
P H O N É T I C A
I
‘Inimá, porã tebi, ne tebicua he rancuãi sururuc potare eté. I’ Jaguaroui, hebi catú hebé xeremymbotá apõ.
Heteti rereco hebi xebi. Inimatai, cuña tebi,
ne tebiroeté carapuáhe ypy sururucatú.’
Interregno. Abro aqui imagético parêntese... Há uma seara pertencente à geografia ‘transumana’ dos straussianos ‘Tristes Trópicos’ de que almejo uma precisa focalização: ‘Na verdade, que mais aprendi com os mestres que escutei, com os filósofos que li, com as sociedades que visitei e com essa própria ciência da qual o Ocidente se orgulha, senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore? (...) Semanas a fio, naquele planalto do Mato Grosso ocidental, eu vivera obcecado, não pelo que me rodeava e que eu nunca mais reveria, mas por uma melodia muito batida que minha lembrança empobrecia ainda mais: a do Estudo número 3, opus 10, de Chopin, no que, por um escárnio cuja amargura também me sensibilizava, parecia se resumir a tudo o que eu deixara atrás de mim.
Por que Chopin, a quem minhas preferências não me conduziam especialmente? Criado no culto wagneriano, eu descobrira Debussy em data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinsky um mundo que me parecia mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias que me fornecia o alimento espiritual de que eu necessitava; então, por que Chopin e sua obra mais banal impunham-se a mim no sertão? Mais ocupado em resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro, conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava da excitação completa: o sinal, a alusão,
a premonição de certas formas bastava.
Léguas após léguas, a mesma frase melódica cantava em minha memória sem que eu pudesse afastá-la. Nela eu descobria permanentemente novos encantos. Muito frouxa no início, parecia-me que ia progressivamente enroscando seu fio, como para dissimular o final que a concluiria. Essa transformação da flor em fruto ia ficando inextricável, a ponto de indagarmos que solução ela adotaria; de repente, uma nota resolvia tudo, e tal escapatória parecia ainda mais ousada do que o movimento comprometedor que a precedera, exigira e possibilitara; ao escutá-la, os temas anteriores elucidavam-se com um novo significado: sua busca já não era arbitrária, e sim a preparação para essa saída insuspeita. Seria então isso, a viagem? Uma exploração dos desertos de minha memória, e não tanto
daqueles que me rodeavam?’.
‘Le temps présent, grand Dieu!
c’est l’arche du Seigneur: reculer pour mieux sauter...’
Parêntese fechado, vem a lume o seu propósito: a lusíada ‘viagem sonora’ - à qual nos convida Melgaço - faz alusão à interseção de duas intercambiáveis veredas: Memória e Premonição. Pierre Boulez, em certa ocasião, assim definiu o que seria, para ele, o ato-de-reger: ‘uma questão de morfologia mental, de correspondência particular entre o físico e o espírito’... Luís Gonzaga Melgaço – L’Isola di Santi e Savi – traz ao empirismo singular demarcação conceitual ao ponto de, proficiente, transcendê-la
à composição! Tal ‘fisicidade memorial’ (aliada à premonitoriedade de seu espírito humanista) adquire
o teor aurático dos raros artistas (pre?)destinados
ao desvendamento das Belezas que, em princípio, encontrariam em seu próprio ocultamento:
o sentido de Existir.
II
‘Im Auge bleiben ihm die schönen Glieder:
Das Posthorn tönt...’
As queixas acerca da decadência do gosto musical são, na prática, tão antigas quanto esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica, a saber: a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança dos deuses, ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano. Toda vez que a paz musical se apresenta perturbada por excitações bacânticas, pode-se falar da decadência do gosto. Entretanto, se desde o tempo da noética grega a função disciplinadora da música foi considerada como um bem supremo e como tal se manteve, em nossos dias, certamente mais do que em qualquer outra época histórica, todos tendem a obedecer cegamente à moda musical, como aliás acontece igualmente em outros setores. Contudo, assim como não se pode qualificar de dionisíaca a consciência musical contemporânea das massas, da mesma forma pouco têm a ver com o gosto artístico em geral as mais recentes modificações desta consciência musical. O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso. De resto, não há tempo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no pólo oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. As categorias de arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para a apreciação musical de hoje. Isto ocorre, em grande escala, também com as categorias da música séria, que, para descartar com maior facilidade, se costuma designar com o qualificativo de ‘clássica’. Se se objetiva que a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo as mencionadas categorias, não há como negar a verdade desta objeção. Contudo, esta espécie de música é afetada pela mudança, e isto precisamente em virtude da seguinte razão: proporciona, sim, entretenimento, atrativo e prazer, porém, apenas para ao mesmo tempo recusar os valores que concede. Aldous Huxley levantou em um de seus ensaios a seguinte pergunta: quem ainda se diverte realmente hoje num lugar de diversão? Com o mesmo direito poder-se-ia perguntar: para quem a música de entretenimento serve ainda como entretenimento? Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. Assume ela em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação específica do cinema mudo. A música de entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. Um especialista americano em propaganda radiofônica – que utiliza com predileção especial a música – manifestou ceticismo com respeito ao valor de tais anúncios, alegando que os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Tal observação é contestável quanto ao valor publicitário da música. Mas é essencialmente verdadeira quando se trata da compreensão da própria música.
(Introdução de ‘Ueber Fetischcharakter in der Musik und die Regression des Hoerens’, em ‘Dissonanzem’, THEODOR W. ADORNO, Goettingem, 1963, Vandenhoeck und Ruprecht)
Fenecia Luís Melgaço DUAS DÉCADAS após
a ‘escrituração’ adorniana.
Quantos anos e anos mais serão necessários
para que seja prescrita sua validade?!
O C C U L T E R
P H A E N O M E N E
Da Capo
“No ‘Fausto’ de Goethe há um momento em que”, palavras de J. M. Wisnik, “os poderes já precoces da produção de simulacros gerada pelo pacto com Mefisto permite que se construa um cérebro cristalino e luminoso, um humúnculo que não tem onde se encarnar, e que é devolvido ingloriamente ao nada.
Para que se salve a alma, morra a ‘alma’.”
‘Denn zeigt sich auch ein Dämon, uns versuchend,
So waltet was, gerettet ist die Tugend.’
A arte, o som e o sentido e a alma figuram
já como dissolúveis legendas?
Philemonis Sacrum – Fausti Poenitentia
Há e haverá, em séc. XXI, um elo antifausticamente perdido a ser e a estar encarnado,
dentre raros outros (tal qual sua recôndita mineiridade: paradigmagmática ao, em Graça, desexorcizada)
nas rosianas harmonias de um mestre como
Luís Gonzaga Melgaço.
“Num sermão, Santo Agostinho compara Cristo a
um tambor, pele esticada na cruz, corpo santificado
como instrumento para que, a cantilena
da mesma Graça, a música do mundo seja...
Para que soem as aleluias...”