmente os grupos anarquistas. Piotr Kropotkin, em sua famosa obra "O Apoio Mútuo", explica os motivos pelos quais as sociedades se devem basear neste princípio e o ilustra com numerosos exemplos, tanto do comportamento dos animais como de elementos de diferente culturas humanas.

(OBS.: Anomia, a idéia popular de anarquismo como absoluto caos e desordem, que os estudiosos chamam de anomia - ausência de normas - merece ser rejeitada.) 

"Acabo de contemplar um pavoroso, um emocionante incêndio. A fábrica, antro horripilante de injustiças, ficou reduzida aos alicerces. As chamas, chamas reparadoras duma escravidão milenária, fizeram, em algumas horas, o que os homens, em anos de incessantes prédicas, não foram capazes de realizar. (...) A fábrica ardia crepitando monstruosamente, derruindo-se, arrastando consigo todos os artefatos que, junto com o suor dos operários, constituíam uma boa parte da riqueza do patrão (...) Por isso os comentários, em frente ao fogo, eram todos de pessoas interessadas. E através das chamas que rapidamente comiam a fábrica com fome feroz, com fome de demolidora justiça, os interessados, os que ficavam sem nada com a perda da fábrica, tinham a visão das negruras do porvir. (...) 

O fogo é artístico e estético. Duma beleza inimitável, parece essa música de Wagner que nos retrata nos tímpanos e no coração as convulsões espasmódicas dos elementos em eterno movimento." (Anônimo)

 

 

"LIBERDADE!"

De tombo em tombo, a rastejar na lama,
Manietada na idéia e de alma baça,
A humanidade vive, geme e passa, Como se o mundo ardesse [em rubra chama!...
(...)
Como ele, aos ombros,

com serenidade,
Leva ao calvário a cruz, em nossos dias,
Onde expira bradando: liberdade!...

(Constantino Pacheco)
 

A chama canta, salta e corre,
O velho burgo tomba enfim...
Oh! Quanto abutre cai e morre!
Oh! Quanto abutre em seu festim!
De face a arder, que a chama cresta!
Ó parias nus, vindes dançar
Dançar em roda, correr, cantar,
Que esta fogueira é vossa festa!
A chama a crepitar!
Em círculo formai!
Dançai!
Dançai!
De archote aceso, o mundo iluminai! (Neno Vasco)

 

"A intencionalidade poder ser

uma chave sedutora de  abordagem da arte,

mas ainda é preciso colocá-la

em perspectiva à luz da teoria da 'recepção'.

Este será o tema de uma outra discussão.

Enquanto aguardamos, trata-se de decidir qual seria

a atitude desejável do artista anarquista.

Sem dúvida, a de um artista

independente, heterodoxo,

aberto à novidade, sempre pronto

a questionar-se."

(Pietro Ferrua)

 

 

 

Apêndice

 

A arte moderna, contestando os valores "clássicos" de "acabado" e "definido", propõe uma obra indefinida e plurívoca, aberta, verdadeira rosa de resultados possíveis, regida e governada pelas leis que regem e governam o mundo físico no qual estamos inseridos. Propõe e procura uma alternativa "aberta", que se vem configurando como um feixe de possibilidades móveis e intercambiáveis mais adaptadas às condições nas quais o ser humano moderno desenvolve suas ações. Não a obra-definição, mas o mundo de relações de que esta se origina; não a obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação; não a obra-evento, mas as características do campo de probabilidades que a compreende. Obra aberta como proposta de um "campo de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de "leituras"sempre variáveis; estrutura, enfim, como "constelação" de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas. Procura-se, desta forma, verificar como uma concepção de obra nasce em concomitância ou em explícita relação com determinadas impostações das metodologias científicas, da psicologia ou da lógica contemporâneas. O tema comum a essas pesquisas é a reação da arte e dos artistas (das estruturas formais e dos programas poéticos que a elas presidem) ante a provocação do acaso, do indeterminado, do provável, do ambíguo, do polivalente...Enfim, propõe-se pesquisar os vários momentos em que a arte contemporânea se vê às voltas com a DESORDEM;

que não é a desordem cega e incurável, a derrota de toda possibilidade ordenadora, mas a desordem fecunda, cuja positividade nos foi evidenciada pela cultura moderna, a ruptura de uma Ordem tradicional que homens e mulheres ocidentais acreditavam imutável e a identificavam com a estrutura objetiva do mundo... Ora, desde que a noção tradicional se dissolveu, através de um desenvolvimento problemático secular, na dúvida metódica, na instauração das dialéticas historicistas, nas hipóteses da indeterminação, da probabilidade estatística, dos modelos explicativos provisórios e variáveis, a arte não tem feito outra coisa senão aceitar essa situação e tentar - como é sua vocação - dar-lhe forma. O discurso aberto, que é típico da arte, e da arte de vanguarda em particular, tem duas características. 1.a) Acima de tudo é ambíguo: não tende a nos definir a realidade de modo unívoco , definitivo, já confeccionado. O discurso artístico nos coloca numa condição de "estranhamento", de "despaisamento"; apresenta-nos as coisas de um modo novo, para além dos hábitos conquistados, infringindo as normas da linguagem, as quais havíamos sido habituados. As coisas de que nos fala aparecem sob uma luz estranha, como se as víssemos pela primeira vez; precisamos fazer um esforço para compreendê-las, para torna-las familiares, precisamos intervir com atos de escolha, construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem estética, sem que esta nos obrigue a vê-la de um modo pré-derminado. Assim, a minha compreensão difere da sua, e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos, e para cada um de nós é uma contínua descoberta do mundo. 2.a) A segunda característica do discurso aberto é que ele me reenvia antes de tudo não às coisas de que ele fala, mas ao modo pelo qual ele as diz. O discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim,, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência. Por isso a grande arte é sempre difícil e sempre imprevista, não quer agradar e consolar,, quer colocar problemas, renovar nossa percepção e o nosso modo de compreender as coisas. O discurso persuasivo, ao contrário, quer levar-nos a conclusões definitivas; prescreve-nos o que devemos desejar, temer, compreender, querer e não querer. Para dar um exemplo, se o discurso aberto quer nos apresentar de um modo novo o problema da dor, o discurso persuasivo tende a nos fazer chorar, a estimular as nossas lágrimas, como pode acontecer com uma fotonovela. O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniões e convenções. Não lhe propõe nada de novo; não o provoca mas o consola. (Umberto Eco)

  ..............................................................................

 

  M.S.C.

...............................................................................

 
Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que falta na paisagem...
As ondas acústicas ainda mais a subtilizam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas corças d'Alma...

 
Pede uma voz um número ao telefone:
Norte-2, 0, 5, 7...
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:

 
ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA

  
Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
Não tem fim a maravilha!

 
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...

 
- Meus olhos extenuaram de Beleza!

 
Inefável devaneio penumbroso -
Descem-me as pálpebras vislumbradamente...

 
...............................................................................

 
...Começam-me a lembrar anéis de jade
De certas mãos que um dia possuí -
E ei-los, de sortilégio, já enroscando o Ar...
Lembram-me beijos - e sobem
Marchetações. a carmim...

 
Divergem hélices lantejoulares...
Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
Pequenos timbres d'oiro se enclavinham...
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
Quebram-se estrelas, soçobram plumas...

 
Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,
Fincadamente os cerro...
Embalde! Não há defesa:
Zunem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão -
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...

 
- Ó mágica teatral da atmosfera,
- Ó mágica contemporânea - pois só nós,
Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!

 
...............................................................................

 
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!
Eu próprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!

 
(Como tudo é diferente
Irrealizado a gás:
De livres pensadoras, as mesas fluídicas,
Diluídas,
São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)

 
...............................................................................
...............................................................................

 
Sereno.
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o "Matin".

 
Meus olhos, já tranquilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipográfica
Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crónicas diárias!
Corpo-12 romano, instalado, burguês e confortável
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!

 
Tipo miudinho dos pequenos anúncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os «puzzle» frívolos da pontuação,
Os asteriscos - e as aspas... os acentos..
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!...

 
- Abecedários antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Eslavos, árabes, latinos -
Eia-hô! Eia-hô! Eia-ho!...

 
(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomatopaica,
Rescendente da beleza alfabética pura:
Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flak...
Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurra!)

 
Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da última-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!

 
- Hurra! por vós, indústria tipográfica!
- Hurra! por vós, empresas jornalísticas!

 
Por ultimo desdobra-se a folha dos anúncios...
- O emotividade zebrante do Reclamo,
Ó estética futurista - up-to-date das marcas comerciais,
Das firmas e das tabuletas!

 
E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA.

 
..............................................................................
...............................................................................

 
Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá também:
Números e letras, firmas e cartazes -
Altos relevos, ornamentação!... -
Palavras em liberdade, sons sem-fio,

 
Antes de me erguer lembra-me ainda,
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares.., não sei porquê...

 
-Un vermouth-cassis... Un Pernod à l'eau...
Un amer-citron... une grenadine...

 
...............................................................................
...............................................................................
...............................................................................

 
Levanto-me...
- Derrota!
Ao fundo, em maior excesso, há espelhos que reflectem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através deles,
A mais subtil destaque...
- O sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,
Toda essa Beleza inatingível,
Essa Beleza pura!

 
Rolo de mim por uma escada abaixo...
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava...
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Detido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:

 
-Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...

 
Tum... tum... tum... tum tum tum tum...

 
VLIIIMIIIIM...

 
BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...

 
FUTSCH! FUTSCH!...

 
ZING-TANG... ZING-TANG...

 
     TANG... TANG... TANG...

 
PRÁ Á KK!...

 

"Aquele que botar as mãos 

sobre mim, para me governar, 

é um usurpador, um tirano. 

Eu o declaro 

meu inimigo!" 

Analogias entre o Intuicionismo bergsoniano e a Música Livre do CadavrExquis Ensemble

Foi o intuicionismo mais uma tentativa alogicista de filosofar, e que veio com raízes no positivismo, mas para o superar. O alogicismo já de tempos vinha se manifestando nos círculos ligados ao racionalismo, até também foi surgir em outros campos, crescendo sobretudo a partir do final do século dezenove. No século 17 fora Pascal um alogicista praticamente isolado. Crescerá o número dos alogicistas, depois que a Crítica da razão prática (1788) de Kant deu oportunidade ao caminho de informação por fora da razão pura; pela nova fonte trilharam diversas correntes ligadas ao kantismo, como a fenomenologia de Scheler, o voluntarismo de Schopenhauer, e até mesmo o existencialismo. Finalmente no contexto do positivismo, como já se adiantou, bem como do espiritualismo eclético francês emerge um movimento alogicista, cujo principal protagonista foi Henri Bergson (1859-1941), e que se difundiu sob a sigla de intuicionismo, como ainda por bersonismo.

Henry Bergson (1859-1941). Filósofo francês, de origem judaico-polonesa pela via paterna, e mãe inglesa, nascido em Paris. Estudou no Liceu Condorcet. Ingressando em 1878 na Escola Normal Superior, atingiu a agregação ;em 11881, o doutorado em letras, em 1889. Professor vários anos na escola secundária, - em Angers (1881-1883),Clermont-Ferrand, Louis-le- Grand, por último no Liceu Henrique IV de Paris. Professor de filosofia na Escola Normal Superior, de 1897 a 1900, de onde passou ao Collège de France, 1900 a 1921. Eleito para a Academia Francesa (de Letras), em 1914. Prêmio Nobel de literatura, em 1927.

O ponto de partida da filosofia de Bergson é admissão de duas fontes de conhecimento: a intuição, descrita como procedimento alógico, a qual atinge a realidade com mais autenticidade que a simples razão; diferentemente, a razão, ou inteligência, opera a realidade apenas pelas suas relações extrínsecas, como acontece na ciência experimental, ou como quer o positivismo. A intuição foi também comparada por Bergson ao conhecimento místico, como acontecia habitualmente em certos homens de conhecimentos especiais. O mesmo aconteceria no processo da poesia e da percepção artística mais profunda.

A intuição descobre a realidade como duração; descreveu-a Bergson como elan vital. É a intuição o primeiro instante do conhecimento, o qual atinge, por esta primeira operação cognoscitiva o fundamento das coisas, em si mesmas, em absoluto e não apenas por relações. Na intuição opera o homem sapiens; no outro conhecimento, o homem faber. No seu cotidiano, o homem costumar ser primeiramente um homem faber; progredindo, passa a ser um homem sapiens. A filosofia é uma reflexão sobre os dados da intuição. O outro tipo de conhecimento, peculiar à ciência, opera a partir de elementos já conhecidos, que são interrelacionados. A duração, ou o devir, é alcançada em si mesma apenas pela intuição, e seu conteúdo, como já se adiantou, é o objeto da filosofia.

Matéria e espírito são impulsos constitutivos da mesma duração da qual são os extremos; aqui Bergson é monista e evolucionista, com alguns sinais de haver sido influenciado pelo positivismo evolucionista de Stuart Mill, um dos seus autores preferidos inicialmente. Além disto, o reducionismo de Bergson está em favor do espírito; a matéria é como que o espírito, ou seja o psíquico, em estado menos ativo, como uma degradação da vida com momentos menos ativos. O que acontece são alterações qualitativas, ora em estágio de espírito, ora em de matéria. O elan vital é o devir em sua marcha criadora, como virtualidade deste devir. Direções materiais e espirituais, evoluções diferenciando-se em instintivas e inteletuais continuam sempre formas da mesma realidade. A memória é o elemento integrador dos momentos da duração. Há neste intuicionismo uma evidente oposição ao positivismo e ao empirismo em geral. De outra parte, não é um racionalismo cartesiano. Insere-se o bergsonismo na tendência de alguns filósofos modernos, que, desde Pascal, se apóiam numa intuição, descrita ora mais alogicamente, ora mais ecleticamente.

Deus e o mundo são praticamente a mesma coisa, vista esta em fases diferenciadas. Este monismo, sobre o qual Bergson contudo não insistiu, foi descrito como evolução criadora. Deus é um imenso fazer-se, não é nada terminado, como se fosse todo feito (tout fait). Ele é vida sem cessar, é um agir sempre, é liberdade. Comparou Deus criador com centro de irradiação de fogos de artifício, em que os foguetes individualmente representariam as diversidades dos mundos. Para afastar o caráter monista de tais expressões em Bergson, procura-se apoio em algumas de suas cartas, que parecem dizer que a duração em Deus é diferente da nossa.

A moral surge como uma necessidade da vida, revelando-se como amor, ao modo como é alcançado pela experiência mítica e praticada pelos místicos. Esta é a moral da sociedade aberta. Há também a moral resultante da pressão social, a moral da sociedade fechada, produzida pela razão comum. Ao estabelecer na necessidade da vida a fonte da moral, opõe-se à ética apriori de Kant, como também ao positivismo em geral.

Obras: Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (Essai sur le donnés immédiates de la conscience, 1889), tese; A idéia de lugar em Aristóteles; (Quid Aristoteles de lodo senserit, com tradução francesa - L'idée de lieu chez Aristote, 1889), tese; Matéria e memória. Ensaio sobre as relações do corpo com o espírito (Matière et mémoire, essai sur la relation du corpsà l'esprit, 1896); O riso, ensaio sobre a significação do cômico (Le rire, essai sur la; signifation du comique, 1900); A evolução criador (Lévolution créatrice, 1907), obra principal; A energia espiritual (L'énergie spirituelle, 1919), coleta de artigos e conferências; Duração e simultaneidade. A propósito da teoria de Einstein (Durée et simultanéité. À propos de la théorie d'Einstein 1922), a propósito da teoria de Einstein; As duas fontes da moral e da religião (Le deux suources de la morale et de la religion, 1932); O pensamento e o movimento (La pensée et le mouvant, 1934), coletânea de textos; Escritos e palestras; (Écrits et paroles, I vol. 1957, II e III vols., 1959), póstumo, contendo prólogos, resenhas, discursos, etc.).

II

 Se a idéia básica é que a realidade é duração real e o local em que se evidencia que a realidade é duração é a consciência, onde se unem a experiência e a intuição: a intuição é a alma da verdadeira experiência, o ato que nos coloca dentro das coisas; não um ato estático, mas uma atividade viva, a própria duração da realidade.

Eis, portanto, a partir da perspectiva do Combo Cadavre Exquis, uma das pedras-de-toque do Esprit livr'improvisativo. 

(Daí partiríamos, talvez, ao Inconsciente, seara da surrealidade, ou seja, de uma nova e outra duração, experiência, intuição?)

 

Otacílio Melgaço

 

III

Apêndice

Aos que almejam maior aprofundamento...

A metafísica de Henri Bergson 

Angel Vega Rodríguez

Prof. Adjunto do Dep. de Filosofia - Mestre em Filosofia. da Educação 

INTRODUÇÃO:
 
A intuição foi sempre a arma preferida do filósofo. Por isso se nos apresenta como o método fundamental da filosofia de todos os tempos.

Trata-se de um ato simples, único, do espírito por meio do qual captamos a realidade de um objeto dado. Intuição vale tanto como visão, (do latim intuere = ver) e ver algo significa conhecer esse algo direta e imediatamente, sem intermediários de espécie alguma. Esse é o caráter mais evidente do conhecimento intuitivo.

Costuma-se opor à intuição o conhecimento discursivo. Este consiste, não num só ato, senão numa série de atos, dirigidos ao objeto para apreender a sua essência, a sua realidade. O conhecimento discursivo, o discurso (do latim discurrere = discorrer) sugere a idéia de um conjunto de atos que o nosso espírito deve praticar para chegar, por rodeios e pontos de vista diversos, à captação do objeto que se propõe. O conhecimento discursivo é, essencialmente, mediato e indireto. Este é o seu caráter distintivo.

Cabe perguntar: existe realmente a intuição? Que existe, ninguém o pode negar. Temos um primeiro exemplo na intuição sensível. Percebemos imediatamente o dado na experiência externa, uma árvore, uma mesa; na experiência interna, a dor, a alegria. Não é esta, entretanto, a intuição de que se vale o filósofo para fazer filosofia. Por duas razões fundamentais: a primeira, porque a intuição sensível aplica-se única e exclusivamente a objetos que se oferecem aos nossos sentidos, e os filósofos trabalham com objetos não sensíveis. A Segunda, porque a intuição sensível só pode nos proporcionar um conhecimento válido apenas para esse objeto particular; ao passo que a filosofia só se preocupa com o conhecimento universal dos objetos.

Existe, entretanto, na nossa vida psíquica, um outro tipo de intuição que podemos denominar de "espiritual", pois é o espírito e só o espírito que pode praticá-la. Quando eu digo, por exemplo, que a cor amarela é distinta da cor verde, que a distância de um metro é menor do que a distância de dois metros, etc. vejo essas diferenças com os olhos do espírito através de uma visão direta e imediata. Sensível é a intuição do amarelo e também a do verde. Porém, a relação de diferença, que não é um objeto sensível, só pode ser percebida diretamente pelo espírito.

Os exemplos citados, que podem multiplicar-se indefinidamente, nos ilustram sobre a existência de certos objetos não sensíveis, que se constituem por relações e têm um caráter puramente formal, isto é, prescindindo, portanto, do conteúdo, do que eles sejam realmente. Essa intuição espiritual formal, entretanto, nada tem a ver com a intuição que o filósofo pratica para penetrar, além da forma, na essência, na realidade mesma das coisas que é sua pretensão específica como pensador. Para esse exemplo, a filosofia dispõe de outro tipo de intuição que, para distinguí-la da anterior, chamaremos de "intuição real", pois é esta intuição de caráter real que vai permitir o filósofo sair de si, através do espírito, para entrar em contato com a realidade íntima das coisas em seus aspectos vários.

Esta intuição real pode ser de diversa índole. Conforme o filósofo adote uma atitude intelectual, emocional ou volitiva, teremos, consequentemente, três tipos diferentes de intuição: intelectiva, volitiva, emotiva.

Tentemos preencher este esquema formal abstrato com um conteúdo histórico concreto, destacando alguns filósofos atuais mais representativos. Em primeiro lugar, a intuição intelectual é um esforço, por parte do filósofo, para captar diretamente, mediante um só ato do espírito, a essência, isto é, o que o objeto é. Intuição intelectual vale tanto como visão de essências. Filósofos como Platão, Descartes, Schelling, Husserl, são seus representantes mais genuínos.

Notadamente Husserl se esforça, através do método fenomenológico, por mostrar, que toda representação sensível vem lastrada de uma essência, de um "éidos", pois, segundo ele, toda representação ou fenômeno, pode ser olhado de dois pontos de vista: um psicológico, porquanto ele tem uma individualidade psicológica própria; outro, referencial, porquanto ele contém a referência intencional a um objeto.

A intuição husserliana consiste então em olhar para uma representação qualquer, prescindindo de sua singularidade própria, despindo-a de seu caráter existencial, e tentar ver nela, com um ato da inteligência, o que tem de essencial, a sua essência geral, universal, o seu "éidos". Por este aspecto, bem pode ser qualificada de intuição essencial.

A intuição volitiva tem, por sua vez, também seu correlato no objeto.

Trata-se agora, não da essência, senão da existência do objeto.

A existência revela-se diretamente à nossa vontade, porquanto é o objeto, como existente, que oferece resistência e constitui um obstáculo ao nosso agir, ao nosso querer.

Também a intuição volitiva tem seus porta-vozes na história da filosofia: Fichte, Maine de Biran, Dilthey. Este, no seu ensaio "Sobre a origem e Legitimidade de Nossa Crença na Realidade Exterior", mostra a impossibilidade da inteligência, da razão, para informar-nos da realidade, da existência das coisas. A experiência íntima do homem constitui-se pela consciência de impulsos volitivos e pela consciência da resistência e dos impedimentos que o dinamismo impulsivo experimenta. O homem é, antes de tudo, um ser de vontade, de desejo, um ser dinâmico que, quando quer, tropeça com mil obstáculos. São esses obstáculos e dificuldades, impostos ao nosso agir, que nos dão notícia, direta e imediatamente, da existência das coisas.

Os objetos, entretanto, não são apenas, não existem apenas; eles valem. É o valor o correlato da intuição emotiva que conta com expressivo número de representantes: Plotino, Santo Agostinho, São Boaventura, Espinosa, Hume e, na época contemporânea, Max Scheler chamado o filósofo dos valores. Para este, os valores são campo fechado ao intelecto, o qual torna-se tão cego para eles, como o ouvido para as cores. Os valores são apreendidos imediatamente pelo espírito, de modo análogo àquele em que as cores o são pelos nossos olhos.

Ao lado dos tipos de conhecimento intuitivo, acima mencionados, queremos estudar a intuição como é concebida por Henry Bergson, cognominado, o filósofo da intuição. Tal é a pretensão específica do nosso trabalho, que dividimos em três partes assim distribuídas:

 1 O objeto da filosofia bergsoniana.
2 A inteligência, órgão da filosofia?
3 A intuição, órgão específico da filosofia.

1 OBJETO DA FILOSOFIA BERGSONIANA

É bem sabido que o pensamento filosófico da Segunda metade do século XIX e primeiras décadas do XX, esteve dominado amplamente pela técnica positivista e cientificista. Julgava-se então que a filosofia, e mais concretamente a metafísica, carecia do direito à existência.

Ela não possui, dizia-se, um objeto real próprio que conhecer, nem um método seguro e frutífero que aplicar. Os problemas que por ventura ela vem estudando, desde o seu nascimento, ou são fictícios ou insolúveis, e em nenhum dos dois casos vale a pena ocupar-se deles. Consequentemente, os métodos empregados para resolvê-los hão de ser forçosamente ineficazes.

Este modo de pensar positivo, estreito e dogmático, é contestado, com brilhantismo, por Henry Bergson. Toda a sua doutrina está voltada, precisamente, para a defesa da legitimidade da filosofia, assegurando-lhe um objeto próprio, e para a conquista, dentro do quadro geral do conhecimento, de um lugar adequado à metafísica. Nisto consiste o seu mérito principal como filósofo.

Mas, existe, verdadeiramente, alguma porção da realidade inabordável aos métodos científicos? A grande originalidade de H. Bergson está em mostrar que, efetivamente, existem vastas regiões da realidade, onde o conhecimento científico não penetra, nem pode penetrar; regiões acessíveis unicamente à filosofia ou metafísica.

O real, segundo H. Bergson, pode ser estudado tanto pela filosofia como pela ciência. Cabe, porém, à filosofia o domínio da realidade espiritual, ao passo que à ciência o que é material.

"Nada do grande sistema que abraça todo o possível e, às vezes, também o impossível: Contentemo-nos com o real, matéria e espírito... só haverá então uma filosofia, como só há uma ciência". (1)

Mais explicitamente se exprime nosso filósofo, quando diz:

"Assinalamos, pois, à metafísica um objeto limitado, principalmente o espírito, e um método especial, antes de tudo a intuição. Assim distinguimos nitidamente a metafísica da ciência". (2)

A metafísica, portanto, (Bergson usa os termos "filosofia e metafísica", indistintamente) tem, com objeto principal, a vida interior da alma. A psicologia, segundo Bergson, não pode ser uma ciência do cálculo e da medida, porquanto ela é rebelde ao cálculo e à medida. Nem pode ser reduzida ao estudo anatômico e filosófico do cérebro, porquanto não existe uma equivalência perfeita entre o cérebro e o espírito. Sendo mobilidade pura contínua e consciência subtrai-se a ser tratada com categorias estáticas e científicas, forjadas para conhecer a matéria imóvel, sólida e divisível. O só intento de aplicação dos métodos científicos implicaria necessariamente no endurecimento, na materialização da própria alma, reduzindo-a a um falso atomismo de estados de consciência.

"Isto não quer dizer que a ciência não possa obter aí algum conhecimento; mas este conhecimento torna-se tanto mais vago quanto mais se distancia da fronteira comum ao espírito e à matéria". (3)

Assim os resultados do intento, não somente são nulos ou insignificantes, senão que a empresa torna-se essencialmente irrealizável tão logo nos ponhamos em contato imediato com a consciência.

O grande erro que os filósofos cometeram até agora, foi dispensar um tratamento científico a um objeto que só pode ser alcançado por meios filosóficos, confundindo assim ciência com metafísica.

"Tal é, entretanto, a tentativa dos filósofos que buscam recompor a pessoa com estados psicológicos... Empiristas e racionalistas são vítimas aqui da mesma ilusão. Uns e outros tomam as notações parciais, por parte reais, confundindo assim o ponto da análise com a intuição, a ciência com a metafísica... Psicólogos pelo método que aplicam permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem". (4)

Essa confusão entre metafísica e a ciência desaparece tão logo saibamos respeitar o que corresponde a uma e a outra e os seus métodos respectivos.

"Bem diferente é a metafísica que colocamos ao lado da ciência. Reconhecendo à ciência o poder de se aprofundar na matéria somente pela força da inteligência, se reserva o espírito". (5)

Temos, pois, que a metafísica possui um objeto próprio. Cabe a ela investigar, primeiramente, a realidade espiritual, "quem diz espírito diz antes de tudo, consciência, e quem diz consciência diz ação que incessantemente se cria e se enriquece".

Acontece, porém, que o homem não é o único que vive no universo. Com ele e antes dele, vive uma infinita variedade de seres, animais, vegetais, grandes, pequenos e até microscópicos.

Uma corrente imensa atravessa o mundo em todas as direções: corrente que culmina no homem, na alma humana, prolongação terminal e expressão suprema dessa vida. Assim a metafísica deve estender seu campo de ação à vida em geral, porquanto essa corrente vital escapa, de igual modo e por definição, aos métodos da inteligência discursiva, isto é, da ciência.

"Mas, simpatizamos apenas com a existência? Se todo ser vivo nasce, desenvolve-se e morre; se a vida é uma evolução e se a duração é uma realidade, não existe uma intuição do vital e, consequentemente, uma metafísica da vida, que prolongaria a ciência do vivente? Sem dúvida". (6)

A ciência biológica, desde sempre, não tem poupado esforços para apoderar-se desse "quid" essencialmente inapreensível que é a vida. Esforços inúteis, porque seu maior êxito consiste em adquirir notícia, ora de uma forma nova, ora de uma função inédita, ora, em fim, de uma semelhança original entre formas ou funções que pareciam, a simples vista inconciliáveis. Contudo, os métodos utilizados até agora, não conseguiram descobrir além daquilo que a vida tem de material e que nela existe de exprimível em termos de extensão: formas, funções, caracteres visíveis, organização exterior. Mas não podemos confundir a vida com a concreção material, em que ela se veste. É certo que

"a ciência nos dará cada vez melhor a físico-química da matéria organizada; mas a causa profunda da organização, que, vemos bem, não entra nem no quadro do puro mecanismo nem no da finalidade propriamente dita... não a atingiremos reinstalando-nos pela consciência no elã de vida que existe em nós?" (7)

A ciência, pois, em todo o refinamento de seus métodos não chega, nem pode chegar à causa profunda do organismo que é o elã vital, a própria vida. Esta é também movimento indivisível e contínuo, sendo o espírito humano uma etapa, a última e a mais intensa dessa prodigiosa corrente que começa no humilde protoplasma e se expande por toda a natureza em esplêndidas criações vitais.

Alma e vida são, assim, os objetos típicos da filosofia bergsoniana.

À inteligência científica, a matéria, o sólido, a extensão.

À filosofia, a vida, o espírito, o movimento indiviso da intimidade psíquica e vital. Para a ciência, o externo. Para a filosofia, o interno.

Ciência e filosofia distinguem-se, pois, pelos objetos que investigam.

Essa distinção, entretanto, na concepção bergsoniana, não é tão radical como, a primeira vista, pode aparecer. Bergson descarta, pura e simplesmente, tratar-se de uma superposição de conhecimentos de tal maneira que a metafísica correspondesse um saber superior e mais profundo de objetos que estão além dos físicos.

"A metafísica não é superior à ciência positiva; ela não vem, depois da ciência considerar o mesmo objeto e obter um conhecimento mais alto. Supor entre elas esta relação, como faz a maior parte dos filósofos, é ser infiel a uma e a outra". (8)

Bergson concebe sua metafísica, não em oposição senão como alargamento ou prolongação do labor científico. Embora distintas nos seus objetivos e métodos, elas devem manter-se unidas e conjugar esforços no sentido de acelerar o progresso do conhecimento humano. Distinção não significa separação. E essa união efetiva-se em dois pontos principais. De um lado, a metafísica não dispensa, sem mais, os conceitos que podem ser-lhe úteis e até, em determinados casos, imprescindíveis. Contudo, ela deve liberar-se da rigidez conceitual inflexível, e trabalhar com "representações flexíveis, móveis, quase fluídas, sempre prestes a se moldarem sobre as formas fugitivas da intuição". Às vezes, sem clausurar-se nos estreitos limites da representação conceitual, "a intuição pode ser-nos sugerida por imagens".

De outro, a experiência se constitui como ponto de contato comum a ambos conhecimentos. "Ciência e metafísica se diferenciarão pelo método, mas se comunicarão na experiência". (9)

Repetidamente Bergson nos adverte que seu método e pensamento se afastam da experiência que recolhem os dados da observação, não só do senso comum, como também dos resultados das ciências positivas, sendo sua metafísica construída sobre a experiência verdadeira da vida e não sobre vazias abstrações racionais.

Pois

"a metafísica nada tem em comum com a generalização da experiência e, entretanto, ela se poderia definir como a experiência integral". (10)

Por último para dissipar temores infundados de que a filosofia tivesse a pretensão de minimizar ou mesmo substituir o projeto científico, Bergson assim exprime:

"È preciso levar a filosofia a uma maior precisão, colocá-la em condições de resolver problemas mais especiais, fazer dela a auxiliar e, se for preciso, a reformadora da ciência positiva". (11)

E conclui: "Para resumir, queremos uma diferença de método, não admitimos uma diferença de valor entre a metafísica e a ciência". (12)

Assim a metafísica complementa a ciência pelo lado que a ciência não pode conhecer. A ciência limitando-se à matéria e através da inteligência, tem que ir, necessariamente, de um lado a outro, ligando-os por meio de leis e relações, porém sacrificando a interioridade, a realidade plena de cada elemento do enlace. Ao passo que a filosofia, prescindindo dos enlaces, se lança diretamente sobre a coisa mesma, penetrando-a na sua intimidade por meio da intuição. Com isso colocamos o problema do método da filosofia.

  2. A INTELIGÊNCIA: MÉTODO DA FILOSOFIA?

È importante destacar o que Bergson pensa sobre a inteligência e as funções que lhe atribui. Pois é em oposição a ela que aparece com mais nitidez a sua doutrina sobre a intuição. O princípio pedagógico antigo: "opposita inter se positamagis elucescunt" (coisas opostas, colocadas, umas frente às outras, mais se destacam), tem, no pensamento bergsoniano, sua concreta aplicação.

A inteligência constitui, junto com a intuição, o tema central de sua filosofia, ao qual nos remete constantemente ao longo de sua obra. Em particular, encontramos uma análise mais detalhada do papel que ela desempenha no conhecimento humano, na 2ª parte de "O pensamento e o movente" e no 2º capítulo de "A evolução Criadora".

Deveríamos começar pela definição de inteligência mas isso é impossível. "Nem inteligência, nem instinto se prestam a definições rígidas; trata-se de tendências e não de coisas". (13)

Mas, se não podemos dar uma definição rigorosa do que seja a inteligência, podemos, entretanto, descrever-lhe os traços essenciais a partir do momento em que ela sai das mãos da natureza.

Pelo seu processo evolutivo mostra, que ela está destinada a fabricar objetos. Ora, a fabricação se exerce sobre a matéria bruta; e mesmo emprega materiais organizados, ela os trata como objetos inertes.

"Da matéria bruta em si ela só retém o sólido, o resto se esquiva por sua própria fluidez. Assim, se a inteligência tende a fabricar, pode-se prever que o existente de fluído no real lhe escapará em parte, e o que há de propriamente vital no ser vivo lhe escapará completamente. Nossa inteligência, tal como sai das mãos da natureza tem por objeto principal o sólido inorgânico". (14)

Não é estranho, pois, que, por sua mesma estrutura e inteligência tenda a solidificar tudo, a reduzir tudo a matéria.
Ela
"Não se sente à vontade, não está plenamente em sua casa, a não ser quando atua sobre a matéria bruta, em particular sobre os sólidos". (15)

Acontece que a propriedade geral da matéria é a extensão; e é por meio desta que a matéria nos apresenta os objetos, exteriores uns aos outros, e cada objeto, constituído de partes exteriores, umas às outras.

Assim é que, sendo a matéria em si mesma continuidade, a inteligência nos apresenta as coisas como descontínuas, isto é, como unidades distintas, justapostas no espaço. Esse comportamento da inteligência sobre a matéria é explicável, se tomarmos em consideração a finalidade a que ela se destina, que é a manipulação de tudo, visando necessidades de ordem prática. Com isso pretende fazer-nos crer que a descontinuidade é o lado real e positivo da matéria, quando é tudo o contrário. "A inteligência só se representa claramente o descontínuo". (16)

Mas, se atentarmos para a realidade como tal, veremos que ela consta de objetos móveis. O movimento em si é o que, nela, existe de real, sendo a imobilidade puramente aparente e relativa. Contudo, para efeitos utilitários, o entendimento substitui o movimento por imobilidades justapostas, pois, naturalmente, ele tende sempre ao estável e ao mutável. "Nossa inteligência só se representa claramente a imobilidade". (17)

E como fabricar consiste precisamente em talhar em certa matéria a forma de um dado objeto, a ação da inteligência se caracteriza "Pela capacidade infinita de decompor de acordo com qualquer lei e de recompor em qualquer sistema". (18)

Esse poder limitado sobre a matéria reaparece sempre que

"projetamos, em bloco, todas essas decomposições possíveis por trás da extensão real, sob forma de um espaço homogêneo vazio e indiferente que a reduzisse. Esse espaço é, pois, antes de tudo o esquema de nossa ação possível sobre as coisas". (19)

O tempo por sua vez, presta-se a idêntica manipulação por parte do entendimento, que o espaço. "Assim como separamos no espaço, fixamos no tempo". A inteligência se representa também o tempo com um descontínuo, isto é, como uma série de momentos imóveis num espaço homogêneo. Ela

"não foi feita para pensar a evolução, no sentido próprio da palavra, isto é, a continuidade de uma transformação que fosse mobilidade pura... se representa o transformasse como uma série de estados, cada um dos quais homogêneos consigo mesmo e por conseguinte não se transforma". (20)

E justamente, na medida em que trata de

"reconstituir como dado, a inteligência deixa escapar o que há de novo a cada momento de uma história. Ela não admite o imprevisível. Ela rejeita toda criação". (21)

Daí manifestar uma incompreensão total para com a vida

"ao obstinar-se em tratar o ser vivo como se trata o inerte e em pensar toda realidade, por mais fluida que seja, sob a forma de sólido definitivamente parado. Só nos sentimos à vontade no descontínuo, no imóvel, no que está morto. A inteligência é caracterizada por uma incompreensão natural da vida". (22)

Bergson insiste e persiste em repetir, de muitos modos essas idéias que, em última análise, reduzem-se sempre ao mesmo: a tendência incoercível de nossa atividade intelectual a transformar tudo que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis, a solidificar tudo que encontra no seu caminho; ao mesmo tempo que revela sua incapacidade radical de pensar a mudança, a mobilidade, a vida, o devir em geral. Essa incapacidade de pensar o devir foi magistralmente (e também poeticamente) exprimida por H. Bergson, quando compara o mecanismo de nosso pensamento com a cinematografia.

Nossa inteligência, nos diz, se comporta com o conhecimento da realidade como um aparelho de cinema. Toma uma série de instâncias imóveis de devir e intenta depois reconstituir o movimento, projetando na tela a sucessão de fotografias, por exemplo, de um pelotão de soldados marchando. Assim o mecanismo de nosso conhecimento intelectual é de "natureza cinematográfica". Para pensar o devir não fazemos outra coisa que acionar o nosso "toma-vistas" interior. Porém, esse mecanismo deixa escapar o peculiar, o típico da vida, que é a continuidade do devir. E por mais que se esforça por apreendê-lo só consegue transformá-lo em uma série de imobilidades sucessivas.

À inteligência atribui-se outra função peculiar; a linguagem e a formação dos conceitos.

O homem é um ser isolado; ele vive em sociedade, é um ser social. Um ser inteligente que se associa a outro ser inteligente. E dessa associação nasce irremediavelmente a comunicação que se faz mediante sinais para satisfazer as necessidades de uma "ação comum". O conjunto desses sinais é a linguagem, que é eminentemente social.

Há uma linguagem do instinto e outro da inteligência. Nos animais, as necessidades da ação são sempre limitadas e determinadas pela própria ação. Por isso sua linguagem se constitui por um reduzido número de sinais que visam sempre coisas concretas. Não acontece assim com o homem no qual as necessidades da ação são ilimitadas e variáveis. É por isso que sua linguagem está constituída por sinais "móveis" em número tal que possam aplicar-se a coisas as mais diversas. O que caracteriza, pois, a linguagem humana é, precisamente, esse alargamento de adaptação de um mesmo signo à objetos diferentes. "O signo inteligente é um signo móvel". (23)

A invenção de uma linguagem "móvel", capaz de transitar livremente de um objeto para outro, tornou possível uma adaptação das coisas às idéias e contribuiu enormemente para a libertação da inteligência, "hipnotizada pelo seu trabalho".

Pois, a partir o dia em que

"a inteligência, refletindo sobre seus desempenhos, a si mesma se percebe como criadora de idéias, como faculdade de representação em geral, não há objeto que não queira Ter a idéia, mesmo que ela não tenha relação direta com a atividade prática". (24)

Com o apoio da linguagem, a inteligência elabora os conceitos nascidos não da "percepção", senão da "concepção". Trata-se de um trabalho ou ato do espírito por trás do qual está "a faculdade de conceber ou de perceber generalidades". Conceito confunde-se assim com idéia geral que se define como "uma representação que agrupa um número indefinido de coisas sob o mesmo nome. A maior parte das palavras corresponderá assim a uma idéia geral". (25)

a qual é fruto de um processo de abstração e generalização. Essa operação abstrativa, entretanto, não é de caráter lógico e sim de caráter biológico, pois, "os conceitos e as generalizações são o que são, porque são úteis, porque são necessários à vida". (26)

Todo ser vivo

"isola a característica que o interessa, vai direto a uma propriedade comum; em outros termos, ele classifica, e, consequentemente, abstrai e generaliza". (27)

Mas, essa ação abstrativa torna-se, para ele, instintiva, "vivida", não pensada, com vistas às necessidades imediatas mais permanentes.

 

Só o homem chega à representação abstrata, classificando diversos objetos num gênero e criando assim a idéia geral, o conceito, através de uma ação abstrativa "consciente, refletida, intencionalmente criada".

Pode-se dizer que a inteligência é a faculdade das idéias gerais, dos conceitos, os quais são a reunião, a síntese daquilo que uma multidão de objetos singulares tem de comum ou de semelhante. Quando dizemos, por exemplo, de um objeto que é uma árvore, não nos referimos, na realidade, ao objeto mesmo na sua singularidade, no seu puro ser, senão à comparação estabelecida entre esse objeto e outros muito semelhantes. Assim, por meio de conceitos, conhecemos um aspecto das coisas, o aspecto geral a todas elas, o que elas tem em comum. Esse aspecto é que chamamos de abstrato. Com efeito, fazer um conceito, é por definição, juntar o comum e prescindir do peculiar a cada objeto, é abstrair. Conhecimento intelectual vale tanto como conhecimento abstrato, conhecimento de relações de coisas pelo seu lado externo e superficial.

"A inteligência é, antes de tudo, a faculdade de relacionar um ponto do espaço a outro ponto do espaço, um objeto material a outro objeto material; ela se aplica a todas as coisas, mas permanecendo fora delas, e de uma causa profunda só percebe sempre a difusão em efeitos justapostos". (28)

Falamos, e com razão, que o conceito é um instrumento de que nos servimos para conhecer o concreto, o singular. Isso é verdade.

Mas, examinaremos, mais de perto, essa apreensão das coisas singulares. Em que consiste? Consiste em que colocados diante de uma coisa nova, fazemos uma separação entre os elementos já conhecidos e os elementos inéditos. Os já conhecidos não nos causam nenhuma surpresa, nenhuma emoção.

Possuímos um conceito onde enquadrá-los: parecem-se ao já visto; cumprem, obedientes, com aquilo que esperamos de antemão. "O pensamento se representa geralmente o novo, como um novo arranjo de elementos preexistentes". (29)

Diríamos então que os elementos já conhecidos são os que menos pertencem à coisa nova. Não é por eles que nós dizemos que a coisa é nova para nós. A novidade da coisa encontra-se, realmente, nos elementos inéditos. Estes, entretanto, nos desconcertam, não se parecem a nada, nem nada semelhante nós tínhamos percebido. Não podemos dizer o que são porque nossa realidade não possui o conceito adequado para lhes aplicar. E, "como não os podemos reconstruir com elementos preexistentes... nosso primeiro movimento é taxá-la de incompreensível". (30)

e não descansamos até, que, por meio de uma observação mais minuciosa, uma revisão mais completa de conceitos anteriores nos permita encaixar também os elementos novos nos marcos intelectuais.

"É esta a razão porque orientamos em várias direções sucessivas nosso conhecimento do mesmo objeto e fazemos variar os pontos de vista sobre ele...

O objeto é remetido então, não a um conceito único, mas a vários conceitos nos quais ele é dito "particular"". (31)

Este esforço de compreensão, por parte da inteligência, não tem, nem pode Ter nunca pleno êxito; pois sempre existirá em cada coisa particular algo puramente seu, incomparável, inefável, incompreensível que ela jamais poderá alcançar.

 
3. O MÉTODO DA FILOSOFIA É A INTUIÇÃO

Se a inteligência é assim como acabamos de descrever anteriormente, se, por sua natureza, ela se singe inseparavelmente, à matéria, então, ou devemos renunciar a penetrar o objeto próprio da filosofia, que é a alma, a vida, isto é, tudo aquilo que no universo há de imaterial, ou teremos que buscar, para esta especulação, um método próprio, inconfundível com o intelecto. Existe esse órgão de conhecimento não intelectual? De um modo mais geral, é possível conhecer sem intelecto?

A responder esta pergunta destina-se toda a obra de H. Bergson. Tocamos, portanto, o núcleo de sua filosofia.

Com freqüência confundimos e identificamos a significação destes dois termos: conhecer e estabelecer relações. Semelhante identificação, entretanto, não é legítima, pois junto ao modo de conhecer por conceitos está a intuição. É certo que o conhecimento intuitivo possui caracteres radicalmente diferentes daqueles que tem a inteligência; penetra o singular, deprecia o símbolo e até, em certo sentido, se rebela contra a própria linguagem. Mas, nem por ser outra espécie de conhecimento deixa de ser conhecimento.

Dizíamos anteriormente, ao falar da função do conceito que, quando estamos diretamente em presença de uma coisa nova, sentimo-nos desconcertados e admirados ao ver que os marcos preparados pela inteligência não tem aplicação ao caso particular.

Esse desconcerto e admiração provém de que estamos conhecendo sem conceitos, de que estamos conhecendo por intuição.

Suponhamos, por exemplo, que uma pessoa nunca visitou Paris.

De repente, alguém lhe oferece uma série completíssima de fotografias dessa cidade, tomadas de todos os pontos de vista possíveis. Essa pessoa, com o intuito de saber, passa-as em revista, observa-as, analisa-as, estuda-as detidamente. Ao final desse processo, ela poderá obter uma idéia aproximada de Paris, tanto mais próxima à realidade quanto maior for o número de fotografias a sua disposição. Mas, que diferença entre a idéia assim obtida e a intuição viva e imediata:

"Todas as fotografias de uma cidade, tomadas de todos os pontos de vista possíveis poderão completar indefinidamente uma as outras, porém não eqüivalem nunca a este exemplar em relevo que é a cidade por onde caminhamos". (32)

A intuição sensível, entretanto, tem um inconveniente; ela é incomunicável, e portanto, inutilizável em termos práticos. Para que possa prestar algum serviço na vida, é preciso que ela seja conceitualizada, intelectualizada. Esta intelectualização da intuição, tratando-se da matéria, não acarreta maiores dificuldades ou conseqüências. Afinal de contas, inteligência e matéria afinam perfeitamente. O problema começa quando ela se dirige para além da matéria e tenta captar a vida interior do espírito. Eis aí um mundo fechado para ela. A intimidade da consciência é, precisamente, onde a intuição se exercita com preferência, seu domínio específico. Uma coisa, pelo menos, aprendemos todos na sua interioridade: o nosso próprio eu e a sua duração no tempo.

"Desçamos então ao interior de nós mesmos; quanto mais profundo for o ponto que tocarmos, mais forte será o impulso que nos reenviará à superfície. A intuição filosófica é este contato, e a filosofia é este elã". (33)

Nosso conhecimento do mundo exterior pode ser apenas intelectual; porém nosso conhecimento de nós mesmos só pode ser intuitivo. Se tentarmos vertê-lo em imagens, logo advertiremos que toda comparação deixa sempre algo inefável sem exprimir.

Poderemos então multiplicar as comparações, as metáforas, completando-se uma às outras, e sempre teremos a impressão de não Ter esgotado a plenitude do saber intuitivo que temos do nosso próprio eu. Em pior situação ficaremos, se quisermos fazer uso dos conceitos. Os conceitos manifestam o geral, o comum, o imóvel, e cada um, uma parte do objeto; nenhum, o resto inefável. Além disso, os conceitos marcam, não sugerem, não podem se contradizer, sob pena de fazer-se absurdos e incompreensíveis.

Damos, pois, todavia uma vantagem à tradução em imagens da intuição do eu. E a vantagem está em que as imagens sugerem e solidificam, de certo modo, o espírito para a intuição mesmo, coisa que os conceitos não podem fazer.

"Aquele que não for capaz de se dar a intuição da duração constituída do seu ser, nada será capaz de fazê-lo, e os conceitos menos ainda que as imagens...

Ora, a imagem tem ao menos esta vantagem: ela nos mantém no concreto. Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas a ordem de coisas muito diferentes, poderão por convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto preciso em que há uma certa intuição a ser apreendida". (34)

Um problema à vista. Mas, a intuição pode transcender a esfera da própria vida interior e penetrar na totalidade da corrente vital? A especulação do filósofo, vai ficar restringida a ver-se viver na pura duração contínua do seu ser? Ou, pelo contrário, poderá o filósofo sair de se mesmo, adentrar-se torrente íntima da vida, adotar por um instante seu movimento e intuí-lo?

"Mas, se a metafísica deve proceder por intuição, se a intuição tem por objeto a mobilidade de duração, e se a duração é de essência psicológica, não vamos encerrar o filósofo na contemplação exclusiva de si mesmo?" (35)

H. Bergson não responde diretamente e tenta solucionar o problema, referindo a intuição a outra forma de atividade psicológica que chamamos instinto; o instinto dos animais e do homem.

O instinto nos animais, é um modo de conhecimento totalmente diverso do da inteligência. Quase estaríamos tentados a dizer que o instinto é a intuição inconsciente de si mesma.

Pois bem, todo mundo conhece as espetaculares manifestações do instinto de certos insetos, dos himenópteros, por exemplo. Lembremos a habilidade do sítaris, o pequeno escaravelho. Este animalzinho deposita seus ovos na entrada da galeria fabricada por uma abelha antífora. A larva do sítaris espera a saída do macho

"agarra-se a ele, fica aferrada a ele até o "vôo nupcial"; nessa oportunidade, ela aproveita para passar do macho à fêmea, e espera tranqüilamente que esta ponha seus ovos. Salta então sobre o ovo, que lhe vai servir de sustento do mel, devora o ovo em alguns dias e, instalada na concha sofre a primeira metamorfose. Organizada para flutuar sobre o mel, ela consome esse suprimento de alimentação e torna-se ninfa, depois inseto perfeito". (36)

Tudo se passa como se a larva do sítaris soubesse de antemão, tudo que vai acontecer nas galeria das antóforas.

E que dizer do esfex de asas amarelas? Ele sabe que

"o grilo tem três centros nervosos que movem seus três pares de patas, ou pelo menos age como se o soubesse. Ele pica o inseto primeiro debaixo do pescoço, e depois atrás do protórax, e finalmente na base do abdômen". (37)

Como explicar esta pergunta do instinto, esta verdadeira ciência? É evidente que devemos excluir totalmente toda idéia de consciência. No instinto, o conhecimento se explicita em ação e só em ação. Guardemo-nos , entretanto, de traduzir essa ação, essa ciência de himenópteros, em termos de inteligência; nem a suponhamos precedida de uma representação por conceitos do que vai acontecer. Admitamos, pelo contrário, que se trata de uma compenetração entre o esfex e sua vítima, de "uma simpatia (no sentido etimológico da palavra) que o informasse por dentro, por assim dizer, sobre a vulnerabilidade da lagarta". (38)

Em todo caso, e isto é importante assinalar, estamos diante de um saber que não sabe, de um saber que sente, que intui sem consciência, que dirige cegamente sua ação para onde ela deve ir, ao ponto concreto que interessa. É verdade que

"O esfex apreende pouca coisa, precisamente o que lhe interessa; mas, pelo menos, o apreende por dentro... por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha sem dúvida ao que chamamos de comunhão adivinhadora... Instinto é comunhão". (39)

Consideramos o impulso vital cindido, por força da evolução, em duas direções opostas: uma, perdendo sua energia de penetração, se abrindo em extensão, tomando, de fora, o maior número possível de ângulos do objeto que pretende captar. É a inteligência. A outra, conservando sua direção para o singular e concreto, tentando apreender os objetos por dentro, na sua interioridade. É o instinto.

A primeira amolda-se à matéria. O segundo, acomoda-se, especialmente, à vida. Essas duas direções encontram-se no homem. Cada um de nós sente em si mesmo "algo que deve ocorrer na consciência de um inseto que age por instinto". (40)

As emoções irracionais que costumamos Ter, as apreensões, os pressentimentos são, provavelmente, dessa mesma ordem. Se agora, por um esforço de tensão especial, pudéssemos fazer coincidir, por um instante, inteligência e instinto, teríamos certamente, como resultado, uma intuição, isto é, "um instinto que se tornou desprendido, consciente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto e de o ampliar infinitamente". (41)

Se, no conhecimento do objeto, a intuição ultrapassa à inteligência, isso se deve, precisamente, à própria inteligência, pois, sem ela, jamais passaria de ser simples instinto.

"Mas se, com isso, a intuição ultrapassa a inteligência, da inteligência terá vindo o arranco que a terá feito subir ao ponto em que ela se encontra. Sem a inteligência, ela teria permanecido, sob forma de instinto, cravada ao objeto especial que a interessa na prática". (42)

A intuição, assim concebida, pode transcender da intuição do eu e estender-se à vida em geral, como o seu objeto próprio. A ela aplicamos à seguinte definição:

"Chamamos aqui intuição a simpatia pela qual nos transporta para o interior de um objeto para coincidir com que ela tem de único e, consequentemente, de inexprimível". (43)

Por ela entraríamos no objeto como entramos no nosso eu, viveríamos sua vida como vivemos a nossa; duraríamos na sua duração ao mesmo tempo que seguimos durando na nossa.

A diferença entre esse objeto e o nosso eu, entretanto, não percebida por relações; pois sabemos que as relações são obras da inteligência: Essa diferença seria, antes de tudo, vivida e sentida como algo único que, para ser exprimido, necessitaria exteriorizar-se num complexo conjunto de imagens, de metáforas, convergentes todas a suscitar, a sugerir, no leitor a intuição requerida.

Uma pergunta final. É possível a transformação do simples instinto em intuição, isto é, em instinto consciente de si mesmo?

Bergson responde: não só é possível, como também é um fato.

A existência da criação artística no homem, demonstra-o suficientemente. O artista adentra-se na matéria; sua visão vai além da superfície, penetrando no coração mesmo do seu ser.

Para ele, o aspecto material se apresenta como a exteriorização de algo inédito e único, de um movimento original simples, que ele sente e ao mesmo tempo derrama, verte com confusão, por assim dizer, nas suas obras, tornando explícita essa realidade latente e fazendo com que o espectador participe da intuição que o próprio artista sentiu primeiro.

"A intenção da vida... é o que o artista visa captar, colocando-se no interior do objeto por uma espécie de comunhão abaixando, por um esforço de intuição, a barreira que o espaça interpõe entre ele e o modelo". (44)

A intuição artística, entretanto, é individual. Este é seu pecado de origem. "Mas pode conceber-se uma pesquisa orientada no mesmo sentido que a arte e que assumiria por objeto à vida em geral". (45)

Tal seria a intuição filosófica.

Como resumo, tentemos caracterizar, por tópicos, a intuição tal como H. Bergson a concebe.

  1º - A intuição não é possível de uma definição estrita. "Que não nos seja pedida, pois, uma definição simples e geométrica da intuição". (46)

2º - O conhecimento por intuição é imediato, isto é, realiza-se sem intermediários de espécie alguma, sobretudo, sem conceitos, juízos, raciocínios; sem a aparelhagem conceitual da inteligência. "A inteligência se ela é possível, é um ato simples". (47)

3º - A intuição é um conhecimento intrínseco, em profundidade. Penetra o fundo mesmo da realidade e alcança i absoluto. "O conhecimento intuitivo instala-se no movente e adota a própria vida das coisas. Esta intuição atinge o absoluto". (48)

4º - A intuição conhece por uma certa simpatia com que se transporta ao interior de um objeto para coincidir com que ele te de único e inexprimível.

"Pois não obtemos uma intuição da realidade, isto é, uma simpatia espiritual com o que ela tem de mais interior, se não ganhamos sua confiança por uma longa camaradagem". (49)

5º - A intuição percebe a mobilidade, a continuidade fluente da vida em que consiste a realidade. "A intuição parte do movimento, coloca, ou melhor, percebe-o como a realidade mesma". (50)

6º -
"Pensar intuitivamente é pensar na duração e duração é criação contínua, "ininterrupto jorro de novidade"". (51)

"Para a intuição, o essencial é a mudança". Pois é a duração que percebe uma continuidade ininterrupta de novidade imprevisível". (52)
7º -
"A intuição é difícil e penosa de prolongar". (53) Supõe um esforço doloroso para torcer o curso do nosso modo comum de conhecer. O hábito de pensar com conceitos nos impede o uso da intuição, a qual procede em sentido inverso.

"Filosofar consiste em inverter a marcha habitual do trabalho do pensamento". (54)

"Da intuição podemos passar à análise, mas não da análise à intuição". (55)

8º - Por último, a intuição é o órgão, por excelência, da filosofia ou metafísica.

"Hesitemos muito tempo em nos servir do termo "intuição", e, quando nos decidimos a empregá-lo, designamos por esta palavra a função metafísica do pensamento; principalmente o conhecimento íntimo do espírito pelo espírito, subsidiariamente o conhecimento, pelo espírito, do que há de essencial na matéria, uma vez que a inteligência fora feita para manipular a matéria e consequentemente para conhecê-la, mas não para tocar-lhe o fundo". (56)

CONCLUSÃO

Digamos duas palavras apenas à guisa de conclusão.

É fácil de prever o comportamento que o nosso filósofo vai adotar em relação às filosofias que o procederam e o rumo que deve seguir a metafísica para tornar-se digna de seu nome.

Com base na doutrina exposta, H. Bergson critica impiedosamente e sempre do mesmo ângulo, empiristas e racionalistas, idealistas, dogmáticos e críticos. Todos eles fracassaram no empenho filosófico e se contradisseram, ao tentar reconstruir a realidade viva com conceitos rígidos pré-fabricados. Todos pensaram inteligentemente, isto é, indo dos conceitos às coisas. Este é o seu pecado capital.

Se algo de permanente e duradouro encontramos em suas doutrinas, deve-se àquilo que mais se aproxima da fonte intuitiva original. Acontece que esses brotes vivos da fonte, os filósofos verteram-nos em moldes inflexíveis intelectuais, condenando, assim, a filosofia a um eterno conflito entre as escolas e instalando a contradição no próprio coração do objeto e do método. Todos assumiram um compromisso com a realidade, semelhante ao dos cientistas. Com uma diferença: os cientistas, trabalhando sobre conceitos de relações, geraram o simbolismo científico; ao passo que os filósofos, operando sobre conceitos de coisas, desembocaram no simbolismo metafísico. Uns e outros deslizam-se sobre o exterior da realidade, deformando-a com imagens e símbolos relativos.

Diríamos que os cientistas construíram uma ponte elegante por cima e os filósofos cavaram um túnel profundo por baixo, enquanto que a corrente viva do rio da realidade transita livremente "entre estas duas obras de arte sem as tocar".

Para que a metafísica possa ser ela mesma autenticamente, andar desembaraçadamente sobre os seus próprios pés e alcançar seu destino próprio, só resta um caminho, a intuição filosófica. Só ela pode revelar o segredo da vida, só ela pode acompanhar todas as ondulações do real.

É evidente que ela não abarcará de uma só vez a totalidade das coisas, como pretendem os filósofos construtores de sistemas: mas, de cada coisa, ela pode dar-nos uma explicação que se adapte exatamente, exclusivamente a ela. A filosofia não é, nem pode ser nunca obra exclusiva de um só filósofo. Ela se constitui pelo esforço coletivo e progressivo de muitos pensadores que se completam, corrigem e endereçam uns aos outros, sem nunca esgotar a totalidade da realidade de que se prolonga indefinidamente.

Se agora, na conclusão de nosso trabalho, quiséssemos enquadrar a intuição que o próprio Bergson rotulou de "filosófica" ou "metafísica", num dos três mencionados na introdução, não duvidaríamos em qualificá-las de "intuição emotiva".

bottom of page