
c a d a v e r i b u s a m o r e f u r e n t i u m m i s e r a b u n d i s p o l y a n d r i e n
M A N I F E S T O U L T R A C L E D A L I S T A O t a c í l i o M e l g a ç o
- PARTE PRIMEIRA -
DO CLEDALISMO DALINIANO
“Os pés de Jesus
tinham o perfume e
a temperatura da rosa.”
(Garcia Lorca)
“Catarina de Siena tinha um paixão pelo ouro, desejava que todas as cruzes fossem de ouro, e formulou um desejo que leva o furor religioso e carnal, o delírio espiritual, a abjeção gloriosa e o amor supremo a um ápice que não admite resposta. Ela gritou: ‘Quero que o Cristo monte em mim – monte – como se eu fosse uma cruz!’”
(Dali)
Enfrentando o inferno da realidade inevitável, cada ser, guiado pelo desejo de proteção intra-uterina, fechava-se no casulo paradisíaco que a lagarta de sua prudência tinha tecido com a saliva consoladora da amnésia. Não mais lembranças – somente a crisálida da dor moral das coisas por vir, nutrida pela fome de futuras ausências, pelo néctar dos jejuns e a levedura de heroísmos vestidos das bandeiras imateriais de sacrifícios estéreis e armada com as antenas infinitamente sensíveis do martírio. Essa crisálida do infortúnio começa a se agitar, pois se prepara para romper as paredes de seda da prisão de sua longa insensibilidade, para aparecer, por fim, na crueldade sem paralelo de sua metamorfose, na hora e no exato momento assinalado pelo primeiro tiro de canhão. E então, um ser desconhecido, seres desconhecidos, seriam vistos a levantar-se, as cabeças cobertas por capacetes sonoros, as têmporas perpassadas pelo assobio das ondas aéreas, os corpos nus, amarelados pela febre, marcados por profundos estigmas vegetais, cobertos de insetos e cheios até às bordas dos líquidos pegajosos do veneno, derramando-se e correndo ao longo de um couro rajado de tigre e com pintas de leopardo pela gangrena das feridas e a lepra da camuflagem, as barrigas inchadas ligadas à morte pelos cordões umbelicais elétricos emaranhados com a ignomínia de intestinos despedaçados e farrapos de carne, tostando nas carapaças de mel e aço ardente das torturas punitivas
de tanques destruídos.
Isso é o homem!
Costas de chumbo, órgãos sexuais de fogo, medos de mica, corações químicos das televisões de sangue, faces ocultas e asas – sempre asas, o norte e
o sul de nossos seres!
Desde o século XVIII a trilogia passional inventada pelo Divino Marquês de Sade permanece incompleta: Sadismo, Masoquismo... Era preciso descobrir o terceiro elemento do problema, o da síntese e da sublimação: o Cledalismo, nome derivado da protagonista do romance Faces Ocultas de Salvador Dali,
Solange de Cléda.
O sadismo pode ser definido como o prazer experimentado através da dor infligida a outra pessoa; o masoquismo, como prazer produzido através da dor infligida por uma outra pessoa. O cledalismo é o prazer e a dor sublimados por uma absoluta identificação transcendente com outra pessoa. Solange de Cléda restabelece a verdadeira paixão normal; ela é uma Santa Teresa profana; Epicuro e Platão ardendo em uma única chama de
eterno misticismo feminino.
Verborrage Dali, paraninfo do Movimento Ultracledalista: "Do nome de um dos personagens que encarna minhas obsessões, tirei a palavra: cledalismo.
O cledalismo é uma forma particular e majestosa de erotismo, de um refinamento extremo, reservado a uma pequena elite que constitui uma sociedade secreta daliniana. É, portanto, também o nome de uma de minhas paixões, que está em oposição perfeita com minha paixão amorosa por Gala. Coloco-me aos pés de Gala, num estado de submissão e de espiritualidade absolutas, enquanto o cledalismo é uma paixão de
dominação demiúrgica."
Se me permitirem e mesmo se não permitirem, vou entrar na descrição concreta, usando, entretanto, uma certa discrição, não por respeito aos outros, mas para poder continuar sem perturbações meus preciosos exercícios. Trata-se de reunir várias pessoas, quinze no mínimo, para uma cerimônia erótica. Peço-lhes que não pensem que é uma bacanal vulgar, por três razões. A primeira é que meus convidados são escolhidos com extremo rigor, por sua beleza, seu espírito e sua inaptidão original para tal gênero de preocupações. A segunda é que o jogo central consiste em convencê-los, em fazer mexerem-se mentalmente, durante encontros aparentemente fortuitos, em anexá-los a um sistema daliniano muito sutil de que não compreendem o essencial. Quanto à terceira razão, supremamente perversa, direi daqui a pouco
do que se trata.
Por inaptidão original, entendo a resistência moral, a reserva, o não-me-interessa, a ignorância. No começo, as pessoas que escolho pretendem estar
muito pouco interessadas, e ainda menos atraídas. As moças querem sempre convencer-se de que não têm o menor desejo lésbico. Perfeito. Farei como que
ele nasça nelas, que cresça, que as queime. A mesma coisa para os rapazes bonitos: nada de homossexualismo? Dali quer que eles seja pederastas, e o serão. Começo promovendo o encontro de dois seres, às vezes vestidos por mim, convencidos cada um deles de ir à descoberta de uma pessoa sublime, estranhamente sedutora, perturbadora. Depois é um jantar a três, depois a quatro, seis, etc., naturalmente com preparações, discursos, conversas enigmáticas, grande utilização de diplomacia estético-erótico-amorosa. Coroando este edifício, invento uma paixão. Convenço duas criaturas de que são loucas um pela outra sem ter a coragem de dizê-lo, a fim de que os dois se procurem e se perturbem, que as cabeças e os corações vacilem, que o motor do desejo comece seu ronco pernicioso, exaltador, fatal. Minhas delícias chegam ao auge, quando cada um me vem confiar seu desnorteamento quente. Eu, então, preciso: ‘Então vocês estão prontos para isso, para aquilo, para tal convite, para tal carícia?’. Estão prontos, claro,
minhas precisões provocantes e
deslumbrantes os aguilhoam.
Segundo ato: crio, em torno dessa súbita paixão maquinada, uma paixão coletiva, um bailado de invejas. Todo o grupo está orientado para uma idéia de cerimonial erótico, de reunião mágica codificada pelo gênio daliniano. Toda essa gente voltada para uma participação, isso me proporciona uma perturbação maravilhosa. Gozo de sua cumplicidade mental e sensual que nunca teria existido sem mim. Nenhum deles teria jamais pensado em praticar tais coisas. Enquanto se transformam, uma impaciência sagrada se apossa deles. Esqueceram completamente que poderiam ter recusado. Mas podiam? Não os escolhi por causa de uma falha neles, de um vácuo imediatamente adivinhado e utilizado? Atribuí-lhes um papel. Fi-los entrar em meu universo mitológico, dando-lhes finalmente uma consistência que não experimentavam.
É tempo, agora, que eu desvende a terceira razão pela qual a reunião daliniana está para a bacanal como a cabra doméstica para o divino unicórnio. A última perversão, o colossal prazer - e ovo da serpente do movimento ultracledalista! -
é sabotar integralmente o trabalho diabólico, no próprio momento em que tantos esforços chegam a seu fim. É esmagar o fogo jogando em cima, bruscamente, uma montanha de gelo. É que nada aconteça. É organizar, no último instante, o fracasso completo. Isso é o orgasmo absoluto! A inversão brutal do possante motor, cujo choque repercute até ao cérebro em ondas violentas de alegria demiúrgica! Organizo a catástrofe... Imagino os mais complicados refinamentos eróticos, as mais sábias combinações, as situações mais suavemennte impossíveis, estou pronto a gastar milhões em jantares, providências, convites, roupas, iluminação, cenários. Todavia, meu desejo mais ardente é que não aconteça nada! Nada! Nem mesmo contatos entre todos esses seres, tão dificilmente reunidos, levados, com tanta esperteza e encanto, ao consentimento e depois à impaciência. Nem um leve roçar! Uma formidável decepção! Um recuo gelado!
A anulação espantosa!
Notem, em um dos processos pré-ultracledalistas, eu conseguira convencer uma moça a se fazer sodomizar por um rapaz que ela desejava. ‘Por você, só por você, eu aceito’. ‘Sim, sim, disse eu, mas você o ama, apesar de tudo, esse que está atrás?’. Ela parou de representar uma comédia, foi tomada por um espasmo de sinceridade maravilhosa. Gritou: ‘Eu o amo! Eu o adoro!’. E então estendeu os braços para frente, começou a se retorcer e se erguer para trás, batendo as mãos, flexível como uma palmeira curvada pelo vento. Do reino animal ela passava ao reino vegetal. Dobrou-se ainda mais, o rosto virado, numa dessas posições incríveis dos afrescos hindus, e seus lábios vieram aflorar, só aflorar, os lábios do homem, num beijo angelical. Animal, depois vegetal, depois anjo. Diante dessa perfeição, dessa súbita idealização, dessa transformação das estruturas até à sublime pureza, minha excitação física caiu e fui inundado de alegria espiritual. Eis o sêmen cledalista daliniano redivivo no Ultracledalismo contudo, aqui, ao paroxismo estético, à inauguração alquímica das potências erótico-artísticas transformadas no mais hierático a u r u!
- PARTE SEGUNDA -
DO
ULTRACLEDALISMO MELGACIANO
"Cada um de nós deve matar seu amor cinco vezes com as próprias mãos, para que o amor renasça cinco vezes e cinco vezes mais violento."
(D’Annunzio)
"'La mitologia Daliniana no és la meva mitologia, tot i que accepto del tot la síntesi sexual cledaliniana... El cledalismo es el placer y el dolor sublimados por una absoluta identificación trascendente con el objeto'.
Otacílio Melgaço
transporta este concepto del
erotismo al arte y lo agranda."
(Pablo Suarez Paz)
Do Cledalismo - uma nobre aberração... (Deus me livre! da tentação de envolver isso com a minha tristeza) -
ao Ultracledalismo!
Tudo o que é vício se tornará virtude, tudo o que é sexo se tornará alma; tudo o que é orgasmo, êxtase; tudo o que é carne, espírito: a saga da castidade,
da abstinência e da perfeição espiritual ao esprit & accouchement artísticos!
À
Arte Ultracledalista:
reparir
I - a velha influência cátara,
II - a mística dos trovadores e
III - o amor cortês;
efervescer
IV - os gozos da não-consumação,
V - as espiritualizações do ato criacional por privação;
jubilar
VI - a subida das energias orgiásticas (em vista a compleições artísticas)
para o cérebro,
VII - a inversão do fluxo por um deslumbramento cerebral.
Grandes orgasmos intelectuais a partir de (a arte ainda em primevo estado/edênico estágio de 'coisa') um nada tangível!
Um máximo de desejo por
um mínimo de consumação!
Desiderium com(o) valor transmutativo:
fazer - portando o poderio descomunal das inflorescências - brotar da ejaculatória de nossos sonorizadores, pincéis, penas, câmaras, espátulas, sapatilhas e todo
o restante ovular:
o ékstasis introjetado!
Se Catarina de Siena tinha um paixão pelo ouro, desejava que todas as cruzes fossem de ouro; se formulou um desejo que leva o furor religioso e carnal, o delírio espiritual, a abjeção gloriosa e o amor supremo a um ápice que não admite resposta; se gritou: "Quero que o Cristo monte em mim – monte – como se eu fosse uma cruz!”:
em seu mais alto grau de intensidade, o
Ultracledalismo
se transformará na Cruz
mais áurea,
e no mais aurático Ouro!
O Seguimento Ultracledalista
detém a mesma logicidade em seguintes contendas:
Artista x Processo de Criação;
Obra x Público.
Em paráfrase a Antonin Artaud: o Ultracledalismo não é um meio de expressão novo ou mais fácil, nem mesmo uma metafísica da poesia - é um meio de libertação total do espírito e de tudo o que se lhe assemelha; Nós estamos realmente decididos a fazer uma Revolução; Nós irmanamos a palavra 'ultracledalismo' à palavra 'revolução' unicamente para mostrar o caráter desinteressado, desprendido, e mesmo inteiramente desesperado, dessa revolução; Nós não pretendemos mudar nada nos costumes dos homens, mas pensamos realmente em demonstrar-lhes a fragilidade de seus pensamentos, e sobre quais alicerces movediços, sobre quais porões, eles fixaram suas casas estremecentes; Nós lançamos à Sociedade tal advertência solene: que ela preste atenção a seus desvios, a cada um dos falsos passos de seu espírito; o Ultracledalismo é um grito do espírito que se volta para si mesmo!
(Para todos preparativos, sempre haverá junto de mim uma mulher, a quem chamarei: demoiselle X, minha ‘Tabeliã’. Tenho de meu pai, um respeitável tabellione das Minas Gerais, o gosto pela precisão, pelo registro cuidadoso dos fatos. Então, minha tabeliã tem por função
i - anotar tudo o que se passa e tudo o que se diz;
ii - assistir a cada encontro;
iii - admitir partícipes;
iv - supervisionar os engendros ultracledalistas - obras, eventos, mostras...;
v - criar, por sua presença quase sacerdotal entre os seres, uma cumplicidade delirante...).
Piglierà il primo volo il grande uccello sopra del dosso del suo magnio cecero e empiendo l'universo di stupore, empiendo di sua fama tutte le scritture e grogria eterna al nido dove nacque!
Que das alturas
tenha sido (retirado)
um Velo de Ouro (em forma de)
M a n i f e s t o
para a todos revelar
a Aurora nua!
Hostinato rigore!
Cordisburgo, Primavera
do Ano da Graça;
O t a c í l i o
M e l g a ç o